“Nunca me vendi ao mercado”, diz a melhor chef do mundo, Janaína Torres
Por Ana Mosquera
Um dos prêmios mais importantes da gastronomia global é do Brasil. E feminino. Janaína Torres foi eleita a “Melhor Chef Mulher do Mundo” pelo The World’s 50 Best Restaurants levantando a bandeira da cozinha cotidiana brasileira. Hoje, por sinal, ela é presidente do instituto de pesquisa Brasil A Gosto, fundado em 2006 pela chef Ana Luiza Trajano e que foca no acesso aos ingredientes nacionais e na valorização da identidade cultural brasileira. Para ela, a importância da premiação está em incentivar as cozinheiras do País a ingressarem no mercado, mas os méritos da “Dona Onça” não se resumem aos títulos que ela coleciona. Ativista alimentar, foi responsável por capacitar merendeiras de 1.800 escolas estaduais da capital paulista, beneficiando mais de dois milhões de alunos, lutou pela sobrevivência do setor na pandemia e milita pela restauração do centro da cidade mais populosa da América do Sul. Avessa a partidos e adepta do diálogo com quem está no poder, é otimista com a união Lula-Alckmin, mas, também na política, segue fiel à força feminina. “Eu queria mesmo que a Sâmia Bomfim se candidatasse à Prefeitura de São Paulo.” Jurada do Top Chef (Record), ela está à frente d’A Casa do Porco, do Bar da Dona Onça e de outros três estabelecimentos gastronômicos, e agora foca no próximo projeto: o restaurante À Brasileira, também na região central de São Paulo. “Viver nos centros urbanos é um desafio, mas não adianta abandoná-los. Temos que entender a vulnerabilidade e conviver com o problema.”
Como é, para você, ser eleita a melhor chef mulher do mundo, após ter sido por tanto tempo referenciada como a “cozinheira de panela de pressão”?
Quando eu ganhei como melhor chef da América Latina, eu fiquei feliz por ser uma cozinheira que nunca negou suas origens e que não se vendeu para o mercado fazendo apenas fine dining. Mais do que afetiva, a minha cozinha é a genuína cotidiana brasileira. E eu bati muito o pé por ela, apesar de ter sido e ainda ser muito criticada. Na verdade, eu sempre fui reconhecida por 90% das pessoas da área, mas a elite gastronômica me rejeitava, por achar que a cozinha moderna é feita apenas com equipamentos sofisticados. Eu penso que uma obra da arte naif, popular, pode ser transformada em abstrata se o artista progredir e evoluir, mas a raiz seguirá a mesma. Eu amo a cozinha como um todo, e longe de mim não gostar das tecnologias, mas eu acredito demais na cozinha primitiva, na sua base sólida e concreta. E fiquei ainda mais contente porque é um prêmio que não é meu. Ele é de muitas mulheres que perpetuam as técnicas da cozinha do dia a dia no País.
O Brasil está em alta, em diversas áreas. Acha que estamos vivendo uma nova independência do País pelas artes, um Modernismo atualizado?
Eu acredito muito na evolução do Brasil, mas nós sofremos demais com a política. Com tantas perdas que tivemos nos últimos anos, nós queremos nos segurar no Brasil. E como é que defendemos nosso País se não estamos dentro de uma Câmara Legislativa, se não nos candidatamos à política? Abraçar, acolher e valorizar o Brasil é a única arma que nós, como cidadãos brasileiros, temos. Penso que é por isso que há uma maior valorização do Brasil como um todo, na música, na moda, na gastronomia, na arte. É uma forma de autodefesa. Nós queremos recuperar o País.
Temos observado avanços no campo da alimentação, como a criação do Programa Cozinha Solidária e o Brasil Sem Fome. Qual sua opinião quanto ao atual governo sobre o tema?
Eu sempre fui apartidária e trabalhei com políticas públicas com quem está ali no momento. Eu era uma mulher pouco politizada antes de ser voluntária na merenda escolar do Estado de São Paulo e achava que não teria tempo, como muitos pensam. Aí está o erro! É preciso ter muitas pessoas lutando por uma alimentação melhor, algo que só percebi quando adentrei no campo das políticas públicas. E sorte que na época o governador era o Geraldo Alckmin, que era muito amável e também queria a transformação. Eu até fui acusada por amigos cozinheiros de estar trabalhando para a direita e que era uma mulher conservadora. Pois agora eu quero a minha defesa (risos). Acho que o Lula fez uma coisa brilhante ao juntar as políticas. As pessoas não necessitam pensar igual, as ideologias não precisam ser as mesmas: o primeiro ponto é ser “gente”. Não acho que a política que temos hoje com Lula seja a melhor do mundo, mas ela é de muito diálogo. Estou feliz e otimista com o atual momento do Brasil.
Também foram incluídos mais produtos in natura nas cestas básicas e a nova rotulagem nos alimentos, mas o País ainda sofre com alto índice de obesidade, como entre as crianças. Qual seria uma solução?
É preciso investir em educação alimentar dentro das escolas públicas, com aulas de cozinha prática. A disciplina seria uma solução inclusive para a Saúde, porque reduziríamos o número de pessoas adoecendo nos hospitais. Se com toda a orientação da rotulagem que temos agora já estamos repensando, imagina se ainda tivermos aulas nas escolas. As empresas vão quebrar. E é por isso que há uma “guerra dos rótulos”, porque os grandes sabem que vão diminuir as vendas. Agora, preferimos ter pessoas obesas, com diabetes e colesterol alto, tomando Ozempic, do que ensinar educação alimentar… Vende-se o que não presta e, depois, o remédio para consertar os erros de uma vida toda. São duas indústrias gigantescas trabalhando juntas. Primeiro temos que ser humanos, depois empresários, seja em que área for. O que eu não quero para mim, eu não quero para os outros.
Nas últimas semanas, circulou a frase do Ziraldo “Ler é mais importante que estudar”. Você, que largou a escola aos 14 anos, concorda com ele?
Eu tive o privilégio de conversar com o Ziraldo. Ele era um homem muito interessante, perspicaz nas vivências humanas, no olhar sobre o cotidiano. O ensino hoje é muito careta. Tem um professor, uma lousa com um conteúdo para se copiar, uma cadeira atrás da outra. Só que as pessoas esquecem que nós somos diferentes e que só conseguimos chegar em um lugar comum por meio do coletivo. As escolas estão muito atrasadas e não entenderam a evolução educacional, que são as vivências. Como você prende a atenção de uma criança que é hiperativa? É por isso que a gastronomia puxa tantos hiperativos e ansiosos, por ser dinâmica. Ali você escuta a teoria e exercita a prática. Existe movimento dentro da cozinha e é por isso que ela gera tantas oportunidades. Ela transforma a vulnerabilidade em algo melhor. E outras áreas também: o esporte, a música, a arte.
Como a convivência com nomes tão importantes da cultura brasileira contribuiu para a sua trajetória?
Eles foram muitos, né? O primeiro desenho do Bar da Dona Onça é do Paulo Caruso. Nós fazíamos saraus em que ele tocava piano e depois desenhava. Iam também o Chico Caruso, o Maurício de Sousa, o Luís Fernando Veríssimo e tantos outros com que tive a honra de estar. Ser dona de bar também é estudar. Eu sempre gostei muito do convívio do bar, mas de bares intelectuais, onde falávamos sobre patrimônio histórico, a chegada dos automóveis no Brasil, arquitetura, literatura, arte, tudo. O centro sempre foi um lugar de manifestações e movimentos sociais, e muita coisa se aprende na rua. É um privilégio ter nascido e permanecer na região, assim como escrever um livro sem nem ter terminado a oitava série.
Você é uma das pessoas ativas na revitalização do centro de São Paulo. Quais os desafios para melhorar a qualidade de vida na região?
Eu não gosto da palavra revitalização, porque sempre houve vida no centro. Eu diria restauração ou preservação, porque ele nunca parou. É manifestação acontecendo, imigração chegando, rodoviária mudando de lugar, roubo de correntinha, depois de toca-fita e agora de celular. Morar nos centros urbanos é um desafio, mas não adianta abandoná-los. Temos que entender a vulnerabilidade do nosso País e conviver com o problema. Eu já ouvi que é um absurdo o melhor restaurante do Brasil estar no meio da cracolândia. Algumas pessoas dizem que não vão frequentá-lo por conta disso, mas no fundo elas não querem encarar a realidade. Mas eu não vou tirar os usuários dali, é um problema de saúde pública. O centro é um coração aberto a todos, bolivianos, peruanos, haitianos, caribenhos. Ele abriga as ONGs, os movimentos sociais que ajudam as pessoas. Ele sempre vai ser cíclico, ficando melhor ou pior, e para isso serve o diálogo com os políticos e a mídia. Temos que lutar pelo lugar que estamos e não achar que vivemos na Suécia.
Quais são as suas expectativas para as Eleições Municipais de 2024?
Eu estive em uma conversa com o Ricardo Nunes com relação à Segurança Pública, e ele me pareceu um homem de bastante diálogo. Eu não conheço o Boulos, mas eu tenho uma afinidade forte com a Marta Suplicy, que foi muito boa prefeita para a cidade. Ainda estou em dúvida, porque tenho medo da descontinuação das ações, mas também tenho receio de voltar a ter insegurança após as eleições. Mas acho que vou priorizar a mulher, então talvez a Marta seja uma boa candidata para mim. Eu queria mesmo era que a Sâmia Bomfim se candidatasse à Prefeitura de São Paulo. Eu admiro demais a luta dela. Para estar naquele lugar, gritando por todos os vulneráveis, ela é uma mulher muito corajosa e destemida. Ela sabe muito bem o que aconteceu com a Marielle Franco e continua ali, lutando pela justiça do nosso País.
Acha que um dia as categorias femininas deixarão de existir nas premiações?
Vai demorar muito para acontecer. Catarina de Médici levou a confeitaria da Itália para a França, e ali até havia mulheres, mas na cozinha profissional de restaurantes nós fomos coadjuvantes por muitos anos. São séculos de atraso a serem compensados. São retratações sociais e os prêmios também têm essa função, a de trazer à tona uma mulher para que outras se inspirem a entrar no mercado. Quando uma mulher vê outra que cozinha feijoada, moqueca e arroz com feijão sendo reconhecida, ela pensa que também pode ser uma profissional. Quando eu ganho um prêmio, tenho certeza que muitas mulheres pensam: ‘Olha, ela nasceu em um cortiço! Será que eu que estou aqui em uma comunidade, em um quarto-cozinha, e cozinho bem não consigo entrar também no mercado?’. Muitas mulheres que fazem marmita em casa para vender acham que não tem uma profissão, que ser cozinheira não é profissão. Por isso eu luto tanto para ser chamada de cozinheira.