Política

“O Judiciário não pode ser trampolim para a política”, diz ministro do STJ Luis Felipe Salomão

Crédito: Cristiano Mariz

“Nossas instituições não aceitarão novas aventuras golpistas”, diz ministro Luis Felipe Salomão (Crédito: Cristiano Mariz)

Por Germano Oliveira

Corregedor Nacional de Justiça (CNJ) e ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Luis Felipe Salomão, 61, tem como papel constitucional o de ser “o juiz dos juízes”, ou seja, acompanhar os processos disciplinares envolvendo os 18 mil juízes federais brasileiros, mas nesta entrevista à ISTOÉ ele prefere fazer a defesa do Poder Judiciário, afirmando que os magistrados do País são uns dos que mais trabalham no mundo, dando conta de 80 milhões de processos por ano, quase um para cada dois habitantes. Ele defende que além dos militares, também magistrados e procuradores da República deveriam ser submetidos a uma quarentena de pelo menos oito anos para deixarem a carreira e ingressarem na atividade política. “Evitaríamos assim que o uso da toga e da carreira no Judiciário sejam utilizadas como trampolim para a carreira política.” Nascido em Salvador, Salomão deve retornar ao STJ em agosto, e na condição de um dos maiores magistrados do País ele lembra que o bilionário Elon Musk deve se submeter “ao império das leis brasileiras” ou ficar sujeito às sanções previstas dentro do Estado de Direito. Para ele, o País esteve à beira de uma ruptura democrática, mas as instituições mostraram que amadureceram o suficiente para não aceitar novas aventuras golpistas.

O sr. julga que as acusações do bilionário Elon Musk ao ministro Alexandre de Moraes significam uma ameaça à soberania nacional?
O ministro Alexandre de Moraes, cujo trabalho acompanhei no TSE, é um guardião da democracia. Ele, com enorme sacrifício pessoal, vem, por meio de suas decisões, garantindo a efetividade da nossa democracia. E todas as empresas, nacionais ou estrangeiras, devem se submeter ao império das leis brasileiras e das decisões dos tribunais superiores. Quando isso não ocorre, ficam sujeitas às sanções e é simples assim em um País que respeita o Estado de Direito.

O sr. entende que o Poder Judiciário foi fundamental para impedir a recente tentativa de golpe de Estado?
O Judiciário cumpriu um papel muito relevante nesse processo da garantia da democracia, não só do processo eleitoral, em que o TSE teve um papel de centralidade, criando precedentes e julgando questões em que se coibiam notícias falsas. O TSE assentou que disparar fake news por meio de mensagem eletrônica pode desequilibrar o pleito e gerar cassação de mandatos. O TSE chegou a cassar o deputado Fernando Franceschini, do Paraná, que atentou contra as urnas eletrônicas. O tribunal foi criando jurisprudência que cristalizou a defesa da democracia e do sistema eleitoral. Garantiu as eleições e impediu qualquer atentado contra o processo democrático. Também o STF teve um papel central, garantindo as decisões do TSE. Ao mesmo tempo, garantiu decisões importantes como na questão da vacina durante a pandemia, época em que havia um negacionismo muito grande. O tribunal foi firme também quanto aos atentados do dia 8 de janeiro de 2023. O ministro Alexandre, de forma corajosa, tem conduzido os processos com equilíbrio e muita determinação. Proferindo sentenças considerando o contraditório, mas aplicando as sanções, mesmo quando se trata de militares. Acho que o Supremo foi muito feliz no momento em que colocou a questão da inexistência do poder moderador das Forças Armadas, como foi reconhecido pelos próprios militares.

O ministro Gilmar Mendes chegou a dizer que o militar que desejar participar da política tem que deixar a farda. O sr. concorda com essa postura?
Acho que não só o militar. Tem que ter uma quarentena também para os juízes, para membros do Ministério Público e para algumas autoridades policiais e militares. Acho que precisa haver uma quarentena para se sair da carreira e ingressar na atividade política, porque se não tiver a quarentena, pode haver alguns desvios, como aconteceu em alguns casos recentes, em que o uso da toga e da carreira no Judiciário foram utilizadas como trampolim para a carreira política. Em nenhum país do mundo isso é possível. Tem que ser uma quarentena razoável, de no mínimo 8 anos.

“Todas as empresas, nacionais ou estrangeiras, devem se submeter ao império das leis brasileiras” (Crédito:Maja Hitij)

O sr. acha que estivemos muito próximos de uma ruptura democrática?
Enfrentamos um período muito grave. Foi uma situação limite o que aconteceu no 8 de janeiro. Eu diria que houve riscos, mas que as instituições funcionaram. O Supremo Tribunal Federal funcionou, o TSE funcionou, o Judiciário de primeiro grau funcionou, a Corregedoria e o CNJ funcionaram, assim como o Congresso, o Executivo e o Ministério da Justiça. Todas as instituições brasileiras funcionaram para rechaçar esse risco, que foi real, tanto é verdade que todos os que cometeram crimes no 8 de janeiro estão sendo julgados.

Vale lembrar que até mesmo parte dos militares não aceitou a ruptura democrática.
É um sinal também inequívoco de vitalidade do nosso sistema democrático. As instituições funcionaram, e o Exército foi uma delas. Foi garantidor da democracia. O comportamento isolado de um ou outro integrante do Exército não pode ser confundido com a instituição, pois ela preservou a democracia e continua preservando. É um legado que a nossa geração vai deixar para a história e para as futuras gerações, o de não permitir a violação da democracia, conseguida a duras penas. O Brasil amadureceu e demos uma demonstração de que as nossas instituições não aceitarão novas aventuras golpistas.

Por que a Justiça brasileira é tida como morosa?
Temos uma falsa crença sobre essa questão que a síndrome de vira-lata nos proporciona: o nosso Poder Judiciário é reconhecido no mundo todo como eficiente. É autônomo e independente, e o juiz tem as garantias da magistratura, como a vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos. E isso desde a primeira Constituição do Império. Temos também uma previsão, na Constituição de 1988, de autonomia administrativa e financeira que quase nenhum Judiciário no mundo tem. Nossos juízes são selecionados, na grande maioria das vezes, por concurso público. São 18 mil no Brasil, que seguem uma carreira definida e com autonomia. Em vários países não há uma carreira delineada como aqui. Juízes são eleitos lá fora, indicados e são transferidos se não agradam ao político local. Aqui não é assim. Somos um pouco vítimas da nossa eficiência, porque a partir da Constituição de 1988 o legislador disse que o Judiciário é o lugar onde você vai reivindicar seus direitos. Então há a judicialização da vida social e da vida política. Isso fez explodir a quantidade de demandas judiciais. Hoje, temos 80 milhões de processos em andamento – é um processo para cada dois habitantes, muito mais que a média mundial. A carga de trabalho dos juízes brasileiros é uma das maiores do mundo.

Por que há a pecha de que o juiz brasileiro trabalha pouco e ganha muito?
O volume de trabalho é estonteante e enorme no Brasil. É totalmente falso dizer que o juiz brasileiro ganha muito e trabalha pouco. É um dos três que mais trabalham no mundo. Em termos de remuneração, estamos muito aquém de juízes da Europa e dos Estados Unidos.

Por que se judicializa tanto no Brasil? A classe política recorre à Justiça e depois diz que o Judiciário interfere em tudo.
É uma questão cultural. O brasileiro é litigante. Leva para o Judiciário suas contendas sociais e cotidianas. Além da questão cultural, tem a facilidade de acesso à Justiça. Ela é barata para se acessar e há uma disponibilidade grande de advogados. Temos 1,3 milhão de advogados, um dos maiores contingentes do mundo, o que facilita o acesso. Apesar do processo democrático que facilita o acesso à Justiça, temos o reverso dessa moeda, com um custo elevado para o funcionamento do Judiciário e o entupimento da máquina. Setores da economia estão extremamente judicializados, como o da Saúde e o setor aéreo, onde você tem uma carga muito grande de demandas. Não existe isso em outros países.

“O juiz robô ainda é uma ficção e vai ser por muito tempo, porque a sentença é uma atribuição do ser humano” (Crédito:Joan Cros)

A Justiça já está usando a inteligência artificial na análise dos processos?
Estamos fazendo uma pesquisa em conjunto com a Fundação Getúlio Vargas, que eu coordeno, onde analisamos todas as ferramentas de inteligência artificial utilizadas em cada um dos mais de 90 tribunais diferentes, nas áreas trabalhista estadual, federal e militar. Cada um tem a sua ferramenta de inteligência, alguns não têm, mas outros já desenvolveram. Analisamos desde as práticas no STF até os tribunais mais longínquos para ver qual é a ferramenta utilizada. Algumas são muito interessantes e outras só fazem triagem de processos. Há as que já avançaram para a confecção de minutas de decisões. Outras fazem a triagem para buscar demandas predatórias e outras fazem identificação de precedentes vinculantes.

Já é possível que uma sentença seja dada por meio da Inteligência Artificial?
Não. O juiz robô ainda é uma ficção e vai ser por muito tempo, porque a sentença é uma atribuição do ser humano. A palavra sentença vem de sentir, e o juiz sente a causa e aplica a lei para aquela causa. Então é impossível você ter um juiz robô que tenha essa sensação de uma causa.

Como está o processo de moralização que o CNJ desenvolve nos cartórios de todo o País para combater a corrupção?
A Corregedoria do CNJ realizou um convênio do Coaf com os cartórios para treinar melhor os cartorários na identificação de compra e venda suspeita de imóveis. Por exemplo, o que envolve pagamento em dinheiro vivo sem passar pelo sistema financeiro, o cartório já dá o alerta ao Coaf. Isso vale tanto para compra e venda com dinheiro vivo, o que sempre alimenta suspeitas, como para escrituras feitas com valores menores, indicando subfaturamentos que possibilitam fraudes. É uma poderosa ferramenta de combate ao crime organizado porque se você asfixia a questão financeira, você combate de maneira eficaz a criminalidade. Mas estamos orientando o trabalho dos cartórios também no sentido da ampliação dos serviços sociais.

Quais, por exemplo?
Fizemos um convênio com o Ministério da Justiça e temos vários projetos com os cartórios, como o “Registre-se”, visando a realização de registros civis gratuitos. Todo ano, na segunda semana de maio, fazemos um esforço concentrado para atender a população de rua para que ela obtenha registro de nascimento de graça. Hoje, esses moradores não têm documentos e sem isso eles não conseguem nenhum benefício, não conseguem os direitos básicos, como o bolsa-família, e não conseguem um emprego. No último ano, tivemos quase 100 mil atendimentos.