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Crise interminável: entenda a guerra de poder entre governo, Congresso e STF

Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Lula diz ter chegado a um entendimento com Lira: não adianta brigar o tempo todo (Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Por Vasconcelo Quadros

RESUMO

• Longe de conciliação, crise entre os Poderes gera insegurança jurídica no País
• Disputa do tipo ‘quem manda mais’ ameaça economia com série de pautas-bomba e alimenta conflitos sociais
• Senado discute projeto do quinquênio, que pode impor rombo de R$ 82 bilhões no Orçamento e afetar os estados

A prolongada disputa entre Legislativo, Executivo e Judiciário transformou a Praça dos Três Poderes, em Brasília, numa Torre de Babel. Na segunda- feira, 22, sete meses depois de o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubar a tese de um marco temporal para demarcação de terras indígenas, o ministro Gilmar Mendes, num despacho sui generis, mas que reflete a balbúrdia institucional, suspendeu as ações contra a lei que está em vigência e determinou que Congresso, órgãos do governo, especialmente a AGU e Procuradoria Geral da República, se entendam sobre uma proposta que não agrida a Constituição e afaste os riscos de “severa insegurança jurídica” que pode fomentar os conflitos entre indígenas e fazendeiros no País.

A decisão é cômoda para o governo, que não tem votos para se contrapor aos conservadores, mas alarga o abismo que separa STF do Congresso, que havia derrubado o veto e instituído lei específica sobre o tema.

Na reunião semanal com os ministros, realizada na segunda-feira, o presidente Lula explicitou as dificuldades do governo com o Congresso: ele admitiu que o Planalto só conta efetivamente com 70 dos 513 deputados e nove dos 81 senadores, o que o obriga a negociar os anéis para não entregar os dedos, adequando o mandato do Lula 3 para uma linha de centro-direita como, aliás, demonstram pesquisas apontando o deslocamento do eleitorado.

Lula disse que é o governo quem precisa dos presidentes do Senado e da Câmara, e não ao contrário. “Quem aprova o Orçamento, e os projetos, são eles. Então é o governo que precisa ter o cuidado de manter a relação mais civilizada possível”, afirmou o presidente, que, no entanto, não quer que o clima de tensão entre os Poderes permaneça por mais tempo.

“Não vamos viver em uma eterna briga, pois se isso acontecer não aprovamos nada. Não tem divergência que não possa ser superada”, disse Lula que as considera como “coisas normais”.

“Quando um não quer, dois não brigam”, disse Padilha a Lira, que o chamou de “incompetente” e “desafeto pessoal” (Crédito:Jefferson Rudy)

Erros e acertos

O governo vetou parcialmente projetos como o da saidinha de presos e do marco temporal, mas não gastará tanta energia para reverter a decisão do Congresso de derrubá-los. O foco do governo é estancar a corrosão do Orçamento e seus efeitos na economia, ameaçados por uma série de pautas-bomba.

Na terça-feira, o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA) conseguiu retirar da pauta um projeto do senador Espiridião Amim (PP-SC) que prevê o abatimento das dívidas estaduais e resultaria num rombo de R$ 20 bilhões, mas não conseguiu evitar o perigo maior ao Orçamento: na mesma noite, contrariando a expectativa do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que não queria nem discutir o tema, o Senado realizou a primeira sessão para debater a PEC do quinquênio que, aprovada, custará ao governo cerca de R$ 82 bilhões até 2026 em aumentos salariais escalonados às carreiras jurídicas como magistrados e Ministério Público.

Wagner, que explica precisar de mais tempo para discutir o tema, diz que Haddad está preocupado com o impacto catastrófico do projeto nas contas públicas e previu um efeito cascata com repercussão no País. “Os governadores devem vir a Brasília para reclamar dos impactos nos Estados. Não gosto de anuênio nem quinquênio. Prefiro discutir um plano de cargos e salários”, disse o líder.

No outro lado do prédio do Senado, quase ao mesmo tempo, a Câmara aprovava a inclusão de 29 atividades ligadas ao setor de eventos (Perse), cujos estímulos e isenções previstas nessa lei, tirarão do Orçamento um naco de R$ 15 bilhões.

O senador Humberto Costa (PT-PE) diz que num Congresso em que a força do centro vem se tornando residual, e com uma disputa polarizada entre esquerda e o que é atualmente um Centrão reforçado, as pautas-bomba viraram uma estratégia da extrema direita. “Guardam um interesse muito claro de inviabilizar o Estado brasileiro, de produzir uma crise política e com isso tentar chegar ao poder, seja pela eleição ou pelo golpe de estado, como já tentaram. O jogo da extrema direita será sempre colocar as instituições em risco, num canto da parede”, disse Costa.

Há uma queda de braço também pelos recursos das emendas parlamentares que, até junho, devem resultar na liberação de R$ 20,5 bilhões, mas que, pelo “ritmo lento”, virou o pomo da discórdia entre o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) e o Palácio do Planalto, uma briga que Lula diz ter apaziguado depois de um encontro informal e fora da agenda com o deputado no Palácio da Alvorada, no domingo, 21.

Antes, Lira havia mirado sua artilharia contra o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, a quem chamou de “incompetente” e “desafeto pessoal”, mas depois, fiel ao seu estilo “morde e assopra”, reconheceu que errou. Lira negou que tenha aceitado incluir na pauta da Câmara cinco CPIs pedidas pela oposição ao governo, mas que ninguém espere que o recuo seja uma declaração de paz com o governo.

Alvo preferencial dos ataques da direita no Congresso, Alexandre de Moraes procura o diálogo institucional com Pacheco, autor da PEC das drogas (Crédito:Ton Molina)

“Tenho erros e acertos, não tenho problemas de reconhecer o erro quando faço”, disse Lira à TV Globo. Ele afirmou, no entanto, que reservadamente já vinha reclamando da falta de articulação política no governo e garantiu que havia um grande esforço dele e do líder do governo, José Guimarães (PT-CE) “para que as matérias chegassem maduras à Câmara”.

Na quarta-feira, num evento de entidades empresariais, em Brasília, Lira afirmou que nunca faltou com suas obrigações “para que Lula tivesse todas as condições de fazer um bom primeiro ano de mandato”. Disse que a Câmara é tratada como “o patinho feio do Congresso” e defendeu seu estilo aguerrido, afirmando que o governo “lida com um presidente que tem a coragem de dar a cara para apanhar pelos outros 512 deputados”.

Ao misturar institucionalidade com intrigas pessoais na briga com Padilha, o deputado queria, na verdade, derrubar o ministro, a quem culpava pela indefinição do governo sobre o cumprimento do calendário de liberação de dinheiro de emendas e por, supostamente, privilegiar o PT, PSB e MDB em detrimento ao Centrão.

Lula avisou que, “por teimosia”, Padilha ficaria mais tempo no cargo do que o previsto, mas acabou escalando o ministro da Casa Civil, Rui Costa, que na terça-feira foi ao gabinete de Lira para discutir a liberação de recursos previstos nas emendas de comissões, que não são obrigatórias.

De olhos nas eleições municipais, os deputados querem os R$ 5,6 bilhões que estavam previstos num acordo preliminar, mas o governo acenou agora com R$ 3 bilhões.

Governo entra no STF

O Congresso avançou tanto sobre o Orçamento que só agora o governo se deu conta que projetos como o da desoneração da folha de pagamento dos municípios acima de 156,2 mil habitantes — parte da desoneração de 17 setores da economia – terá impacto maior do que o previsto. Em vez dos R$ 4 bilhões do cálculo inicial, com a redução da alíquota de imposto ao INSS de 20% para 8%, o tesouro deixa de contar com R$ 11 bilhões só dos municípios.

O contra-ataque do governo foi anunciado na quarta, 24, pela Advocacia Geral da União (AGU), que entrou com uma ação no STF pedindo que toda a lei da desoneração, cujo veto foi derrubado em dezembro, seja considerado inconstitucional por não apontar alternativas e impactos financeiros no Orçamento da União, como exige a Constituição, a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Lei de Diretrizes Orçamentárias.

O alívio aos 17 setores da economia equivaleria, segundo a Receita Federal, em perdas de R$ 10 bilhões ao governo federal. Ao judicializar a disputa, o ministro Jorge Messias, da AGU, argumentou que se a lei não for anulada pelo STF, as contas públicas serão afetadas. “Não é possível que seja colocado em risco o sacrifício de toda a sociedade para beneficiar alguns setores específicos”.

Na semana passada, o ministro Flávio Dino, do STF, pediu explicações a Lula, Lira e ao presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, sobre a liberação de recursos através da chamada emenda PIX, mecanismo semelhante ao orçamento secreto, pelo qual parlamentares destinam recursos a estados e municípios sem identificar uma finalidade específica.

O montante para este ano, a maior parte com previsão de liberação até meados do ano, será de R$ 8,2 bilhões, um recorde que alimenta suspeitas de corrupção e privilégios por causa das eleições. Os recursos federais chegam aos municípios e são misturados num caixa único cuja distribuição fica a critério do gestor. É uma confusão generalizada que escapa de controles.

Escalado pelo presidente, Rui Costa tenta entendimento com Lira e líderes na Câmara para superar crise e definir calendário de emendas (Crédito:Mateus Bonomi)

O conflito mais sério entre os poderes envolve o Congresso contra o STF. Como no caso do marco temporal, enquanto o STF discutia a descriminalização da maconha para consumo, o presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), apresentou a PEC das Drogas, aprovada na semana passada, considerando crime o porte qualquer quantidade de drogas para o usuário.

O STF paralisou o julgamento com um placar de 5 a 3, mas deve definir o tema nos próximos dias. O ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, negou que o debate envolva mais uma crise entre os Poderes. “De vez em quando se diz que há crises entre os Poderes. Não me parece que haja. O Congresso legisla, o Executivo eventualmente impõe alguma sanção, que pode ser derrubada pelo Congresso. Isso tudo dentro da Constituição”, disse Lewandowski.

O ministro fez uma defesa da manutenção da saidinha de detentos para visitas familiares com o veto do governo ao texto do Congresso, mas acabou derrotado.

O tema da vez é o conflito aberto pelo arrogante bilionário Elon Musk, dono do X, antigo Twitter, que a direita congressista vem tratando como paladino da liberdade de expressão para confrontar as decisões do ministro Alexandre de Moraes (STF), que determinou a retirada da rede de conteúdos considerados antidemocráticos.

Uma comissão de parlamentares da direita, liderada pelo deputado Eduardo Bolsonaro, vai participar de uma audiência pública na Câmara dos Representantes dos Estados Unidos para apoiar Musk e para divulgar as decisões de Moraes sobre a retirada de perfis da rede, o que foi considerado pela AGU, em representação ao STF e à Procuradoria Geral da República, como provável prática de crimes por se tratar de peças que integram um inquérito que corre sob sigilo no Brasil. Como se vê, a crise entre Poderes está longe de terminar.