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Big Techs na mira do STF: eleições devem apressar regulamentação das redes

Crédito:  Mateus Bonomi

O ministro Dias Toffoli anunciou que o STF vai votar uma ação que pode responsabilizar redes sociais. Nos bastidores, estimativa é que decisão já tenha maioria (Crédito: Mateus Bonomi)

Por Marcos Strecker e Marcelo Moreira

RESUMO

• Novas regras do TSE contra fake news levam o Google a anunciar fim da propaganda política
• Com o Congresso capturado pelo radicalismo e submetido à pressão das companhias, caberá ao STF disciplinar até junho a terra sem lei virtual.
• A tendência, como em todo o mundo, é responsabilizar as plataformas por crimes nas redes

A ação do TSE de atualizar as regras sobre propaganda eleitoral já leva as Big Techs a se movimentarem. Na última quarta-feira, o Google anunciou que vai proibir a veiculação de anúncios políticos no Brasil a partir de maio no Google Ads, sua ferramenta de publicidade para o Youtube, resultados na busca e demais tipos de publicidade. Além de proibir o uso de Inteligência Artificial (IA) para criar e propagar conteúdos falsos nas eleições, a Corte também determinou que as empresas mantenham repositório para acompanhar informações dos anúncios, como conteúdo, valor gasto, anunciante e público-alvo. O Google considerou que os critérios do Tribunal para a restrição da propaganda eram muito amplos e decidiu suprimir todo o anúncio político. “Temos o compromisso global de apoiar a integridade das eleições e continuaremos a dialogar com autoridades em relação a este assunto”, comunicou a empresa.

É uma resposta esperada, mas ainda há dúvidas sobre a eficácia da norma. O clima de polarização já é dado como certo para outubro, o que ainda impõe grandes desafios.

Ao contrário do pleito municipal de 2020, Jair Bolsonaro e o presidente Lula serão cabos eleitorais fortes este ano. E ambos apostam no clima de confronto entre os dois polos.

Nada garante que a desinformação não vá mais uma vez criar um ambiente tóxico propício para crimes e manipulações. Contra isso, a esperança continua sendo a Justiça.

O ministro Dias Toffoli já anunciou que vai levar ao plenário do STF até o fim de junho uma ação que pode estabelecer a responsabilidade civil das plataformas por crimes nas redes, reformando o Marco Civil da Internet. O Supremo já realizou audiências com especialistas e empresas para isso.

A medida pode levar à punição das companhias por conteúdos postados pelos usuários que provoquem danos a indivíduos ou à sociedade, penalização à qual estão imunes até agora. A avaliação nos bastidores é que já há maioria na Corte para tomar essa decisão.

O problema atravessou a Praça dos Três Poderes porque o Congresso não consegue se decidir sobre a questão, apesar da simpatia do Planalto pela matéria.

Procrastinação é a palavra que está mais sendo lembrada pelos defensores da regulamentação de redes sociais. A decisão do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP), de trocar no último dia 9 o relator do Projeto de Lei das Fake News (PL 2.630/20), que trata do assunto, desagradou a base governista na Casa e aumentou a preocupação de que a parcela contrária a qualquer regulação esteja levando vantagem nos debates ao ponto de neutralizá-lo e colocá-lo em segundo plano.

A remoção do deputado Orlando Silva (PCdoB) da relatoria causou certa surpresa e alguma revolta entre parlamentares da base do governo.

O projeto estava parado e Lira mostrava pouco empenho para que andasse. A alguns interlocutores, o presidente da Câmara afirmou ter interesse em destravar logo o processo, mas não da forma como o assunto está sendo tratado. Disse que quer um relator “isento”, nem de esquerda nem de direita, que consiga um equilíbrio entre as “diversas visões sobre a liberdade e expressão”.

Chegou até a afirmar que queria resolver tudo em 40 dias, mas não está demonstrando muito esforço em indicar um novo relator.

(Mateus Bonomi)

“Preservar ao mesmo tempo a liberdade de expressão e um patamar mínimo de civilidade é a grande encruzilhada que o mundo vive.”
Luís Roberto Barroso, presidente do STF

Lisura das eleições

Para parlamentares preocupados com a lisura do processo eleitoral, a demora atenderia aos objetivos de grupos contrários à regulamentação e que trabalham, direta ou indiretamente, a favor das Big Techs.

Contrariado, Orlando Silva está em silêncio e evita críticas à manobra de Lira. Prefere deixar os ataques a cargo da contundente deputada Fernanda Melchionna (PSOL). “A troca de relator é uma clara manobra para esticar o assunto e empurrar os debates para mais longe.” Para ela, “está conveniente para a extrema-direita. Evita-se o debate e prolonga-se a existência da ‘terra de ninguém’ das mentiras e das notícias falsas, tornando o ambiente ainda mais nocivo.”

A desinformação virtual imperou nas duas últimas campanhas presidenciais, inclusive questionando a própria legitimidade das urnas. Em 2019, isso levou o STF a abrir o notório inquérito das Fake News, que aumentou de escopo, foi incorporado a outras investigações e hoje é a principal peça de apuração das ameaças golpistas de Jair Bolsonaro e seus apoiadores.

A mão firme do STF não foi suficiente para sensibilizar os parlamentares. O Projeto de Lei está há quatro anos entre idas e vindas na Câmara, depois que o texto original, de autoria do senador Alessandro Vieira (MDB), foi aprovado no Senado.

No ano passado, já na gestão de Lira na Câmara, empacou de vez. Há quem enxergue na protelação mais uma das retaliações de Lira contra o governo por conta dos pleitos não atendidos por Lula e seus ministros.

Vieira não discute a tramitação na Câmara, mas ressalta a importância de haver a regulamentação antes das eleições deste ano para evitar prejuízos aos eleitores.

Outro caminho pode ser ainda mais demorado. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, também lançou uma proposta ainda incipiente de atualização do Código Civil que prevê a responsabilização das Big Techs pelo conteúdo publicado por elas.

No Congresso, os críticos do texto elaborado por Orlando Silva celebraram o freio imposto por Lira, mas evitam soltar rojões. Admitem que colocar a discussão na estaca zero favorece “quem teme pelas ameaças de cerceamento à liberdade de expressão”, como comentou um parlamentar da oposição, que pediu o anonimato.

Nas tribunas da Câmara, deputados do PL, partido de Bolsonaro, não cansam de bombardear o PL 2.630/20. Bia Kicis, fervorosa bolsonarista, qualificou o texto original de Vieira e as alterações promovidas por Silva como ”um soco direto, um golpe na liberdade de nos expressarmos nas redes sociais”.

O “QG das Fake News” inaugurado pelo TSE para o pleito de outubro. No Congresso, a lei contra a desinformação empacou (Crédito:Luiz Roberto)
(Zeca Ribeiro)

Mudanças com IA

A polêmica brasileira acontece num momento em que os especialistas questionam cada vez mais a evolução da internet como meio de comunicação, do seu impulso à alienação à instrumentalização política.

No País, tem sido uma ferramenta útil para Bolsonaro buscar sua reabilitação após o fiasco de 8 de janeiro. Acuado pelas investigações no STF, o ex-presidente evitou criticar a Corte na manifestação que comandou no Rio de Janeiro no dia 21, no Rio de Janeiro.

Mas contou com um aliado barulhento que não estava em Copacabana: Elon Musk. O bilionário, assim como Donald Trump e o capitão, pregam o triunfo libertário e temerário da desinformação sem controle que tem abalado as instituições públicas pelo mundo há quase dez anos.

Os três sonham em acabar com a imprensa. Musk não hesitou em desafiar as prerrogativas da Justiça brasileira tentando eximir seu X (ex-Twitter) de cumprir ordens judiciais, pediu o impeachment de Alexandre de Moraes do STF e acaba de vilipendiar o Judiciário australiano que ordenou a remoção dos vídeos do esfaqueamento de um religioso em Sydney na sua rede. Propagandear (e lucrar) com crimes faz parte do negócio.

Pressão das redes

O fenômeno não respeita fronteiras, por isso é preciso uma reação também mundial. As Big Techs têm o privilégio de operar globalmente, mas no conforto de salvaguardas fiscais e legais nas suas sedes.

A Europa é o bloco mais avançado em limitar a terra arrasada informacional.

No Brasil, o próprio PL da Fake News quase foi votado na Câmara há um ano, com o pedido de urgência aprovado, mas a iniciativa foi atropelada por uma campanha feroz de algumas empresas em conjunto com os bolsonaristas.

Na época, o Google incluiu um link contra o texto em destaque em seu site e só recuou após medida cautelar determinada pela Secretaria Nacional do Consumidor, vinculada ao então ministro da Justiça, Flávio Dino, atual ministro do STF. Segundo a plataforma, a lei poderia “aumentar a confusão sobre o que é verdade ou mentira”, apesar de ter sido concebida exatamente para regular as companhias combatendo as fake news.

Nos EUA, o presidente Joe Biden sancionou também na quarta-feira uma lei que foi aprovada no Congresso e vai obrigar os chineses a vender o TikTok, sob risco de banimento no país.

Nesse caso, mais por uma questão de segurança, pois os americanos não querem o governo chinês tenha controle sobre uma parcela crescente da opinião pública americana. Não é medida excepcional, apesar de alguma grita contra a ameaça de bloqueio. A própria China impede que a rede de Elon Musk opere em seu território – e o empresário, como tem negócios bilionários no país asiático, nunca se queixou dessa “censura”, apesar de se sentir livre para atacar o Judiciário brasileiro.

Nos países democráticos, é claro que a nova forma de comunicação deve ser uma tribuna livre para a expressão. Mas também é cada vez mais evidente para especialistas que há limites que precisam ser respeitados, com os quais a própria imprensa precisou evoluir historicamente.

Analistas que se encantaram com a nova tecnologia estão cada vez mais céticos diante dos perigos da manipulação política e da monetização do extremismo. A difusão de fetiches e a promoção do tribalismo já viraram questão de saúde pública.

Nesses espaço onde tudo é enviesado, não é possível haver debate intelectual honesto nem qualquer conteúdo de rigor jornalístico, que acaba submetido à pichação rasteira, às fofocas e às campanhas movidas por robôs ou algoritmos. Trata-se apenas de cancelar, acuar e desqualificar o oponente.

E os problemas se ampliam. Com a Inteligência Artificial, chat bots, voice bots ou avatares já tomaram o lugar dos humanos nas redes. Os robôs já respondem por quase 50% das interações. O conteúdo sintético ocupa cada vez mais espaços, sem qualquer compromisso moral com as pessoas.

Há estudos apontando que 99% do conteúdo on-line será gerado por IA, em cinco anos. Quem fica feliz com a repercussão de suas falas nas redes deve saber que está falando com robôs em grande parte das vezes.

Aquele perfil no Tinder, inclusive a foto, também é de um bot. A internet feita pelas pessoas — e, principalmente, para o bem das pessoas — já é coisa do passado.

Apesar de esse espaço hoje servir a um projeto global da extrema-direita, a tecnologia é pendular e não serve apenas para essa ideologia. Há duas décadas, era a esquerda que tinha ocupado essa tribuna. O interesse na normatização varia de acordo com a conveniência política ou histórica, daí a necessidade de impor regras perenes que salvaguardem o interesse da sociedade.

Impor perdas financeiras ou banir a circulação em caso de descumprimento legal têm sido as únicas medidas eficientes para fazer recuar essas corporações. Ações antitruste seriam um caminho natural nos EUA, mas esse passo ainda está distante pelo clima polarizado no país.

Mesmo atrasado em relação à Europa, o Brasil tem condições da avançar. O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, comentou a necessidade de o País se debruçar sobre o tema na última segunda-feira, na Fiesp, em São Paulo. Para ele, o uso das plataformas digitais leva à desinformação, à mentira, a teorias conspiratórias e à legitimação de discursos de ódio.

Apontando que vivemos em um mundo que enfrenta um momento complexo, lembrou que a livre expressão é essencial para democracia e para o esclarecimento do debate público. A modernidade veio com um custo, afinal. “Como preservar ao mesmo tempo essa liberdade e um patamar mínimo de civilidade é a grande encruzilhada que o mundo vive”, resume o ministro.

É preciso agir, caminho que o Supremo felizmente parece determinado a seguir.