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Senna, o inesquecível: a obstinação, a tragédia, a minissérie

Crédito: Rainer W. Schlegelmilch/Getty Images

Ayrton Senna: ético, espiritualizado e bem-sucedido, era um exemplo para o povo brasileiro (Crédito: Rainer W. Schlegelmilch/Getty Images)

Por Eduardo Marini, Luiz Cesar Pimentel, Denise Mirás e Felipe Machado

RESUMO

• Ayrton Senna é o maior mito do esporte individual brasileiro
• Trinta anos após a morte, o tricampeão mundial de Fórmula 1 ainda é lembrado com paixão e reverência por milhões de admiradores no País e no mundo
• As causas da morte no acidente que o vitimou em Imola continuam a gerar polêmica entre os especialistas 
• A trajetória espetacular e a busca implacável pela perfeição serão destacadas na minissérie que será lançada este ano

 

O que você fazia na manhã daquele domingo, 1º de maio de 1994? Feita a ilustres e anônimos, a pergunta atravessou a semana no País. Ecoou com insistência na internet, em programas de rádio, especiais de TV e conversas informais. Ela requer memória — e memória é questão fundamental e indispensável quando se trata de Ayrton Senna da Silva, tricampeão mundial de Fórmula 1, 80 pódios, 41 vitórias e 65 pole-positions em 161 Grandes Prêmios disputados.

Ético, espiritualizado, insaciável em seu perfeccionismo, implacável na busca do primeiro lugar (“o segundo é o primeiro dos derrotados”, costumava repetir), sempre disposto a ligar suas glórias individuais a símbolos e referências nacionais, Senna teve sua brilhante trajetória nas pistas – e a vida – interrompidas tragicamente numa batida violenta na curva Tamburello, no circuito italiano Enzo e Dino Ferrari, em Imola, Bolonha.

É correto dizer que o caminho abreviado do tricampeão seja o da existência física. Isso porque, trinta anos depois do muro da Tamburello, milhões de fãs brasileiros e estrangeiros ainda reverenciam e sentem dor pela ausência daquele que ainda é o maior fenômeno da história do esporte individual do País.

Dois pontos contribuem decisivamente para a manutenção do alto grau de lembrança e idolatria a Senna, mesmo após tanto tempo.
Primeiro: ele morreu de forma abrupta, inesperada, após protagonizar vários triunfos de um representante brasileiro em território europeu, contra pilotos ricos europeus, em um esporte milionário controlado por europeus. Partiu aos 34 anos, ainda jovem para a profissão e, ainda mais, para a vida. Deixou, na imensa legião de admiradores que se emocionava nas manhãs de domingo ao vê-lo festejar vitórias com a bandeira brasileira em punho, ao som do “tan-tan-taan, tan-tan-taan”, a sensação de que muitos pódios, vitórias e títulos ainda viriam, mesmo com o surgimento de novos talentos como o alemão Michael Schumacher e o espanhol Fernando Alonso.

Viviane Senna, do Instituto Ayrton Senna: 36 milhões de crianças atendidas em três mil cidades brasileiras (Crédito:Roberto Setton)

Segundo: Senna acumulava conquistas, e ajudava a enterrar o que ainda pudesse se insinuar como complexo de vira-latas, no momento em que o Brasil lutava contra índices pornográficos de inflação – em junho de 1994, último mês antes do Plano Real, ela bateu nos 47,5% -, o retorno da democracia ainda se consolidava e a Seleção Brasileira não vencia uma Copa do Mundo havia longos 24 anos, desde o incomparável time de 1970.

Um contexto delicado para perder o único herói vencedor do momento. Não bastasse, o terceiro título de Senna, três anos antes, em 1991, é, até hoje, o último de um brasileiro na Fórmula 1.

Bandeira em mãos: símbolo de um sucesso do País no exterior (Crédito:David Jones)

Sua morte detonou uma série de mudanças para fortalecer a segurança na F-1. A tal ponto que especialistas afirmam: uma colisão no mesmo ponto do circuito italiano, atualmente, não seria fatal.

A curva Tamburello, hoje, não é mais uma curva. Em seu lugar foi feita uma chicane, espécie de desvio artificial para diminuir a velocidade no trecho.

A morte do tricampeão forjou a mudança de muita coisa para melhor, no automobilismo e fora dele. Mas uma permanece igual há três décadas: Ayrton Senna da Silva permanece um herói inesquecível.

Senna em ação: sucesso na pista lavava a alma dos brasileiros (Crédito:Jean Marc Follete)

Ídolo de Hamilton

O maior vencedor da Fórmula 1, o britânico Lewis Hamilton — sete títulos, como Schumacher, mas com 103 vitórias contra 91 do alemão —, também se lembra do que fazia naquele domingo. Hamilton tinha dez anos. Ao voltar de uma competição de kart, seu pai, Anthony Hamilton, deu-lhe a notícia.

“Lembro-me como se fosse ontem. Fui para um muro junto à linha férrea porque não queria que meu pai me visse chorando. Foi muito forte”, conta ele no livro Ayrton: o Herói Revelado, do brasileiro Ernesto Rodrigues, lançado em 2004 e atualizado agora.

Lewis Hamilton com o capacete do ídolo: lembranças com o pai (Crédito:Mark Thompson)

No ano passado, Hamilton correu no GP Brasil, em Interlagos, com um capacete verde e amarelo em homenagem a Senna e um Cristo Redentor na parte de trás. Dois anos antes, comemorou o primeiro lugar no circuito com o mesmo gesto adotado por Ayrton ao vencer provas – uma volta pela pista com a bandeira brasileira nas mãos. “Ele me inspirou. Ainda é e sempre será meu herói, pelo que fez nas pistas e fora delas, por aquilo que defendia e pelo que era capaz de fazer no carro”, diz o britânico.

Parte do fascínio exercido por Senna em admiradores como Hamilton pode ser percebida até mesmo em alguns dados estatísticos.
De acordo com o IBGE, 316 crianças foram batizadas como Ayrton nos anos 1980. O número mais do que triplicou na década seguinte, durante o auge da carreira do piloto.
Há 458 ruas e avenidas com o seu nome espalhadas pelo País, além de uma rodovia e dezenas de estátuas.

Na avaliação do jornalista italiano Leonardo Guzzo, autor de Veloz Como um Vento, que aborda de forma romanceada a vida do brasileiro, o mito de Senna foi construído porque ele se pressionava ao limite em busca da melhor versão possível de si mesmo. “O herói clássico representa o excesso. Simboliza o limite que a humanidade pode chegar. Senna recusava essas limitações”.

A forma como Senna nos deixou, afirma o jornalista, ampliou o mito. “Senna dizia que corria para vencer, não sairia da luta e iria até o fim. E há o ato final: a morte. Ele morre correndo, na batalha, como os heróis antigos faziam”, declarou à Agência Brasil.

Fim de semana trágico

Naquele fim de semana, Senna seguia preocupado com segurança, tema recorrente nas reuniões de pilotos em 1994. Nos treinos de classificação para o GP de San Marino, na sexta-feira 29 de abril, Rubinho Barrichello passou por uma zebra a 250 km/h e capotou. Foi levado inconsciente e com fraturas à clínica do autódromo e, depois, a um hospital de Bolonha.

Não bastasse, no sábado 30 o austríaco Roland Ratzenberger morreu aos 33 anos, quando a asa dianteira de seu Simtek se soltou a 300 km/h e o carro explodiu contra o muro.

Senna estava abalado, a ponto de pedir o cancelamento da corrida, o que foi negado. Também não conseguiu contar com a união dos pilotos, à exceção de seu amigo Gerhard Berger, austríaco como Ratzenberger, que também havia se acidentado gravemente em 1989 na mesma Tamburello onde Senna pararia naquele 1º de maio na batida de sua Williams, a 211 km/h, contra o muro.

O reforço de segurança adotado após a morte do brasileiro funcionou por 20 anos.

No GP do Japão de 2014, outro gravíssimo acidente custou a vida do francês Jules Bianchi. A nova perda levou a F-1 a promover novas alterações.

Hoje os carros têm:
crash test (teste de resistência),
proteção lateral para a cabeça,
e o halo, estrutura em arco acima do cockpit, a cabine onde fica o piloto.
A célula de segurança, que envolve o piloto, foi aprimorada para reduzir danos em caso de choque.
O capacete Hans (de head and neck), com um sistema de proteção de cabeça e pescoço, é obrigatório desde 2003.
Após a morte de Bianchi, qualquer acidente torna obrigatória a redução de velocidade em torno de 40%.

Uma reivindicação de Senna na véspera de sua morte foi a limitação da velocidade nos boxes. A ideia também foi colocada em prática depois e, atualmente, é de 80 km/h, com exceções, como Mônaco, onde é limitada a 60 km/h.

Os autódromos estão mais seguros. Exemplo disso é o próprio Enzo e Dino Ferrari, em Imola. Além da chicane na Tamburello, a curva Villeneuve, onde Ratzenberger sofreu o acidente, tornou-se uma variante.

Muito se falou sobre a causa da morte do brasileiro.
Durante anos, ela foi atribuída à lesão provocada pela barra de suspensão. O médico Alessandro Misley, então membro da equipe de socorristas em Imola, discorda. “Isso é falso. Um pedaço da suspensão entrou pelo capacete e provocou uma lesão frontal de poucos centímetros, o que é sério, mas não foi o que levou Senna à morte. Ela foi causada pela fratura da base do crânio por causa do forte impacto gerado pela desaceleração. A lesão da barra de suspensão é secundária. Fosse apenas por ela, ele estaria vivo”.

Na opinião de Galvão Bueno, amigo do piloto, foi o fim de semana mais trágico da história da F-1. Em entrevista ao podcast O Assunto, o locutor revelou que Senna iria homenagear Ratzenberger naquele 1º de maio. “Antes da corrida, ele chamou Julian Jacobs, seu empresário na Europa, e disse: ‘se vira e arruma uma bandeira da Áustria’. Julian não sabia onde conseguir. Senna respondeu: ‘problema seu, me traga uma bandeira da Áustria. Vou colocá-la no carro, ganhar a corrida e prestar a homenagem”.

Em relação ao boato de que Senna estaria indeciso sobre disputar a corrida, Galvão foi categórico: “Ele estava perturbado, claro, mas dizer que não queria correr ou sabia que ia morrer? Isso é absurdo.”

Gabriel Leone como Senna e o piloto andando de kart com o pai, Miltão, interpretado por Marco Ricca (acima): primeiras cenas divulgadas na internet tiveram boa aceitação do público (Crédito:Divulgação )

No dia seguinte à derrota do Brasil na Copa de 1986, para a França, em 21 de junho, Senna venceu o GP de Detroit, nos EUA. Ironicamente, deixou dois franceses a comerem poeira nos segundo e terceiro lugares: Jacques Laffite, da Ligier, e Alain Prost, da McLaren.

Para comemorar, pediu emprestada a bandeira de um torcedor e deu início ali ao ritual que marcaria todas as suas vitórias futuras e fortaleceria a aura de mito criada em seu entorno. A partir dali, seu nome mudaria.

Nos registros, é verdade, continuaria a ser Ayrton Senna da Silva. Aos ouvidos de seus milhões de súditos espalhados pelo País e o mundo, porém, ele passaria a ser, daquele momento em diante, Ayrton Senna do Brasil.

Das pistas para o streaming
Minissérie sobre a vida do piloto chega ainda este ano à Netflix

(Divulgação)

A ligação de Ayrton Senna com o povo brasileiro é tão grande que muitas vezes esquecemos que o piloto é, na verdade, um ídolo de alcance mundial.

Desde sua morte, em 1994, foram produzidos dezenas de documentários, entre eles Senna – O Brasileiro, o Herói, o Campeão, do britânico Asif Kapadia, e The Right to Win (O Direito de Vencer), do holandês Hans Pool.

Este ano, porém, chega à Netflix a produção mais aguardada: a minissérie Senna. Os seis epsódios foram produzidos pela Gullane Filmes e dirigidos por Vicente Amorim e Júlia Rezende.

As primeiras imagens divulgadas nessa semana provocaram furor na internet. Pela repercussão positiva, o elenco parece ter sido aprovado:
Gabriel Leone (Senna),
Pâmela Tomé (Xuxa),
Julia Foti (Adriane Galisteu),
Alain Prost (Matt Mella),
o chefe de equipe da McLaren, Ron Dennis (Patrick Kennedy),
além do locutor Galvão Bueno (Gabriel Louchard).

O núcleo familiar do piloto também participa da série:
Camila Márdila é Vivianne Senna, sua irmã,
Marco Ricca interpreta Miltão, o pai,
Susana Ribeiro é Zaza, a mãe,
e Nicolas Cruz é Leonardo, seu irmão.

Além do Brasil, as filmagens aconteceram na Argentina e Uruguai.

(Divulgação)

O ponto de partida é o começo da carreira automobilística do tricampeão de F1, quando ele se muda para a Inglaterra para competir na Fórmula Ford, e segue até o acidente em Ímola, na Itália, no GP de San Marino.

Arquivos

Como parte das homenagens à data, a Globoplay lançou a série documental Senna por Ayrton, onde o próprio piloto é o narrador de sua trajetória. Ela é composta por três episódios, com 50 minutos de duração cada. Com direção de Rafael Pirrho e Rafael Timóteo, a produção conta os principais momentos da vida do piloto por meio de áudios de entrevistas selecionadas a partir de mais de 150 horas de arquivos. Além de conteúdo oficial da FIA (Federação Internacional de Automobilismo), Senna por Ayrton utiliza imagens das emissoras Globo, Cultura, SBT e Bannd.