Risco de Trump implodir a democracia nos EUA e no mundo é real? Analistas opinam
Por Eduardo Marini e Denise Mirás
RESUMO
• Primeiro presidente criminoso dos EUA, Trump disputa com Biden chefia da maior potência do planeta em novembro
• Pode governar na Casa Branca, em prisão domiciliar ou, menos provável, na cadeia
• Até que ponto a democracia americana e o planeta poderão ser feridos se, caso eleito, assumir seu estilo sem freios nem contrapesos?
No meio do caminho de Donald Trump havia uma tempestade. Com nome e sobrenome: Stephanie Gregory Clifford, a ex-atriz pornô Stormy Daniels, em português algo como Daniels Tempestuosa. Doze jurados de Nova York consideraram o ex-presidente dos EUA, candidato à reeleição, culpado em 34 acusações de falsificação de registros contábeis para esconder pagamentos por encontros com Stormy – apenas um deles no sentido bíblico, ela diz. O republicano é o primeiro ex-mandatário do país definido como criminoso. O juiz do caso, Juan Merchan, dará a sentença em 11 de julho.
Ainda pesam sobre os ombros de Trump três processos, broncas bem mais pesadas (leia quadro). Pela lei, ele, se eleito, poderá tomar posse até no xilindró. Essa situação inédita causará danos na democracia americana, a maior e mais antiga do mundo? Vai influenciar outros países, incluindo o Brasil?
A constituição dos EUA, promulgada em 1787, é a segunda em antiguidade no mundo. Mais nova apenas do que a da República de San Marino, definida em 1600. É também a menor: em corpo médio, o texto de seus sete artigos e 27 emendas cabem em econômicas cinco páginas. Há 237 anos, os nobres responsáveis por sua elaboração não imaginavam, nem em pensamento, a possibilidade de o país ter um incriminado pela justiça com a caneta do poder nas mãos. Daí a falta total de restrições aos condenados de hoje.
Opiniões
• “O processo de alteração constitucional é complicado. Apenas 27 emendas foram feitas em quase dois séculos e meio. Não acredito, mas se ele ganhar, a democracia pode ser afetada em pontos, mas não estará sob risco”, afirma João Carlos Souto, doutor em Direito Constitucional e autor do livro Suprema Corte dos Estados Unidos – Principais Decisões.
• Outro descrente da vitória do republicano é o especialista em Direito Internacional Daniel Toledo, residente nos Estados Unidos há 17 anos. Mas ele vê como perigos o risco da retirada do apoio a Israel e à Ucrânia, “com potencial para gerar um impacto mundial violentíssimo” e do “uso do perdão presidencial e de outros recursos para calar testemunhas de seus crimes, neutralizar processos e atacar os considerados inimigo”.
• “É um grande paradoxo”, define Rodrigo Amaral, pesquisador e professor de Relações Internacionais da PUC-SP. “Mesmo se escapar de ser preso, continuará com a marca dos processos, acusado de mais de 80 diferentes crimes. Isso fragilizaria a democracia americana”. O pesquisador chama atenção para uma situação arriscada. Como as leis permitem questionamentos até dos mais extremistas, Trump e futuros presidentes poderão ser empossados mesmo respondendo ou sendo condenados por crimes como fraude eleitoral, favorecimento à invasão do Capitólio e outros ligados a aspectos morais. “Por muito menos John Kennedy foi rechaçado”, lembra. “Hoje, no mesmo país, a questão moral não pega no caso do Trump, mesmo entre conservadores e religiosos. Os eleitores perderam a capacidade de avaliação”, constata.
Na avaliação de seis em cada dez americanos, dizem as pesquisas, o país está em recessão. “Mas os números mostram o contrário: menos desemprego e economia equilibrada, mesmo após a pandemia. No caso Stormy, a condenação, até agora, não parece significar derrota junto aos eleitores, porque ele passou por processos políticos muito mais graves e o apoio permanece”. O pesquisador se refere à tentativa de fraude eleitoral na Georgia (“quase imperdoável nos Estados Unidos”), à retirada ilegal de documentos confidenciais da Casa Branca e à ação conspiradora de Trump na invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2020.
Transição
No contexto global da atualidade, os Estados Unidos, ainda o maior ator democrático contemporâneo, referência mimetizada por grande parte do mundo, tem, por outro lado, a hegemonia questionada por China, Índia, Rússia e blocos de comércio internacional como os Brics.
“Estamos em um período de transição da democracia como conhecemos, uma mudança da estrutura de governança global estabelecida desde a década de 1920”, observa Amaral. “Em boa parte, o sistema democrático histórico parece esgotado, porque quem anda se sobressaindo – Estados Unidos, Brasil e Argentina, por exemplo — é justamente quem questiona o modelo. O mundo se posiciona entre a democracia clássica, em estados estáveis mas pequenos e irrelevantes globalmente, como a Noruega, e o modelo da China, com estabilidade política e econômica interna”.
Para Roberto Menezes, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), as próximas pesquisas qualitativas e eleitorais, diante da possibilidade de vitória de Trump nas eleições presidenciais do próximo dia 5 de novembro, darão ideia do quanto a democracia americana poderá ser ferida com um segundo mandato. “Ele tensionou as instituições por todo tempo. Não reconheceu a vitória de Biden, atitude seguida pela extrema-direita em outros pontos do mundo, entre eles o Brasil. Bolsonaro ignorou a vitória de Lula e, é bom lembrar, do próprio Biden”. Os Estados Unidos, destaca, possuem instituições sólidas, mas a vitória de 2016 fortaleceu a extrema-direita pelo mundo, especialmente na América Latina.
Após o primeiro mandato, lembra Menezes, Trump, a exemplo de Bolsonaro, admitiu ter tido chance de “fazer mais” – entenda-se perseguir mais. Agora promete, caso eleito, “não deixar nada para trás”, incluindo questões como cerceamento à liberdade de imprensa, na certa com o apoio de congresso mais recheado de parlamentares de extrema-direita.
“Um segundo round dele (Trump) se daria em um cenário de crise democrática global. A vitória reforçaria esse ambiente. Se tivesse sido reeleito, até o resultado no Brasil, em 2022, poderia ter sido outro.”
Roberto Menezes, da Universidade de Brasília (UnB)
“Há grande risco para a estabilidade democrática e as instituições dos Estados Unidos. Trump afirmou várias vezes pretender se vingar de indivíduos e organizações que, nas palavras dele, o perseguem”, lembra Lucas Leite, especialista em Relações Internacionais da FAAP. “É comum citar o Partido Democrata, vários de seus membros e integrantes da Suprema Corte. Sua preocupação é construir um governo capaz de agir sem freios e contrapesos dos outros poderes, algo claramente inconstitucional. Mas, se chegar ao poder, ganhará meios para subverter grande parte das regras”, prevê.
“Achei que tínhamos respeito um pelo outro. Saí do banheiro e ele me imprensou. Foi horrível – mas eu não disse não”, diz Stormy em um documentário sobre a suposta única vez em que houve encontro entre os dois sobre lençóis, no quarto ocupado pelo então apresentador de O Aprendiz num complexo de golfe, teoricamente com a pauta altruísta e profissional de discutir a participação dela no programa.
“Apenas faça isso”
Em cenários menos íntimos, as coisas também não estão exatamente boas para o republicano. “Apenas faça isso. A revelação deste caso acabaria com a campanha. Você terá o dinheiro de volta”, disse ao então advogado pessoal Michael Cohen ao ordenar o pagamento a Stormy, antes de sua eleição em 2016.
De braço direito, Cohen passou a ser inimigo e testemunhou contra Trump no julgamento. “O dinheiro (dado a Stormy) foi contabilizado como gasto legal nas Organizações Trump”, admitiu no tribunal. “Estava fazendo o possível, e ainda mais, para proteger meu chefe. Fazia isso há muito tempo”, admitiu no tribunal.
Trump jamais poupou o juiz Merchan. “Corrupto”, “parcial” e “vendido aos democratas” eram qualificações comuns.
“A última coisa que quero fazer é colocá-lo na prisão. Você é ex-presidente dos Estados Unidos e, possivelmente, o próximo. Não quero propor sanção de prisão, mas farei isso caso necessário”, reagiu o juiz numa sessão marcada por momentos de exaltação do republicano. “Há muitas razões pelas quais a prisão é o último recurso para você. Seria perturbador, mas, ao final das contas, tenho um trabalho a fazer”, completou, enigmático.
“O dinheiro (dado a Stormy) foi contabilizado como gasto legal. Fazia o possível, e ainda mais, para proteger o meu chefe.”
Michael Cohen, no tribunal
Não há barreira legal para Trump concorrer ou ser presidente, mas votar será mais difícil.
• Na Flórida, seu domicílio eleitoral, o condenado só recupera o direito a voto quando cumpre toda a pena, seja condicional, provisória, domiciliar ou fechada.
• Haverá pouco tempo para isso entre 11 de julho e 5 de novembro.
• Caso cometa novo crime, poderá ser preso imediatamente.
• As agendas de campanha – e os novos testes de viabilidade – serão duros.
• Espera-se o uso – e sobretudo o abuso – da inteligência artificial, destacada em um relatório do Fórum de Davos como a maior ameaça mundial, a curto prazo, à integridade desta e das mais de 50 eleições agendadas no mundo para 2024.
O primeiro debate com Biden será em 27 de junho, nos estúdios da CNN americana. De 15 a 18 de julho, enfrentará a convenção nacional republicana. Em seguida, mais quatro confrontos com o democrata, um deles na rede de tevê ABC, darão o tom na reta final, até a votação de 5 de novembro.
No meio do caminho, há a chance de o presidente criminoso ser incomodado com a marcação de ao menos um dos julgamentos pendentes. Se vencer essa corrida de obstáculos e for eleito, Trump tomará posse de qualquer jeito: com pena de prestação de serviço, domiciliar ou na cadeia. E aí os Estados Unidos terão crime e poder. E o mundo, uma nova era de incertezas.
A GUERRA NAS REDES SOCIAIS
Na luta pelo voto, Trump e Biden adotam até mesmo a chinesa TikTok, que ameaçaram banir
Donald Trump prometeu banir o TikTok dos EUA em 2020. Mas como ninguém é de ferro, sobretudo em campanha, estreou com alarde na rede social chinesa, que reúne 170 milhões de adeptos no país, no sábado (1º). Em 48 horas, arrebanhou 3,5 milhões de seguidores. Teve até vídeo em evento de UFC.
Nada mal diante dos 350 mil da conta de Joe Biden. O próprio presidente investiu contra a plataforma, sancionando lei para obrigar a holding ByteDance a vendê-la ou encerrar operações no país.
A rendição dos rivais ao TikTok é a prova do poder das redes sociais nas eleições pelo mundo e, particularmente, no Brasil e EUA. Após o fim do julgamento, apoiadores de Trump inundaram a web incitando represálias, principalmente nas plataformas Truth Social, do ex-presidente, Patriots.win e Gateway Pundit. Nelas, todos concordam entre si. Clamaram por ataques a jurados, morte do juiz Juan Merchan, fuzilamento e forca para democratas e até guerra civil aberta.
Diziam que a condenação foi armada e nada se resolverá no voto, e sim com violência. Trump trabalha com isso. É ativo também no Instagram, onde diz ter arrecadado US$ 34,8 milhões (R$ 184 milhões) nas seis primeiras horas após o julgamento.
PODE FICAR PIOR
Trump enfrentará outros três julgamentos por crimes mais graves
Ações para reverter derrota
Trump atuou de forma ilegal para reverter a derrota. Divulgou mentiras sobre fraudes, fez pressão para reverter o resultado e tentou aproveitar a invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2020, para retardar a certificação de Joe Biden e manter-se no poder.
São quatro acusações:
• duas com pena de até 20 anos,
• uma de dez,
• e outra de cinco.
Interferência eleitoral na Geórgia
Trump teria cometido crimes para reverter a apertada derrota no estado em 2020.
Dez crimes foram aceitos.
• As penas possíveis somam 76 anos e meio.
• Após recurso, o julgamento foi adiado e ainda não há nova data.
• Como o processo corre em tribunal estadual, a defesa deverá argumentar que não é o foro legal para o ex-presidente
Posse ilegal de documentos
Após deixar a presidência, Trump levou documentos sigilosos da Casa Branca para sua casa em Mar-a-Lago, na Flórida. Teria obstruído trabalhos do FBI, a polícia federal, para recuperar o material.
São 40 acusações:
• 32 de até dez anos de prisão,
• seis de até 20,
• e duas de até cinco.
O julgamento foi adiado. Ainda não há nova data.