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Negacionistas: entenda suas artimanhas e por que eles ameaçam a sociedade

Rejeição às evidências, criação de teorias conspiratórias e realidades paralelas ganham força no Brasil, permeiam toda a sociedade e se espalham perigosamente pelas redes sociais

Crédito: ilustração: Wagner Rodrigues sobre fotos pexels

Os riscos de se afastar das evidências: aumento do número de mortes e violência social (Crédito: ilustração: Wagner Rodrigues sobre fotos pexels)

Por Luiz Cesar Pimentel

RESUMO

• Prática vem da rejeição de evidências incontestáveis, baseadas em consenso científico e acadêmico
• Objetivo é disseminação de ideias radicais e geração de controvérsias
• Redes sociais fomentam o negacionismo, e o Brasil é o terceiro país que mais consome mídias sociais
• Negacionismo não se restringe à propagação da desinformação para benefício próprio
• Adeptos se aproveitam de situações delicadas, como a fragilidade emocional do público, para semear mentiras sem atentar para consequências
• O messianismo é uma das características negacionistas, um canal para ideias mirabolantes – a famosa “lavagem cerebral”
• Quando política e rejeição à ciência andam juntas, a consequência é mortal. A pandemia no Brasil é um exemplo

 

O senador Luís Carlos Heinze construiu sua exposição política à base do descrédito. Quando deputado federal, em 2013, negou a diversidade do governo Dilma Rousseff ao dizer que a presidente abrigava “quilombolas, índios, gays, lésbicas, tudo que não presta”. Quando o compromisso climático do Acordo de Paris foi firmado, ele se opôs ao fortalecimento da política ambiental por considerar que era “obra de nações estrangeiras para atrapalhar o desenvolvimento nacional”. Na pandemia, já no Senado, defendeu a cloroquina como solução e a Covid como “terrorismo biológico” chinês. Ano passado, gabaritou a condição de negacionista pleno ao apresentar projeto para derrubar a limitação “do direito da população portar arma de fogo”.

Além de político, Heinze é produtor rural — possui 1.564 hectares de terras no Rio Grande do Sul, onde planta arroz. Em Brasília, age sobre o projeto de lei de licenciamento ambiental, onde propõe a isenção dos empreendimentos de estudos de impacto. No estado natal, faz campanha pela rede social para que evitem a desinformação e fake news durante a catástrofe. E postou dicas de auxílio em tempos de crise climática. Sua dúbia atuação é o retrato do perigo negacionista que vivemos no Brasil.

(Alexandre Schneider)
O senador gaúcho Luís Carlos Heinze já se posicionou contra restrição de armas, responsabilidade humana na crise climática e, durante a pandemia, as vacinas (Crédito:Pedro França)

“Alguma coisa pode ter mudado”, desconversa Heinze, em entrevista a ISTOÉ, sobre a interferência das mudanças climáticas na tragédia gaúcha. Em seguida, cita “especialistas” que minimizam tais fatores, mas é importante a compreensão de que o negacionismo não se restringe à propagação da desinformação para benefício próprio.

A sordidez da prática está no aproveitamento de situações delicadas, como usar a fragilidade emocional do público para semear mentiras convenientes sem qualquer preocupação com as consequências.

“Antes das enchentes no Sul, as estimativas dos cientistas era de que as cheias que aconteceram lá em 1941 deveriam se repetir em 360 anos. Elas vieram em 80. É um bom exemplo das mudanças climáticas”, exemplifica o pesquisador Marco Moraes, autor do livro Planeta Hostil.

De tanto proliferarem teorias nocivas, a Advocacia Geral da União (AGU) fechou acordo nesta semana com as plataformas de redes sociais para impedir a disseminação de desinformação no Sul. Estudo do Netlab, da UFRJ, aponta os dois maiores propagadores durante o desastre gaúcho:
o coach Pablo Marçal,
e o deputado Eduardo Bolsonaro.

A influência negacionista dos dois não é novidade. Uma empresa de Marçal responde a ação no Ministério Público do Trabalho por não cumprir medidas sanitárias durante a pandemia. Há dois anos, para reforçar seu messianismo — outra característica negacionista — ele levou 60 pessoas para a trilha do Pico dos Marins, no interior de São Paulo, considerada muito perigosa e com histórico de acidentes fatais. Os bombeiros que resgataram as 32 pessoas que chegaram ao cume e não conseguiram retornar disseram que foi a “pior ação vista no local”. Já o sobrenome Bolsonaro é garantia de desprezo científico histórico no País.

O termo negacionismo foi cunhado pelo historiador francês Henry Rousso ao se referir à prática de negação do Holocausto durante a Segunda Guerra. Serviu para distinguir o conceito do revisionismo histórico legítimo, aceito academicamente quando o relato foi objeto de censura ou se novos elementos são descobertos.

No negacionismo, a prática vem da rejeição de evidências incontestáveis, apoiadas por consenso científico e acadêmico, para a utilização de ideias radicais e geração de controvérsias. Assim são criadas as fake news, usadas pelos espalhadores para reivindicar o direito de produzir as próprias “realidades”, cunhadas retoricamente como pós-verdades.

O argumento é o de que as pessoas são livres em escolhas e decisões, assim como de qualquer compromisso científico. “O negacionismo vai além de um mero boato pontual. É um sistema de justiça que nega o conhecimento objetivo, a crítica pertinente, as evidências, o argumento lógico e o debate racional. Se organiza de maneira desonesta e oportunista para beneficiar aqueles com meios maiores de alcance”, diz o doutor em História Social Emiliano Unzer.

Rastro de mortos

A situação mais emblemática ocorreu durante a pandemia, quando mais de 700 mil brasileiros morreram. Durante a Comissão Parlamentar de Inquérito, em 2021, o epidemiologista Pedro Hallal afirmou que quatro em cada cinco mortes pela Covid poderiam ter sido evitadas no País se o governo, em vez de rejeitar a ciência, tivesse apoiado o uso de máscaras, feito campanhas e adquirido vacinas rapidamente. “Se estivéssemos na média mundial, 400 mil vidas teriam sido poupadas”, afirmou, quando os mortos somavam meio milhão. Foi considerado exagero pelos situacionistas. Nesta semana, a revista Cadernos de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), publicou estudo identificando que os municípios com maioria de eleitores do ex-presidente Jair Bolsonaro tiveram proporcionalmente excesso de mortes durante o auge pandêmico.

A combinação de política e rejeição à ciência é célebre causadora de mortes.
A Universidade de Harvard conduziu pesquisa relacionando o desencorajamento do antigo governo sul-africano da promoção de tratamentos comprovados para soropositivos.
Chegou à conclusão de que esse foi o fator causador de 340 mil mortes relacionadas à AIDS, 171 mil infecções e 35 mil novos casos infantis da doença.

Um dos principais problemas em relação às teorias conspiratórias da rejeição aos fatos é o espaço midiático oferecido a elas. Um dos convidados recentes do podcast mais ouvido no mundo, The Joe Rogan Show, foi o ex-professor de biologia evolutiva Bret Weinstein, que ficou famoso pela propaganda enganosa da ivermectina durante a pandemia e é contumaz propagador de falsas informações sobre HIV.

Pesquisa anterior à onipresença digital, realizada nos EUA, mostra o espaço desproporcional que o negacionismo recebe da mídia. Foram analisados 3.543 artigos que trataram do aquecimento global entre 1998 e 2002 e constatado que mais da metade deles dava peso igual a quem concordava e a quem negava a influência humana sobre o ambiente, cientificamente comprovada. Ou seja, quase 80% dos jornais analisados à época induziram os leitores a opinião equivocada.

Essa é a base do negacionismo climático, do qual vemos as consequências em formas de secas, enchentes e ondas de calor. A estrutura de rejeição chegou ao requinte de criar o Painel Não-Governamental Internacional sobre Mudanças Climáticas, para contrapor o órgão original, criado em 1990 justamente para publicar relatórios com a melhor bibliografia científica existente. Apesar de minoritário, com 1% dos climatologistas ativos, consegue grande palanque de disseminação de teses pseudocientíficas.

Climático, histórico ou científico, um dos principais recursos de quem não possui argumento embasado é a chamada evidência anedótica, que é citar uma situação casual baseada em observação pessoal. Exemplo prático são os vídeos que armamentistas propagam para elogiar armas como recursos de defesa de assaltantes baleados durante crime.

O recurso anedótico aqui não remete a piada, mas ao adjetivo da literatura médica britânica “anedoctal”, que significa “não publicado” ou “sem comprovação científica”. Ou seja, o que ganha atração, principalmente no meio digital, é a pós-verdade anedótica do vídeo do assalto e não um recente estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública que constatou que a cada 1% a mais na disposição de armas para população, as taxas de homicídios e latrocínios aumentam 1,1%. A pesquisa mostra ainda “que a difusão de armas de fogo não afeta a taxa de outros crimes contra o patrimônio, revelando que o argumento do uso defensivo da arma de fogo é mito”.

O resultado prático é que, não fosse a flexibilização do porte de armas, entre 2019 e 2021, 6.379 vidas teriam sido poupadas, já que o Exército divulgou em 2022 que haviam sido emitidos 783.385 certificados de registro durante o governo Bolsonaro para os chamados CACs (caçador, atirador desportivo e colecionador), seis vezes mais do que antes.

É importante ressaltar que as formas mais, digamos, robustas de negacionismo circulam e ganham força nas redes, e que o Brasil é o terceiro maior consumidor de mídias sociais no mundo, com 131.506 milhões de usuários, atrás apenas de Índia e Indonésia, segundo o relatório Tendências de Social Media 2023.

(Divulgação)

“Ninguém nega a ocorrência de eventos extremos no passado. Só que a crise climática os torna mais extremos e muito mais frequentes.”
Marco Moraes, pesquisador de mudanças climáticas

Nesse patamar, outros tipos de negacionismo possuem menor potencial ofensivo no País. Bastante significativa para países muito afetados por guerras, a rejeição a fatos históricos afeta pontualmente o Brasil, como no debate sobre a ditadura militar ou em um dos períodos mais tristes de nossa história, a escravidão.

Na Alemanha, por exemplo, é legalmente proibido negar as ações nazistas, enquanto no Japão crianças em idade escolar não são ensinadas sobre os crimes de guerra da nação.

Outros eixos de desprezo às evidências têm pouco efeito, como a recusa da teoria da evolução sobre as origens da Terra, da humanidade, da vida e do universo e a de que este mesmo planeta não possui forma esférica, mas plana. “Países como Suécia e Noruega ensinam na escola o combate às fake news, ao negacionismo. Já aqui, os algoritmos identificam pessoas mais conservadoras com menor índice de instrução ou até mais maleáveis a compartilhar notícias que não têm cunho científico”, diz o doutor em Ciências Sociais e professor da Casa do Saber Paulo Nicolli.

Eduardo, conhecido como filho 03 de Jair Bolsonaro, é o maior militante do clã pelo armamento da população civil (Crédito:Mandel Ngan)
(Sergio Lima / AFP)

Jaboticaba

O modus operandi político de atuação negacionista vem caracterizando o Brasil diante do restante do mundo.
A negação costumava estar associada em todos os espectros aos partidários da extrema-direita, mas nos últimos anos a questão ambiental tem ganhado adeptos entre os mais conservadores europeus e norte-americanos.
A revista Environmental Politics pesquisou 22 partidos extremistas europeus e constatou que a rejeição às mudanças climáticas não é mais o discurso predominante entre eles.
Nos EUA também, ao ponto de até o tradicional movimento moralista Council of Conservative Citizens passar a defender a preservação. O que os une é o combate aos imigrantes, junto às bandeiras também brasileiras de armamentismo, anti-vacinação, certos fatos históricos e tudo que não lhes convém.

No livro Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente, Wendy Brown, professora de Ciências Políticas da Universidade da Califórnia, mostra como extremistas fazem uso do negacionismo para justificar moralismo, autoritarismo, nacionalismo, conservadorismo cristão e até racismo. “Batalham contra a ciência e a razão e rejeitam declarações baseadas em fatos, argumentação racional, credibilidade e responsabilidade”, escreve ela na obra.

(Divulgação)

“O sistema educacional no Brasil não forma cidadãos críticos, que pensem a sociedade como um todo e estes acabam presos pela desinformação.”
Emiliano Unzer, doutor em História Social

Quando foi ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles ficou famoso por sugerir “passar a boiada” em projetos que desrespeitavam a natureza (Crédito:Mateus Bonom)
(Divulgação)

Estão aí dois políticos carismáticos que despontaram para a presidência nos últimos anos e sustentam o que escreve a norte-americana: Jair Bolsonaro e seu modelo de referência, Donald Trump. O capitão brasileiro chegou a discursar em Dubai, em 2021, para investidores árabes convidando-os a visitar a “Amazônia, que, por ser uma floresta úmida, não pega fogo e está igual a quando o Brasil foi descoberto, em 1500”.

No período dessa declaração, havia recorde de desmatamento na região, que era consumida por mais de 75 mil focos de incêndio.

Trump ficou conhecido por subverter o termo fake news ao passar a aplicá-lo para veículos tradicionais que o criticavam, e não para notícia falsa ou distorcida. “É preciso politização e organização permanente do povo. Uma comunidade organizada e formada politicamente não será alvo fácil do negacionismo”, receita o deputado Glauber Braga.

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“Criamos cenário em que fatos objetivos são menos relevantes na opinião pública do que emoções e opiniões pessoais” Paulo Nicolli, doutor em Ciências Sociais

No Dicionário dos Negacionismos no Brasil (sim, existe um), o sociólogo José Luiz Ratton, autor ao lado de José Szwako, afirma que os praticantes vão além da recusa da verdade, produzindo outra, que se pretende superior. “É nesse movimento que grupos políticos extremistas firmam raízes sólidas na sociedade e saem vitoriosos em disputas eleitorais, como o caso da eleição de Donald Trump, da saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit) e da eleição de Jair Bolsonaro”, completa.

No prefácio, o sociólogo Celso Rocha de Barros emenda que “os novos populistas minam a crença na ciência, na discussão pública baseada em fatos; minam a confiança em tudo que não reforce os preconceitos que eles possuem”. Mais à frente, acrescenta: “Assim o negacionismo da ciência justifica decisões do líder populista que levam milhares à morte, como no caso da pandemia no Brasil”. E agradece ao País pela “teimosia da democracia, da busca pelos fatos e da paciência do diálogo”.

O influenciador Pablo Marçal lidera o ranking de espalhamento de fake news durante a catástrofe climática que atinge o Sul do País há quase um mês (Crédito:Divulgação )
(Nelson Almeida)