Capa

O ataque megalômano de Elon Musk a Alexandre de Moraes pode atingir Bolsonaro

A hipocrisia do bilionário Elon Musk de se recusar a respeitar as leis brasileiras a pretexto de defender a liberdade de expressão afronta a soberania nacional e promove uma intervenção em assuntos internos sem precedentes no País

Crédito: Rosinei Coutinho/SCO/STF; Sergei GAPON/AFP

O dono do X se alia ao bolsonarismo que usa as redes sociais para difundir ameaças à democracia: a sua arrogante ação contribuirá para apressar a regulação das mídias (Crédito: Rosinei Coutinho/SCO/STF; Sergei GAPON/AFP)

Por Vasconcelo Quadros

RESUMO

• O bilionário disse que não respeitará as decisões da Justiça brasileira que afetem sua rede social, X (ex-Twitter)
• E atacou veementemente o ministro Alexandre de Moraes (STF), que coordena as ações de combate às fake news 
• Musk tem histórico de alinhamento com líderes antidemocráticos ao redor do mundo
• Sua ousadia e petulância podem inspirar Bolsonaro a não aceitar uma eventual ordem de prisão
• À luz da legislação, as bravatas do empresário só fortalecem a hipótese de uma prisão preventiva do amigo brasileiro

 

 

Em uma interferência sobre assuntos internos jamais vista no País, o arrogante bilionário Elon Musk, dono do X (ex-Twitter), abriu esta semana uma guerra sem limites contra o Judiciário e governo brasileiros, agindo como se o Brasil fosse uma república de bananas, uma terra sem lei. Elegendo como alvo principal o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, o empresário atingiu profundamente a autonomia do País. A pretexto de defender a liberdade de expressão, Musk iniciou uma série de ataques a decisões de Moraes, acusando-o, sem qualquer prova, de ter “colocado o dedo na balança” para eleger Lula em 2022.

Em outras postagens, chamou o ministro de “ditador brutal”, afirmou que ele tem o presidente Lula “na coleira” e avisou que estava retirando as restrições impostas pela Justiça brasileira a perfis de seguidores do ex-presidente Jair Bolsonaro banidos das redes por se utilizarem de milícias digitais para disseminar desinformação, ódio, preconceito e articulações contra a democracia. Em um claro desafio ao STF, disse que não respeitará as decisões da Justiça brasileira, apesar de o ministro Moraes ter determinado que ele estará sujeito a pesadas multas caso não respeite a legislação brasileira.

Num surto megalomaníaco, o empresário acabou sugerindo que o ministro, que coordena as ações de combate às fake news nas redes sociais, renunciasse e instigou o Congresso a abrir um processo de impeachment contra o magistrado, o que acirrou a mobilização ainda maior do bolsonarismo em seus delírios golpistas.

“Pessoas de bem sabem que liberdade de expressão não é liberdade de agressão.”
Alexandre de Moraes, ministro do STF

A descabida intromissão em temas que não lhe dizem respeito e a afronta às leis e à soberania nacional têm a mesma origem nos negócios nebulosos que ele costuma fazer nos diversos países onde carrega em uma mão a ideologia de extrema-direita e, na outra, a rede social pela qual pagou US$ 44 bilhões e que, em um ano e meio de utilização manipuladora, perdeu mais de 70% do valor original — hoje vale cerca de US$ 12,5 bilhões.

A relação do bilionário com o Brasil nasceu com a posse de Jair Bolsonaro, em 2019, e se intensificou em 2022, quando o ex-presidente pressionou a Anatel a dar a Musk a concessão para explorar a Internet via satélite na região amazônica, através da Starlink, braço de sua outra empresa, a SpaceX.

Quando o empresário esteve no Brasil, em maio daquele ano, Bolsonaro foi recepcioná-lo em Porto Feliz, no interior paulista, e o bajulou, chamando-o de “mito da liberdade”. Num depoimento a quatro comissões temáticas da Câmara, em junho do mesmo ano, o ex-ministro das Comunicações Fábio Faria defendeu a Starlink de Musk no Brasil.

(Divulgação)

Na mesma época em que a gigante de carros elétricos de Musk, a Tesla, foi ultrapassada na liderança do segmento pela chinesa BYD, o empresário começou a olhar com mais atenção para o Brasil, que já tinha eleito Lula presidente.

Um dos principais componentes para a fabricação dos veículos elétricos é o lítio, o metal mais leve que existe e é conhecido como “petróleo branco”, já que serve também a indústria de baterias, energia eólica e solar.

Uma das principais mineradoras do metal no mundo, a Sigma Lithium descobriu reservas no interior de Minas Gerais em timing perfeito, com um aumento explosivo da demanda. Musk começou a negociar a aquisição da companhia, mas foi superado pela rival chinesa, que ofereceu estimados US$ 14,3 bilhões, segundo o jornal Financial Times.

Esta, ao mesmo tempo, anunciou investimento de US$ 1 bilhão no Brasil. Fortalecia-se ali a birra do empresário mimado com governos que não dessem preferência aos seus negócios.

Bolsonaro tenta apoio de Musk (acima), enquanto seu filho Eduardo se aproxima de Trump (abaixo) visando fortalecer a extrema-direita no mundo (Crédito:Kenny Oliveira)
(Divulgação)

Reação imediata

A resposta do STF às agressões do bilionário extremista foi imediata.

No domingo, 7, em que o empresário de origem sul-africana intensificou os disparos de posts pelo X, o ministro Alexandre de Moraes incluiu o bilionário como investigado no mesmo inquérito que apura as milícias digitais no qual o ex-presidente Jair Bolsonaro é o principal alvo, e determinou que a Polícia Federal investigue a atuação do empresário e de seus prepostos no Brasil, avisando que “as redes sociais não são terra sem lei”, nem “terra de ninguém”.

O ministro ainda estipulou uma multa de R$ 100 mil por dia por cada perfil que, uma vez retirados da rede por decisão judicial, voltasse a operar.

Musk acusou o golpe e orientou os dirigentes da X brasileira que entrassem com pedido para que as decisões judiciais do STF fossem direcionadas à sede, nos Estados Unidos, e não à filial brasileira, sob o argumento de que ela não teria autonomia no Brasil para atender às ordens do Poder Judiciário.

Moraes não só negou como considerou o pedido inoportuno e uma demonstração de “cinismo da companhia”, que já havia acatado ordens anteriores, tendo seus dirigentes no Brasil participado de debates sobre os limites das redes.

O ministro escreveu no despacho que o pedido “beira a litigância de má-fé”, apontou tentativa de obstrução à aplicação da lei e afirmou que o X estava em busca de “uma verdadeira cláusula de imunidade jurisdicional”, para a qual não há qualquer previsão nas leis brasileiras.

O embate extrapolou do Judiciário para o Executivo e Legislativo. O atrevimento do empresário, que precisa entender que desobedecer leis é crime, movimentou o Congresso que, em vez de avançar na regulamentação das redes sociais, deu um passo para trás, anulando o relatório do deputado Orlando Silva (PCdoB-SP). Ele dedicou quatro anos de trabalho para chegar a um texto que já havia passado pelo Senado e estava pronto para ser votado na Câmara.

Foi uma manobra da bancada conservadora para preservar Musk, prontamente atendida pelo presidente da Câmara. Arthur Lira (PL-AL), no entanto, anunciou que um outro relator para o projeto será escolhido e que um novo texto da legislação sobre os crimes de fake news será elaborado, sem data ainda para ser votado em plenário.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), aproveitou a oportunidade para cutucar Lira, que tratou as agressões do bilionário à soberania do país com um nada a declarar. “É uma busca indiscriminada, antiética e criminosa pelo lucro. Isso, obviamente, tem que ser contido por lei e esse é nosso papel enquanto Congresso Nacional”, alfinetou Pacheco.

O caso acionou outro gatilho do governo, que quer dar entrada o quanto antes à taxação das big techs em quatro frentes.
A primeira é o pagamento pela utilização da rede de telefonia que serve de infraestrutura da Internet, como fibra ótica e rede 5G — hoje, as empresas de telecomunicação pagam essa conta integralmente.
O segundo ponto é orientado à remuneração do conteúdo jornalístico usado pelos provedores, com a sugestão de que recursos sejam destinados para fomentar grupos de imprensa sub-representados.
A terceira aba sugere taxação dos serviços de streaming de vídeos.
E a última pretende regularizar a base tributária na transferência de lucros, já que boa parte das gigantes tecnológicas não salda impostos nos locais onde elas adquirem receitas mas onde a alíquota for menor.

Como a legislação determina que um imposto só entre em vigor um ano após sua criação, o governo pretende enviar o projeto de lei até junho, segundo o ministro das Comunicações, Juscelino Filho.

A Anatel fez estudo sobre o faturamento em 2022 da Amazon, Alphabet (dona do Google), Spotify, Microsoft, X e Meta (Facebook, Instagram e WhatsApp) e apontou que as operações no Brasil renderam US$ 55 bilhões a elas (mais de R$ 260 bilhões). Baseado nisso, a estimativa é que os impostos anuais das big techs cheguem a R$ 23 bilhões por ano.

Já o presidente Lula preferiu não citar Elon Musk, mas fez críticas indiretas bem humoradas. “Tem até bilionário tentando fazer foguete, viagem, para ver se encontra lugar lá fora, mas ele vai ter que aprender aqui, utilizar o muito de dinheiro que tem para ajudar a preservar isso aqui.”

Na quarta-feira, 10, o presidente elevou o tom, defendeu o STF e cutucou diretamente Musk. Afirmou que o extremismo de direita, “que nunca produziu um pé de capim no País ousa falar mal da Corte, dos ministros e do povo brasileiro”.

Extremismo digital

Provocador e beligerante, o segundo homem mais rico do planeta, com uma fortuna estimada em US$ 200 bilhões (R$ 1 trilhão), Musk usa o poder de suas plataformas na Internet para apoiar o extremismo digital na defesa de mentiras, discursos de ódio, misoginia e preconceito contra todas as ações que contrariam seus negócios ou a ideologia radical que propaga nas redes.

O Brasil acaba sendo o país onde Musk cometeu os crimes mais graves.

Ele já havia feito provocações à Justiça da Bélgica e da Alemanha, questionando condenações contra nazistas que difundiam postagens supremacistas ou negando o holocausto.

Nos EUA, chegou a questionar o resultado das eleições de 2020, mas foi desmentido e recuou.

“Poucas pessoas se perguntam o porquê de ele investir bilhões em redes sociais e distribuir ‘gratuitamente’ o espaço. A fortuna que ele constrói é a manipulação de comportamento de massa. Quando Musk desafia o Supremo brasileiro, ele está treinando seu algoritmo — este é o poder invisível aos sentidos da maioria que o apóia ou não”, sugere a advogada Daniela Freitas. “Com isso, ele movimenta números eleitorais, levanta estatísticas e dados aos quais apenas ele tem acesso, e a manada o segue, se digladiando entre si. A maior parte desse movimento é baseada em fake news criadas pelos perfis de X ou Y, sem trocadilhos”, acrescenta Daniela Freitas.

No Brasil, o empresário tinha todo o direito de defender seus negócios na Justiça ou reclamar do que considera censura, mas jamais desrespeitar as ordens de Moraes. Ele preferiu adotar, mais uma vez, a tática de alinhamento à extrema-direita internacional, onde paparica personagens como o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump.

Aqui, se colocou ao lado de Bolsonaro num momento em que este está cada vez mais próximo da prisão, optando pelo enfrentamento político e convocando manifestações com o objetivo de jogar seus apoiadores contra o STF.

Os ataques do bilionário eram tudo o que Bolsonaro esperava. E ele não deixou passar. “Nossa liberdade, em grande parte, está em suas mãos”, reverberou o ex-presidente numa live em que se derrete para o dono do X e sinaliza aos correligionários que é hora de intensificar a presença bolsonarista no cenário internacional.

Na terça-feira, 9, atendendo o chamamento, seu filho, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), principal articulador do conservadorismo nos fóruns internacionais da extrema direita, e outros dois deputados do partido, Bia Kicis (DF) e Gustavo Gayer (GO), embarcaram para Bruxelas, na Bélgica, para encontros com parlamentares europeus onde formalizariam a “denúncia” sobre uma imaginária perseguição política no País.

É um movimento tão sem nexo com a realidade que esquece que há depoimentos formais de ex-comandantes das Forças Armadas detalhando o papel de Bolsonaro como personagem central da frustrada tentativa de golpe de Estado.

“Estou convicto de que é urgente e inescapável a regulação de plataformas digitais para garantir a liberdade de expressão. A omissão pode nos cobrar um preço elevado.”
Orlando Silva, deputado (PCdoB-SP)

Deputados aliados a Orlando Silva (segundo à esq.), aguardam a discussão do projeto que regula as redes sociais e que encontra-se parado na Câmara (Crédito:Tripe)

Abraço de afogados

As bravatas de Musk podem ter reavivado as esperanças dos extremistas, mas à luz da legislação só fortalecem a hipótese de uma prisão preventiva de Bolsonaro.

Ao se hospedar na embaixada da Hungria, em fevereiro, o ex-presidente deu sinais de que não aceitará passivamente a cadeia. Com a ofensiva de Musk, ele dobra a aposta, alinha-se ao discurso contra a soberania nacional e o Judiciário e agrega a seu passivo uma provável obstrução das investigações com manifestações políticas.

A mais próxima, marcada para o dia 21 de abril, Dia de Tiradentes, foi escolhida a dedo por lembrar um dos líderes da Inconfidência Mineira, Joaquim José da Silva Xavier, com a pretensão de associar ao bolsonarismo um símbolo de liberdade como, aliás, já havia feito com a bandeira e as camisas amarelas da CBF, sequestradas em nome de um estranho patriotismo.

Os ataques à soberania acabaram, involuntariamente, desmascarando essa retórica: subserviente aos regimes de direita extremistas, o bolsonarismo aplaudiu a interferência de um poderoso estrangeiro sul-africano naturalizado americano nas questões nacionais.

A cruzada da direita atingiu o extremo do ridículo com a aprovação de uma moção de louvor apresentada à Comissão de Segurança da Câmara pelo deputado Coronel Meira (PL-PE), homenageando o bilionário “por expor e enfrentar a censura política infundada imposta pela Justiça”.

Com a inclusão de seu nome entre os investigados, os movimentos de Musk no País viraram uma verdadeira incógnita. A maior interrogação é se ele recuará ou manterá seu apoio a Bolsonaro, hipótese que no mundo dos negócios é vista como um abraço de afogados.

O oportunismo de Musk pelo mundo
Por Luiz Pimentel

Na metade de maio de 2023, o então Twitter, atualmente X, bloqueou contas contrárias ao presidente Tayyip Erdogan, na Turquia, além de barrar mensagens de teor crítico ao governo. Elon Musk disse que se tratava de decisão local. Duas semanas depois, Erdogan foi reeleito por apertada margem, 52,13% dos votos contra 47,87% de seu adversário, Kemal Kilicdaroglu. Quatro meses depois, o autoritário líder convidou o dono do X a abrir uma fábrica da Tesla e produzir carros elétricos no país.

Na Índia, comandada pelo primeiro-ministro Narendra Modi, nacionalista e populista, o mandatário da rede social chegou a criticar decisões judiciais sobre banimento de contas, mas sempre acrescentou ao discurso que cumpriria cada uma delas. Neste abril de 2024, após a Índia anunciar redução nos impostos sobre veículos elétricos, a Tesla divulgou a intenção de busca de local no país para investir U$ 3 bilhões na construção de fábrica de automóveis.

Sobre a China, onde a rede social de Musk sequer opera, nunca se ouviu uma palavra daquele que se proclama “o absolutista da liberdade de expressão”. Principalmente após 2020, ano em que ele montou a fábrica que sustenta seu status de segundo homem mais rico do mundo.

Para operar com sucesso financeiro no país, ele adotou estratégia que havia sido bem-sucedida nos EUA. Ao instalar a Tesla na Califórnia, em 2008, enorme fatia da renda veio do repasse de créditos para montadoras que não cumpriam a meta de emissão de poluentes. Lobistas da fabricante foram para a China e ajudaram a que o país adotasse o mesmo benefício para a indústria elétrica e atualmente a operação chinesa é o principal pilar da fortuna do sul-africano.