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Freio na gastança: como a lei das desonerações acabou num limbo

Crédito: Mateus Bonomi

Lula e Pacheco não se entendem, e desoneração acaba sendo discutida na Justiça (Crédito: Mateus Bonomi)

Por Vasconcelo Quadros

RESUMO

• Decisão do ministro Cristiano Zanin suspendendo efeitos da desoneração marca vitória de Lula no confronto com Congresso
• Parecer freia o apetite sobre o Orçamento, mas agrava a crise com o Legislativo
• Pacheco diz que a judicialização foi “erro político primário”

O governo venceu aos trancos e barrancos a primeira batalha. Com a chancela do Supremo Tribunal Federal (STF), colocou num limbo a lei das desonerações e, de quebra, retomou o comando sobre as matérias de natureza financeira, conquista que considera essencial para o equilíbrio fiscal e o controle do Orçamento, perdido desde a desastrada gestão de Jair Bolsonaro. Há uma sinalização do presidente da República de que a tática do jogo mudou e, sem votos no Congresso para enfrentar a fortaleza da direita, o governo vai, sim, judicializar as matérias mais importantes relacionadas à economia.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, vinha há tempos buscando uma formula que freasse a voracidade do Congresso às verbas do Orçamento. E ela chegou melhor do que a encomenda: a decisão de Zanin, que já tem cinco votos a zero no plenário virtual do Supremo — mas que está suspensa com pedido de vistas do ministro Luiz Fux —, considera que há vícios de inconstitucionalidade, restabelece o elo perdido da Lei de Responsabilidade Fiscal, pela qual não se pode gastar mais do que as previsões concretas suportam e suspende imediatamente o efeito das desonerações na folha de pagamento dos 17 setores da economia e dos municípios já para este mês de maio.

A lei aprovada pelo Congresso aponta genericamente os impactos financeiros. Lula esteve distante da polêmica, mas na quarta-feira, dia 10, durante evento sobre o Dia do Trabalho, em São Paulo, colocou uma pá de cal no tema. “No nosso País não haverá desoneração para favorecer os mais ricos, e, sim, para favorecer aqueles que trabalham.” Se a mensagem for levada ao pé da letra, a crise institucional sobe mais um degrau.

Enquanto aguarda o julgamento do STF sobre o fim das desonerações, o Senado aguarda uma negociação política para superar a disputa (Crédito:Edilson Rodrigues)

A decisão de Zanin serviu também como uma guinada radical na relação do Executivo e Legislativo. Anunciada no exato momento em que o presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, recebia na residência oficial os ministros Rui Costa (Casa Civil) e Alexandre Padilha (Relações Institucionais) e atendia os apelos do governo para adiar a sessão conjunta em que 33 vetos do governo seriam votados na quarta-feira da semana passada, a iniciativa de judicializar — seguida horas depois pelo despacho monocrático de Zanin — caiu como uma bomba no Congresso, gerando um contra-ataque articulado que coloca Executivo e Legislativo em conflito.

Depois de repetir que divergências fazem parte da política para evitar confronto com o STF, Pacheco considerou a intervenção de Lula e da AGU junto ao Judiciário como “um erro político primário” do governo.

O senador afirmou que isso só aumenta a desconfiança entre os Poderes num momento em que se negociava politicamente uma saída para as desonerações. De fato, naqueles dias, o líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT), e o da Federação que apoia o governo, Odair Cunha (PT), apresentaram um projeto propondo alternativas, mas a maioria conservadora do Congresso, depois de derrubar o veto, se insurgiu contra a MP da reoneração editada por Haddad no final do ano passado, quando já havia dado a disputa como liquidada.

A vitória do conservadorismo era dada como favas contadas.

A decisão de Zanin foi uma surpresa. Já as reações revelam que aumentou a animosidade: o relator do projeto de desoneração, senador Angelo Coronel (PSD), apontou “uma traição” do governo que, segundo ele, apunhalou os congressistas pelas costas.

“Foi uma grande falta de respeito com o Congresso. O governo prega paz e harmonia, mas age com beligerância.”

O autor da lei, senador Efraim Filho (União), acha que a judicialização foi uma iniciativa incoerente e um equívoco político e jurídico que pode custar caro ao governo. Segundo ele, não existe a inconstitucionalidade arguida na ação direita de inconstitucionalidade defendida agora pela AGU na MP de Haddad e no projeto da liderança do Planalto na Câmara. “Foi um jogo de perde-perde.”

As compensações à prorrogação da desoneração estão, garante Efraim, na aprovação de medidas como os fundos exclusivos, taxação de offshores, Carf, apostas online, arcabouço fiscal, Reforma Tributária e outras medidas que a AGU e Zanin consideraram genéricas, longe do mérito do projeto.

“Recorrer ao STF no caso das desonerações foi um erro político primário.”
Rodrigo Pacheco, presidente do Senado

Ministro Cristiano Zanin, do STF (Crédito:Carlos Alves Moura)

Correlação de forças

Contabilizados os estragos, o saldo é favorável ao governo.

Na véspera do feriado de 1º de Maio, como primeiro efeito da judicialização, o Senado aprovou o Perse, o programa de incentivo ao setor de eventos, como o Planalto queria: custo de R$ 15 bilhões até 2026, sem a inflação que a relatora, Daniella Ribeiro (PSD), havia embutido no texto, o que acrescentaria cerca de R$ 1,5 bilhão na conta final.

Na conclusão mais lógica, houve mudança na correlação de forças, com o governo agora ocupando a cabeceira da mesa de negociações e, num cenário inverso do que estava colocado, com o poder de determinar onde pode ou não ceder nas desonerações.

•  O primeiro a comemorar foi Haddad, que sugeriu ao Congresso que se alie ao governo pela busca do equilíbrio fiscal, ou seja, se os congressistas têm poderes para gerar despesas, que também apontem as fontes de receita. “Virou um parlamentarismo que, se der errado, não dissolve o Parlamento, e sim a Presidência da República.”

Pacheco não gostou do conselho, que classificou como “admoestação”, citou os esforços do Congresso para ajustar as contas públicas, mas focou seu descontentamento em Lula. Conhecido pela diplomacia, ficou irritado em ser “fritado” num momento em que ajudava o governo a se organizar para enfrentar os vetos.

O líder do governo foi à sua casa, na segunda-feira, para se explicar e pedir que o diálogo não fosse interrompido. Um rompimento seria o pior dos mundos. O presidente do Congresso ouviu, mas não levou em conta os apelos do líder ou do núcleo político do Palácio do Planalto.

Na mesma segunda cancelou sua ida a Nova Lima, em Minas Gerais, sua base, numa viagem que faria ao lado de Lula, para deixar claro o descontentamento e, desde então, vem aumentando o tom das críticas. Diante de uma sugestão do líder da oposição no Senado, Rogério Marinho (PL), para que tomasse a frente num debate que acabe com a “hipertrofia” entre os Poderes e que interrompa a invasão das prerrogativas do Legislativo, disse que o diálogo pressupõe a compreensão dos limites de cada Poder e que, embora a suspensão da desoneração esteja valendo por decisão do STF, o governo não deve dar as costas para os municípios, estados e setores que empregam. “O Executivo deve se abrir para poder ouvir a sociedade.”

Quanto ao STF, ressalvou que respeita qualquer decisão, mas que isso não significa que a Corte deixe também de conhecer as dificuldades de quem precisava da desoneração, como empresas que, com a liminar de Zanin, agora já nem sabem o que fazer com a folha de pagamento de maio.

Pacheco aguarda um sinal de Lula para uma conversa a portas fechadas, única opção que pode impedir a escalada da crise, mesmo depois de Jaques Wagner afirmar que a vitória no tapetão do STF não significa para o governo o encerramento do diálogo sobre desoneração. “Não é um ponto final”, acenou o líder do governo.

Para Wagner é necessário definir a grande questão levantada em todas as conversas por Haddad, que é o fim das prorrogações do benefício: “Quando é que sai? Foi prorrogado por um ano, dois anos, agora quatro. No próximo será oito anos? Isso gera insegurança jurídica até para investidores estrangeiros, que não sabem se a regra aqui vai ser perenizada”. Para o líder governista, que classificou a crise como “um mal-estar”, assim como houve no caso do Perse, Haddad e todo o governo está aberto à busca de um denominador comum.

“No nosso País não haverá desoneração para favorecer os mais ricos” Lula, presidente da República

As desonerações fizeram parte de uma estratégia emergencial adotada pela ex-presidente Dilma Rousseff em 2011 para aliviar alguns setores da economia do peso dos tributos na folha de pagamento, num momento em que as relações de trabalho, especialmente na mídia, afundavam na precarização.
Em vez de 20% sobre os salários, as empresas optaram por pagar algo entre 1,5% e 4,5% sobre o faturamento bruto.
A medida acabou sendo renovada por 13 anos consecutivos.

O Congresso alega, com base em estimativas do setor, que no período foram gerados mais de nove milhões de empregos, números que o governo contesta, afirmando que a desoneração só representou alívio ao caixa das empresas por derrubar a contribuição patronal à Previdência, mas não gerou novos empregos.

Os dados do governo são de uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), mostrando que no período os mesmos setores fecharam 960 mil postos de trabalho, enquanto a Receita Federal deixa de arrecadar cerca de R$ 9 bilhões por ano.

Outros cerca de R$ 10 bilhões representam a não contribuição dos municípios com população superior a 156 mil habitantes.

No final do ano passado, a oposição impôs a prorrogação da desoneração como mais uma derrota ao governo. Rogério Marinho chegou a afirmar que a única coisa que o governo não poderia ter feito agora era ter rompido o acordo firmado com Congresso sobre a desoneração, um padrão que, segundo ele, havia sido usado também no marco temporal para demarcação de terras indígenas, também derrubado pelos parlamentares. “Fomos surpreendidos pela forma sorrateira como o governo se comportou.”

Jaques Wagner lembra que as reações da oposição, operadas basicamente pela base bolsonarista, eram curiosas, já que o governo anterior também havia judicializado, sem sucesso, a derrubada do veto sobre a mesma desoneração.

“A judicialização a cargo do ministro Zanin (acima) foi uma iniciativa incoerente que pode custar caro ao governo”, diz o senador Efraim Filho (Crédito:Jefferson Rudy)