Entenda como a tragédia no Rio Grande do Sul conseguiu unir o Brasil
Diante da maior catástrofe em extensão da história, o País se une em milhares de voluntários para socorro do Sul, que sequer começou a contabilizar prejuízos; solidariedade é fundamental para diminuir sofrimento de mais de dois milhões de pessoas prejudicadas pelas enchentes
Por Luiz Cesar Pimentel
RESUMO
• Artistas e figuras públicas se engajaram nos primeiros momentos do desastre ecológico
• Solidariedade da sociedade civil é gigante, não só em toneladas de alimentos e itens primeira necessidade…
• A mesma sociedade se voluntaria por meio de ONGS ou de forma individual e cruza águas contaminadas em busca de vidas
• Empresários e instituições oficiais de vários estados se mobilizam em ajuda ao RS
• Entidades de assistência a vulneráveis se organizam para enviar socorro ao estado
• Confederação Nacional de Municípios (CNM) estima que 102 mil casas foram danificadas pelas cheias — 93 mil avariadas e nove mil destruídas
• Governo federal suspende dívida do Estado com a União por três anos e reorienta programas assistenciais para auxiliar gaúchos
Todos os números da catástrofe que atinge o Rio Grande do Sul são superlativos. Uma a cada 20 pessoas no Estado teve que sair de casa por causa das enchentes, que atingem 90% dos municípios, em uma conta de recuperação estimada em dezenas de bilhões de reais e anos de duração, ainda escondida embaixo da água que cai. Mas existe outra contagem grandiosa naquele que já é o maior desastre em extensão territorial do País: a rede de solidariedade espontânea nos outros 25 Estados e no Distrito Federal, que formam a maior mobilização de doações e voluntariedade na história brasileira.
Em duas semanas de cheias, a Defesa Civil somava duas mil toneladas de donativos e o banco de voluntários do SUS chegou a 70 mil registros, exemplo visível de um círculo virtuoso que uniu o Brasil em assistência.
O brasileiro é generoso durante situações graves.
• No ranking mundial de solidariedade, o World Giving Index, relativo a 2021, o País ocupou o 18º lugar entre 142 nações analisadas sobre ajuda a desconhecidos, doações em dinheiro e voluntariado.
• O número refletia a época pandêmica, quando fomos severamente atingidos.
• Já no ano seguinte, marcado por incerteza política com a eleição presidencial e o empobrecimento da população, o Brasil caiu para a 89ª posição da tabela.
“Isso contribuiu para a diminuição da participação da população em doações”, diz Paula Iabiani, CEO da IDIS, empresa que representa o ranking. No atual ritmo de colaboração dos últimos dias, é muito provável que o País volte às primeiras posições neste 2024.
“Estamos sendo impactados de maneira profunda pelas experiências de outros seres humanos. Impacto cognitivo e também emocional, ligado à nossa capacidade de nos deixar sensibilizar por tudo o que o outro vivencia. Toca em nossos afetos e identificações inconscientes. Esse é o impulso primordial para a ação solidária”, diz a psicanalista Maria Homem.
Além da “maior movimentação de doações na história do País”, comemorada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva na rede social X, a corrente formada é multidisciplinar e vai além dos profissionais óbvios: médicos, bombeiros, assistentes sociais e de outras áreas da saúde.
● É o caso da SOS Rio Grande do Sul, plataforma que conecta e atualiza necessidades e disponibilidades nos mais de 400 abrigos pelo Estado. A iniciativa tem 1.3 mil voluntários que atuam a partir das demandas: atualizam o dia a dia nas casas de ajuda, arrecadam e distribuem mantimentos e dão atenção às crianças.
“Os primeiros dias foram de foco nos resgates. Mas tudo muda muito rapidamente. Estava colocando doação em caminhão, resgatando gente no alagamento, até que notei que, em cada ponto que chegava, o desespero era tão grande que faltava uma coordenação única. Montamos um time que tem adaptado nossa atuação conforme as necessidades que cada dia impõe”, diz Pedro Schanzer, um dos idealizadores da operação, sediada no Tecnopuc, centro de inovação em Porto Alegre.
Para o acolhimento às cerca de cem mil crianças desalojadas pelas enchentes, o tratamento tem que ser diferenciado, pois muitas perderam elementos muito significativos além das casas, como brinquedos e animais de estimação.
● A ONG de assistência infantil Visão Mundial Brasil, baseada em São Paulo, montou, junto a cestas básicas, conjuntos de higiene e de primeira necessidade, 15 mil “kits ternura”, compostos por:
• jogos pedagógicos,
• caderno para colorir,
• giz de cera,
• massa de modelar,
• e outros materiais para descontração.
“As crianças muitas vezes não têm noção da magnitude dos eventos que vivenciam. Elas se encontram desprovidas de suas bases mais fundamentais — casa, família, amigos — e estão sob um impacto psicológico devastador que, sem a intervenção adequada, pode deixar cicatrizes duradouras”, afirma Thiago Crucciti, diretor da ONG .
● Na mesma linha de ação, de disponibilizar o atendimento específico para cada grupo, nasceu a Cozinha Solidária, onde são preparadas refeições em abrigo para mulheres grávidas e puérperas, no bairro Cristo Redentor, na capital gaúcha. As voluntárias recebem doações, compram suprimentos, montam cardápios e organizam o espaço.
“Funcionamos com doações de alimentos ou por PIX”, diz a publicitária Kaká Cerutti, idealizadora do local.
● Em Porto Alegre também opera a Cozinha Solidaria da Azenha, do Movimento Nacional dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), com o auxílio do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e do Levante Popular da Juventude. Em 22 fogões, os 60 voluntários preparam e distribuem em torno de três mil refeições por dia. Os dois projetos contam com a ajuda da tecnologia. “A mobilização acontece pelos grupos de WhatsApp, redes sociais e por indicações”, conta Cerutti.
“Sem ação sobre o mundo real não conseguiremos enfrentar a angústia que
a tragédia causa.”
Maria Homem, psicanalista
Artistas unidos
Os recursos tecnológicos têm sido aliados importantes na mitigação do pesadelo gaúcho.
“Como usar favoravelmente a hiperconexão de mobilidade e comunicação? Como resolver problemas globais com efeitos regionais específicos? A consciência de que somos um povo e uma mesma espécie nos mobiliza de forma inédita”, afirma Maria Homem.
Um dos grupos que trafegam com maior destreza por redes e plataformas é o de artistas e figuras públicas. Logo nos primeiros dias de desastres, Lucas Silveira, vocalista da banda Fresno, nascido no Ceará mas criado em Porto Alegre, juntou colegas em uma live solidária. Em poucas horas, arrecadou R$ 2,5 milhões. “É algo de proporções inéditas. Vi na tevê a minha vizinhança e um cara passando na frente da minha casa de barco. Não entra na cabeça”, conta, pensando nos próximos passos. “Tem uma força-tarefa que vai botar milhares de voluntários para limpar as casas. Compramos, a preço de custo, mais de cem lavadoras de alta pressão, que vão ser muito úteis na limpeza quando a água baixar”.
Outros grandes nomes da música também anunciaram ações de ajuda.
• Nos dias 7 e 9 de julho, Chitãozinho e Xororó, Zezé di Camargo e Luciano, Leonardo e a gaúcha Luisa Sonza receberão as devidas turmas no Allianz Parque, em São Paulo, com renda cedida à reconstrução dos danos. “Atender às necessidades básicas é o mínimo. Hoje, independentemente de onde estamos, queremos salvar o Sul”, diz Sonza.
• Outro show beneficente, no Vivo Rio, na capital carioca, em 22 de maio, reunirá Paula Toller, Ney Matogrosso, Rogério Flausino, Milton Guedes, Barão Vermelho, Fernanda Abreu, Leo Jaime e Kleiton e Kledir.
• O comediante Fabio Porchat iniciou, na primeira semana de chuvas, campanhas de arrecadação. Recolheu toneladas de água potável, roupas de cama e banho e agasalhos para colaborar no frio que chegou ao Sul. “Doar deveria ser costume, não exceção. Vale doação de tempo, dinheiro, imagem, o que for. Se queremos uma comunidade funcional, precisamos fazer nossa parte funcionando em favor do outro”, disse à ISTOÉ.
A mobilização de socorro ao Sul atravessou fronteiras e chegou a alguns dos principais artistas pelo mundo.
• A Beygood, fundação da cantora Beyoncé que apoia algumas iniciativas brasileiras, intensificou o trabalho de estímulo à colaboração.
• A banda Metallica doou cem mil dólares, cerca de R$ 514 mil, às vítimas.
• O Guns N´Roses vem divulgando o Fundo Light Alliance Emergency como sugestão para doações.
Voluntários vulneráveis
● A prova de que a solidariedade desconhece limites geográficos e condições sócio-econômicas vem da Central Única das Favelas (Cufa), nascida no Rio, que promove integração e inclusão social em comunidades dos estados brasileiros e em outros 15 países. A organização mobilizou operação humanitária que arrecadou, em duas semanas, 20 mil kits de limpeza, 25 mil de higiene pessoal, 20 mil litros de água, cinco carretas de alimentos, 30 mil conjuntos de banho e 30 mil colchões.
Um dos prováveis destinatários das doações é o bombeiro Robinson Luiz Jobim Rosa, que atuava na evacuação de 200 pessoas ilhadas no Hospital de Pronto Socorro de Canoas enquanto sua casa era alagada em São Leopoldo. “Salvar as pessoas nos seus momentos de necessidade e angústia faz parte da nossa rotina. Sigo trabalhando porque essa é a nossa missão”, afirma ele, que ainda não sabe como fará para recuperar o que perdeu.
Felizmente, os três filhos de Jobim Rosa estavam em outro lugar, com a mãe, no dia em que a água invadiu sua residência. “O único em casa naquele momento era meu cachorro, que foi salvo por uma vizinha.”
História parecida envolveu o policial Roberto Kaminski, em Lajeado. Quando viu a água invadir seu apartamento, no primeiro andar de um prédio, foi ajudar no resgate de um casal de idosos no terceiro andar. Com a ajuda de um vizinho, levou o que foi possível para dois apartamentos vazios no quarto andar.
“Devo ter subido umas 150 vezes. Ao final estava esgotado. Não consegui resgatar a tempo tudo que gostaria”.
Em Santa Cruz do Sul, o policial Everton Toillier conta que deu prioridade, em seu resgate de objetos pessoais, às coisas da filha de um ano e dois meses. Ao ouvir pedido de socorro de vizinhos, nadou e salvou uma senhora que se segurava numa árvore, e seu cachorro. “Consegui levar os dois até um barco e voltei para casa para tentar resgatar os objetos da minha filha.”
● Muitos dos que se disponibilizaram a ajudar começaram com uma intenção e acabaram em missão diferente, como o fundador da ONG MRSC (Moradores de Rua e Seus Cães (MRSC), Edu Leporo. Com sede em São Paulo, o fotógrafo e ativista foi ao Sul para dar assistência aos animais durante as enchentes. “Você vê famílias inteiras na rua, sem saberem para onde ir. O problema vai piorar quando a água baixar e as pessoas quiserem voltar para suas casas e recomeçar. Nós saímos na frente: compramos uma carreta, um caminhão, rodos, vassouras pás, detergente, desinfetante e panos de chão para ajudar”, diz.
Em Porto Alegre, ele conta com a veterinária voluntária da ONG Audrei de Oliveira Souza. A soma de forças assistenciais foi responsável pelo resgate de 11,5 mil animais até o meio da semana, entre eles o símbolo da resistência: o cavalo Caramelo.
“A turma do resgate está exausta, cansada e com frio. Alguns estão ficando doentes. Mas continuam incansáveis na busca de sobreviventes humanos e animais”, conta.
O coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trauma e Stress da PUC-RS, Christian Kristensen, identificou entre os socorristas vários casos de burnout, o desgaste físico e emocional provocado por situações extremas de trabalho. “Alguns porque foram muito demandados, até fisicamente, outros pela sobrecarga emocional diante de tanto sofrimento. Até fadiga por compaixão, um termo que usamos para esse momento, tem acontecido”, explica.
Acenos políticos
Durante a segunda semana de enchentes, o povo gaúcho teve algumas notícias boas desde a capital federal. Em sua terceira visita à capital Porto Alegre, o presidente Lula anunciou a criação do Ministério de Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul, chefiado pelo gaúcho Paulo Pimenta, atual ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência.
A pasta tem a missão de definir o planejamento de reconstrução do Estado, distribuindo tarefas aos demais ministérios, e cobrar resultados.
O ministro da Casa Civil, Rui Costa, afirmou que o governo vai expandir o programa Minha Casa, Minha Vida nas cidades atingidas com a compra de imóveis, e direcionar outros que iriam a leilão pela Caixa e Banco do Brasil para repor o que foi e será perdido com as enchentes.
A estimativa da Confederação Nacional de Municípios (CNM) é de que 102 mil casas foram danificadas pelas cheias — 93 mil avariadas e nove mil destruídas.
Para ajudar na aquisição de bens básicos pelas famílias, como fogão, geladeira e cama, a proposta governamental é de ajuda financeira de R$ 5 mil para cem mil famílias e a inclusão no Bolsa Família, com auxílio mensal médio de R$ 672, dos desabrigados que perderam a renda temporariamente com as enchentes.
A dívida do Estado com a União foi suspensa durante três anos, o que resultará numa economia de R$ 23 bilhões, somadas as mensalidades e juros do período.
É prevista pela prefeitura de Porto Alegre a construção de uma cidade provisória para acolhimento de famílias desabrigadas, com capacidade para dez mil pessoas, no bairro Porto Seco, próximo ao centro da cidade, com alojamentos, cozinha coletiva, sanitário, coleta de lixo e área de lazer.
Canoas, Guaíba e São Leopoldo, fortemente atingidas, estão nos planos para receberem instalações semelhantes. A iniciativa é inspirada em um dos projetos de recuperação de danos causados pelo furacão Katrina no estado americano da Louisiana, em 2005.
A empresa de consultoria Alvarez & Marsal, especializada na reconstrução de cidades atingidas por eventos climáticos extremos, e que atuou após o Katrina, foi contratada para elaborar um plano de assistência.
A empreitada conta com a ex-presidente Dilma Rousseff, que é mineira, mas construiu carreira política no Rio Grande do Sul e dirige atualmente o Novo Banco de Desenvolvimento, conhecido como o Banco do Brics. Ela abriu uma linha de financiamento de R$ 5,75 bilhões para obras de reconstrução no Estado.
O plenário do Senado Federal acelerou, durante a semana, a aprovação de Projeto de Lei que cria diretrizes para a elaboração de planos de adaptação às mudanças climáticas. A intenção é adotar medidas para diminuir a vulnerabilidade ambiental, social e econômica nos episódios.
“Além de ações e políticas públicas que afetam a vida real, há que se melhorar o amparo à saúde mental, pois estamos descobrindo que a vida psíquica é tão importante e pode ter tantos efeitos sobre o real quanto a concreta”, lembra Maria Homem. “A solidariedade é o bem mais importante no momento e deveria ser aprofundada se queremos um país mais justo, desenvolvido e interessante”, conclui.
Colaboraram Mirela Luiz e Melina Guterrez, de Santa Maria (RS)