Comportamento

“Sem liberdade não há vida”, diz jazzista cubano Arturo Sandoval

Crédito: Jeremy Lock

Arturo Sandoval: “Éramos muito pobres, então a música chegou e salvou a minha vida” (Crédito: Jeremy Lock)

Por Felipe Machado

Dizem que, quando uma vida é extraordinária, ela daria um filme. Pois a trajetória do jazzista cubano Arturo Sandoval rendeu um longa em Hollywood: For Love and Country, com Andy Garcia no papel principal, foi produzido pela HBO em 2000. O enredo combina thriller político e romance, com ênfase na fuga cinematográfica do músico para os EUA, onde se refugiou e pediu asilo político. Quem o ajudou no plano, que envolveu um período escondido na embaixada dos EUA em Atenas, na Grécia, foi ninguém menos que Dizzy Gillespie, outra lenda do jazz. Nascido na pequena cidade de Artemisa, a uma hora de Havana, Sandoval é um amante da música brasileira. O trompetista de 74 anos já gravou com Caetano Veloso, Djavan e Simone, entre outros. Ele conversou com ISTOÉ antes de subir ao palco para um show no Festival BB Seguros, em São Paulo, sua única apresentação no País. Sandoval falou ainda sobre o regime autoritário em Cuba, que segue em vigor após seis décadas, elogiou a liberdade norte-americana e revelou sua filosofia de vida. Celebrou ainda os 48 álbuns gravados e as 24 indicações ao Grammy, prêmio que venceu em onze ocasiões.

Há dez anos o senhor recebeu a Medalha Presidencial da Liberdade das mãos do Presidente Obama. Para um cubano que conseguiu fugir da ditadura de Fidel Castro, qual foi a sensação?
O que mais gosto a respeito dessa medalha é o seu nome: liberdade. Não pude falar sobre isso durante muito tempo porque vivi sob opressão de uma terrível ditadura que continua em vigor durante décadas. Sem eleições, sem respeito pelos direitos humanos. Em Cuba as pessoas vivem na miséria. Isso é horrível, porque é um país maravilhoso, com pessoas incríveis. Mas tem um sistema que não funciona de jeito nenhum. Sabe qual é minha maior preocupação hoje? É que muitas pessoas ao redor do mundo ainda não entenderam o que acontece lá. Acreditam que o socialismo e o comunismo são a solução para seus problemas. Sinto muito por elas, porque não têm ideia do que estão pensando ou falando. Sem liberdade não há vida.

Por que decidiu pedir asilo político aos Estados Unidos?
Eu, minha família e milhões de cubanos deixamos o país comunista porque queríamos viver em liberdade. Podemos falar sobre isso porque vivemos aquela realidade. Eu tinha um único par de sapatos, com um grande buraco na sola. Não tinha nada, apenas meu trompete. Quando cheguei aos EUA, tudo mudou. Ao longo dos meus anos tocando música em Cuba, gravei apenas um álbum, lançado pelo selo nacional. Desde que estou em solo americano, gravei 48 álbuns, tive 24 indicações e ganhei onze Grammys. Tenho 74 anos e minha paixão pela música é maior do que nunca.

“A música de Tom Jobim é linda e está muito próxima dos melhores momentos do jazz. Há riqueza de acordes e melodias, é bem elaborada. É por isso que o mundo inteiro é fã de Jobim” (Crédito:Anderson Pagani)

E sua família? O que acha da vida de imigrante?
Meu filho, de 47 anos, tinha 11 anos quando chegamos aos EUA. Ele estudou na Universidade em Miami e hoje tem sua própria empresa de design. Fazem um trabalho incrível, são fornecedores da Netflix, montam instalações de arte em todo o mundo. Somos muito gratos por tudo. Eu apenas rezo e agradeço a Deus. Minha neta de 18 anos ganhou uma bolsa de estudos para cursar a Universidade de Santa Cruz, na Califórnia. Essas coisas nos inspiram a seguir em frente.

O senhor nasceu em 1949 na pequena cidade de Artemisa, em Cuba. Como era a vida naquela época?
Vivíamos em uma pequena vila e meu pai era mecânico. Éramos muito pobres. Eu era uma criança totalmente sem esperança, não conseguia ver nenhum futuro. E então a música chegou e salvou minha vida. Minha trajetória, desde então, tem sido um sonho. Sou muito grato a Deus por todas as oportunidades que tive pela frente, pelos momentos bonitos no palco e fora dele, e pelo reconhecimento que tenho recebido ao longo da minha carreira. Na verdade, por tudo que tem acontecido, eu realmente não poderia imaginar que seria da minha vida sem a música.

Como a juventude em Cuba influenciou seu estilo musical?
Eu tinha dez anos quando comecei a tocar música. A única opção que eu tinha era ouvir música tradicional cubana. Foi o começo de tudo. Fiz isso durante alguns anos, até conseguir uma bolsa de estudos para ir à escola durante algumas horas do dia. Passei lá dois anos e meio em treinamento. Foi nessa época que comecei a aprender música clássica. Logo depois, em 1967, comecei a tocar em uma big band, quando tinha 17 anos.

Como foi a primeira vez que ouviu jazz? Quem foi o responsável por mostar o estilo?
Um jornalista me perguntou se eu estava familiarizado com o jazz. Quando eu respondi que não, ele disse que queria mostrar algo para mim. E então colocou álbuns de jazzistas dos anos 1940, Dizzy Gillespie, Charlie Parker. Foi a primeira vez que ouvi o estilo e até hoje não consigo esquecer aquele momento. Minha maneira de pensar mudou imediatamente, minha mente virou de cabeça para baixo. O jornalista disse apenas: “isso é jazz”.

Quando conheceu Dizzy Gillespie pessoalmente? Como se tornaram amigos?
Quase dez anos depois, tive muita sorte, um verdadeiro presente de Deus: Dizzy Gillespie veio a Cuba pela primeira vez. Era maio de 1977. Mostrei Havana a ele pela primeira vez, chegamos a tocar juntos uma noite. No ano seguinte ele voltou. Começamos a tocar juntos até ele falecer, em 6 de janeiro de 1993. Ele se tornou um bom amigo, um herói e um mentor. Dizzy me ajudou muitas vezes ao longo dos anos. Quando obtive o asilo político, estava em turnê com ele e fomos juntos à embaixada norte-americana em Atenas, na Grécia. Isso foi no início de 1990. A ditadura cubana havia cometido um erro: deu permissão especial para minha esposa e meu filho viajarem para a Europa e passarem um tempo comigo. Estávamos esperando há anos por algo assim e aproveitamos a oportunidade.

Por que gosta de navegar entre diferentes gêneros musicais, como jazz, clássico e música latina? O que é tão interessante a respeito dessa combinação sonora?
Costumo dizer que só existe um tipo de música: a boa. O resto eu não sei o que é e nem tenho interesse em saber.
Todos os tipos de boa música se encontram em algum momento e sempre há uma conexão que você pode te ensinar alguma coisa. Música é formada por três ingredientes principais: ritmo, melodia e harmonia. Se há uma boa melodia, uma boa harmonia e um bom ritmo, você tem boa música. É muito simples. Não importa onde, quando ou quem a compôs. Dizzy Gillespie era um grande fã de música brasileira, falava muito sobre o quanto ele a respeitava e a amava. Eu também, é claro. Todo músico ama o que vocês criaram. Se você está envolvido com jazz ou música clássica, a música brasileira sempre aquece seu coração. A bossa nova e o samba são estilos maravilhosos. Conheço muito bem, claro. Sou um grande fã de todos esses grandes compositores e belas músicas que saíram do Brasil.

O senhor vê algum paralelo entre a música que é feita em Cuba e a música brasileira?
Existem semelhanças, mas as composições cubanas tradicionais não são tão sofisticadas ou complexas em termos de harmonia. São mais simples em termos de mudanças de acordes. A música de Antonio Carlos Jobim é linda e está muito próxima dos melhores momentos do jazz. Há riqueza nas sequências de acordes e melodias, é bastante elaborada. É por isso que o mundo inteiro é fã de Jobim. Também gosto muito de Djavan, já toquei com Caetano, Simone, com muita gente no Brasil. Há muitos anos, estive no Rio e fui convidado para tocar com as escolas de samba. Amei, foi uma bela experiência. Isso me inspirou a escrever uma canção, Caprichosos de Havana. Tenho tocado essa música há quase quarenta anos.

“O que mais gosto a respeito da condecoração que recebi do presidente Barack Obama é o seu nome: ‘medalha da liberdade’. Em Cuba as pessoas vivem na miséria” (Crédito:Yuri Gripas)

São raras as pessoas que têm um filme de Hollywood inspirado em suas histórias. Como você se sentiu quando viu Andy Garcia interpretando a sua vida em For Love or Country?
Todo mundo tem uma história para contar. A HBO quis compartilhar a minha com o público. Foi uma honra e um privilégio. Fiquei ainda mais feliz porque ganhei um Grammy pela trilha sonora. Aliás, escrevi muitas trilhas sonoras, dos filmes de Clint Eastwood a Sem Tempo para Morrer, de 007. Sou muito sortudo, minha vida está além do sonho. Toquei em discos dos maiores nomes do mundo, Frank Sinatra, Tony Bennett, Barbra Streisand. Grandes artistas participaram dos meus álbuns solo, de Stevie Wonder a Plácido Domingo, de Pharrell Williams a Ariana Grande. Tive tantas oportunidades na vida que às vezes é difícil para mim compreender por que tudo isso aconteceu. Deus tem sido muito bom para mim.

O senhor é um homem religioso?
Sou católico, eu e toda minha família. Mas a vida apresenta situações estranhas. Minha neta é filha de mãe judia. Eu queria batizá-la, mas ela não permitiu. Não tenho problema com isso, até porque os cubanos são chamados de “judeus do Caribe”. Fomos apelidados assim porque somos empreendedores, bons empresários e gostamos de ser bem-sucedidos. Basta ver que, antes dos cubanos chegarem a Miami, aquele lugar era um pântano, não havia nada. Hoje a cidade é uma das mais prósperas do mundo.

Após ganhar onze Grammys, considera que o reconhecimento da indústria é importante para um músico?
É preciso apreciar qualquer prêmio porque temos de ser gratos na vida. Muitas pessoas são ingratas, elas não merecem nada. Aprecio todo reconhecimento, mas um dos maiores prêmios é estar no palco e ver a plateia vibrando e se divertindo. Isso acontece comigo toda semana. Não é exatamente um troféu, mas, no meu coração, isso às vezes é mais importante do que qualquer prêmio.

Qual é sua filosofia de vida?
É muito simples. Alguém me disse isso anos atrás e ainda uso a frase quase todos os dias. “Se você quer ver Deus sorrir, conte ao Senhor sobre seus planos.” Essa tem sido minha filosofia. Não temos controle sobre nada. O passado já é história, e o que vai acontecer amanhã ou no futuro próximo está nas mãos de Deus. Temos de fazer das 24 horas do dia de hoje o melhor que podemos em todos os sentidos, como humanos, artistas, cidadãos.

Que tipo de conselho você daria para jovens músicos do Brasil?
A música é uma inspiração, um vínculo que cura a alma. É algo imenso, que está muito além de nós. Ela nos transporta para lugares distantes e permite que a gente vivencie emoções que nem todas as pessoas têm a capacidade para experimentar. Meu conselho é: se você é apaixonado por música, tenha disciplina, dedique-se e não permita que ninguém ou nada interrompa sua paixão.