Internacional

Universidades em convulsão: não é maio de 68, mas parece

Protestos pró-Palestina se espalham em instituições americanas e lembram os conflitos dos anos 60, levantando o debate sobre a liberdade de manifestação e repercutindo nas eleições presidenciais

Crédito: Brandon Bell

Estudantes pró-palestinos enfrentam policiais no campus da Universidade do Texas, dia 24 (Crédito: Brandon Bell)

Por Denise Mirás

De Nova York, o olho do furacão, partiu uma avassaladora onda de protestos estudantis contra o massacre em Gaza, que atravessou os EUA e chegou a Los Angeles, com mais de 20 universidades de todo o país envolvidas em confrontos violentos de manifestantes com a polícia. Depois de mais de mil prisões em dez dias, forças de segurança desocuparam, na noite de terça-feira, 30, o prédio invadido da Universidade Columbia, a primeira a solicitar intervenção policial no campus, ainda no dia 17, por meio da reitora Minouche Shafik.

O movimento se expandiu para oeste, cruzou o Atlântico e alcançou a Europa, com universitários franceses também gritando pelo cessar-fogo e sendo espancados por policiais na Universidade de Sorbonne.

No 1º de maio, em meio a depredações na Universidade Columbia, uma das mais tradicionais dos EUA, mais 300 alunos foram detidos, e estudantes também iniciaram conflitos entre grupos pró-Palestina e pró-Israel em várias universidades, como a UCLA.

Desde o ano passado a disputa ideológica entre estudantes progressistas (simpáticos ao Partido Democrata) e políticos conservadores (ligados ao Partido Republicano) transformou as instituições em um campo de guerra. Muitos consideram que o mundo acadêmico está dominado por uma ideologia que coloca mais ênfase na diversidade étnica e de gênero do que no rigor acadêmico.

Em dezembro, as reitoras das Universidades Harvard (Claudine Gay), da Pensilvânia (Liz Magill) e do MIT (Sally Kornbluth) depuseram no Congresso em uma audiência sobre antissemitismo nos campi. As duas primeiras acabaram renunciando. O presidente da Câmara, Mike Johnson, foi a Columbia (NY) em 24 de abril com deputados republicanos para pedir a saída da reitora por não conter os protestos. Vaiado pelos estudantes, criticou os que impediam “a liberdade de expressão”.

A ex-reitora da Universidade Harvard Claudine Gay, e Liz Magill, da Universidade da Pensilvânia, depõem no Congresso em 5 de dezembro sobre antissemitismo nos campi. Elas renunciaram (Crédito:Kevin Dietsch)

Diante desse cenário, o que se vê são instituições de países tidos como democratas apelando à violência. No caso dos EUA, o paradoxo pode mesmo atingir as campanhas do democrata Joe Biden — que precisa se equilibrar entre os protestos pró-Palestina e os investimentos pró-Israel — e do republicano Donald Trump. Ou até influir na eleição de 5 de novembro, que decidirá o próximo presidente americano.

Democracia na academia

Lucas Leite, professor de Relações Internacionais na FAAP e especialista em EUA, diz que “em alguma medida” se pode fazer uma comparação da solidariedade aos palestinos demonstrada nas universidades americanas com os protestos iniciados por estudantes, como aqueles contra a Guerra do Vietnã — onde morreram 250 mil soldados americanos. E que se encorparam no movimento que ficou conhecido como Maio de 1968, em uma Paris sitiada por barricadas e coquetéis molotov contra a polícia, e que passou de reivindicações estudantis e sociais à exigência da saída do presidente conservador Charles de Gaulle.

“Uma das consequências de toda essa movimentação social foi determinante para os EUA, então governado pelo presidente Lyndon Johnson. A pressão foi muito grande. O governo democrata perdeu as eleições de 5 de novembro de 1968, com Hubert Humphrey. Venceu o conservador Richard Nixon, com a promessa de acabar com a guerra. Foi dito — e feito.”

Estudantes escalam o Hamilton Hall na Universidade Columbia, na terça-feira (30) (Crédito:Mary Altaffer)

Paulo Niccoli Ramirez, sociólogo e antropólogo com cursos na Casa do Saber, lembra que a população judia americana hoje é a grande responsável por processos de desenvolvimento econômico na área de tecnologia, com serviços e aplicativos, muitos incorporados pelo governo. “É um laço tão profundo que fortalece uma defesa ideológica de qualquer atitude de Israel, posto avançado supostamente em defesa da democracia e, claro, dos interesses econômicos na região do Oriente Médio.” Daí a simbiose forte entre a cultura judaica e o poder político americano — e a saia justa de Joe Biden e outros políticos.

Desde 7 de outubro do ano passado, quando o grupo terrorista Hamas entrou em Israel e matou 1.170 civis, fazendo 250 reféns, o governo de extrema-direita comandado pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu reagiu de forma desproporcional: ao menos 34 mil civis foram mortos, além dos 75 mil feridos.

Nem a resolução da ONU pelo cessar-fogo imediato, aprovada em março, foi obedecida. A varredura de Israel partiu do norte e já está no sul, onde Gaza faz fronteira com o Egito, com foco em Rafah, cidade onde o milhão de refugiados palestinos está espremido, sem ajuda humanitária e acumulando mortes por fome.

Os protestos nas universidades americanas tiveram início ainda em outubro passado, quando uma carta de 33 grupos de estudantes da Universidade Harvard culpou Israel pela violência na região, o que motivou críticas imediatas de ex- alunos e congressistas.

O rastilho de pólvora foi aceso — e explodiu na Universidade Columbia, em Nova York, agora em abril. Estudantes montaram acampamento, bloquearam a entrada do campus com uma barreira de móveis e uma corrente humana — como nos anos 1960, contra a Guerra do Vietnã — e ocuparam o prédio Hamilton Hall, rebatizado de Hind’s Hall (em homenagem a uma criança palestina morta). Foram seguidos por milhares de alunos em mais 20 campi espalhados pelos EUA.

O presidente da Câmara, Mike Johnson, critica o antissemitismo e pede a renúncia da reitora da Universidade Columbia (NY), dia 24. Estudantes vaiaram (Crédito:Melissa Bender)

Há um esgotamento, diz Paulo Ramirez, por parte da opinião pública e sobretudo dos estudantes, em relação aos altos gastos para sustentação da defesa de Israel. Mas se muitas universidades têm contratos com empresas daquele país, o que os estudantes reivindicam é que essas verbas sejam cortadas e Biden retire o apoio a Israel, seja militar ou econômico, assinala o professor, lembrando que a Universidade Columbia é celeiro de juristas e políticos que ocuparão postos importantes na sociedade em futuro breve. “Então, é claro que a opinião de seus estudantes importa muito dentro do governo americano”, diz, o que deixa a saia ainda mais apertada para o candidato Biden.

Repressão e violência

Um violento confronto com a polícia foi detonado em 17 de abril, quando a reitora Minouche Shafik, de ascendência árabe, requisitou oficialmente forças de segurança para arrancar as barracas dos estudantes — e prisões foram feitas por todo o país, de Portland a Yale, de Pittisburgh a Rhode Island (onde o ponto-chave da negociação com os alunos foi justamente a retirada de investimentos por parte de companhias que apoiam Israel).

Enquanto isso, estudantes também se mobilizavam na Europa, tendo a Sorbonne de Paris como centro de irradiação — e de repressão policial contra atos pró- Palestina —, para evitar mais focos no país. Ou um “revival” de Maio de 1968, quando barricadas e confrontos estouraram pela capital francesa, em movimento que influenciou manifestações contra o status quo em várias partes do mundo.

Estudantes na Universidade Sorbonne criticam o presidente Emmanuel Macron quando discursava na instituição, no último dia 25 (Crédito:Victoria Valdivia)

“A radicalização do corpo diretor das próprias universidades deixa de lado o diálogo, a negociação, a construção de pontes, quando a discussão deveria ser levada para dentro do campus, que é o lugar de debates”, assinala Lucas Leite. “A truculência vai totalmente contra a lógica de quem defende a livre expressão. Esse paradoxo é o que define os EUA: eles assumem a ideia de liberdade irrestrita, que na prática é uma abertura para a intolerância.”

Ao mesmo tempo em que há repressão da polícia contra universitários, diz o professor, supremacistas brancos pregam racismo, segregação, “tudo o que há de pior na humanidade”, sem qualquer problema com a polícia, sem qualquer tipo de coerção.

Universitários protestam na Espanha e demonstram solidariedade aos moradores de Gaza. O movimento atingiu 40 cidades pelo país (Crédito:Senhan Bolelli)