Gado tardio: chefs defendem o sabor da carne, a despeito da maciez
Cortes de gado abatido tardiamente invadem restaurantes brasileiros. A valorização das vacas velhas beneficia todas as pontas da cadeia e os ganhos vão do sabor à manutenção da história e à sustentabilidade

O empresário Guilherme Mora, do Cór, em São Paulo: câmara de maturação reúne animais de nove a 14 anos, que maturam de 60 a 100 dias (Crédito: André Lessa)
Por Ana Mosquera
Comum em países como Austrália, Suécia e Espanha, o consumo dos animais de abate tardio vem amadurecendo no Brasil — sobretudo do último ano para cá e graças ao esforço conjunto de profissionais ligados à produção rural e à gastronomia. “Quem entende de comida é o chef. Ele nos dá o selo de comprovação e qualidade de que o produto é bom”, diz Claudio Veloso Mendonça, criador do gado Curraleiro Pé Duro, na Fazenda Mutum, em Goiás. Em uma área rural mais distante – no Blue Hill at Stone Barns, a uma hora de Manhattan, em Nova York –, o chef Dan Barber concorda com ele. “Já pensou em substituir a pessoa que avalia a qualidade da carne por alguém que prioriza o sabor? Que tal um chef?”, escreveu em suas redes sociais.
Ele faz críticas ao Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, que classifica como “premium” a carne com gordura branca e pouco marmoreio – gordura intramuscular que garante suculência, sabor e maciez.


Por aqui, a resistência às vacas velhas – de gordura amarela e alto marmoreio – vem sendo rompida em restaurantes premiados ou especializados em carne.
Na câmara de maturação do Cór, na capital paulista, cortes de animais que viveram de 9 a 14 anos são maturados de 60 a 100 dias. O “ponto ótimo” de cada carne é determinado pelo sócio e curador do cardápio Guilherme Mora. “Tenho uma peça que é do primeiro lote, tem 500 dias. O que eu quero dela? Algo diferente.”
Enquanto a meta de Mora é tornar o local “a embaixada das vacas velhas”, seu fornecedor de Curraleiro Pé Duro, Veloso, vê no gado um possível produto de exportação. “Antigamente, só se comia vaca velha, mas hoje ela é um artigo de luxo, como o foie gras. É um nicho de mercado que atende a quem busca uma evolução do paladar”, diz Marcelo Malta, especialista em carnes e sócio do Malta Beef Club, no Rio de Janeiro.
“É absurdo as pessoas quererem comer carne como se fosse pudim. Mastigá-la é uma questão de resgate da fisiologia humana.”
Claudio Veloso Mendonça, criador
Faz comida boa
Por conta do abate precoce impulsionado pela grande indústria, com menos de dois anos, as vacas e bois abatidos tardiamente, com quatro anos ou mais, foram perdendo lugar à mesa. Só que as vacas velhas não deixam a desejar quanto ao sabor, que vai de notas de castanhas a Yakult, segundo Malta.
“Tenho certeza que se eu der a carne de vaca velha para o cliente provar às cegas, ela ganha em termos de sabor. Só que ela tem fibras, tem que ser mastigada. Não é como um Wagyu, que você coloca na boca e ele desaparece”, diz Mora.
O preconceito vem sendo rompido não só com relação à idade, mas quanto à origem dos animais. O nativo Curraleiro Pé Duro – que faz parte do catálogo de alimentos ameaçados de extinção do Slow Food, a Arca do Gosto –, vem sendo reverenciado na alta gastronomia.



O chef Ivan Ralston, do Tuju, em São Paulo, foi um dos grandes responsáveis por abrir a porteira para a raça nacional.
Hoje, no Evvai, que tem uma estrela Michelin, o chef Luiz Filipe Souza faz um tartare com a carne, enquanto no Cepa, o chef Lucas Dante usa o produto em pratos como o carpaccio com limão e grana padano. “As duas proteínas bovinas que tenho no menu, hoje, são de gado tardio” diz Dante.
Empenhado em educar o paladar e propor novidades aos clientes mais curiosos, ele considera o uso do gado velho como parte de uma causa maior. “Quando você respeita o tempo, colhe frutos. Não dá mais para capturar uma lagosta no período de defeso ou comer um morango fora de época.”
A sustentabilidade financeira também está atrelada ao consumo dos animais que seriam descartados. “Depois de dez anos fazendo o seu trabalho como gado leiteiro, reprodutor ou de tração, o animal precisa de apenas mais seis meses de engorda para se tornar ouro de novo”, diz Mora.