Brasil

STF julga o óbvio: não existe papel moderador executado por militares

Crédito: Alexandre Schneider

Bolsonaristas em São Paulo, em março de 2021. Interpretação maldosa da Constituição ludibriou manifestantes, que foram às ruas pedir intervenção e até um novo AI-5 como “garantia” de liberdades (Crédito: Alexandre Schneider)

Por Vasconcelo Quadros

RESUMO

• STF afasta tese de poder intervencionista das Forças Armadas que Bolsonaro tentou usar para dar o golpe
• Corte reforça a subordinação dos militares aos governos civis e sepulta o fantasma da tutela que pairava sobre o País
• Decisão deve ser difundida na caserna como contraponto ao golpismo

 

Sem alarde, o Supremo Tribunal Federal enterrou toda a argumentação jurídica que a direita – na qual se enfileiram generais com quatro estrelas – tentou usar para manter o ex-presidente Jair Bolsonaro no poder através de uma fracassada tentativa de golpe de Estado. Ao reafirmar que o artigo 142 da Constituição não dá às Forças Armadas qualquer papel moderador sobre os Poderes constitucionais, por tabela o STF afastou também a sensação de tutela sobre os civis que o militarismo golpista alimentava desde que a República foi proclamada.

O texto do artigo 142 é claro, mas foi necessário que o relator de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade em julgamento, a ADI 6657, ministro Luiz Fux, numa reafirmação do óbvio, desenhasse que “não se observa no arcabouço constitucional qualquer espaço à tese de intervenção militar, tampouco de atuação moderadora das Forças Armadas”.

Fux foi seguido pelo presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, e pelos ministros Edson Fachin, Gilmar Mendes, Flávio Dino e André Mendonça, este último indicado por Bolsonaro. A votação no plenário virtual só termina no próximo dia 8, mas os seis votos depositados já formam maioria para sepultar definitivamente a tese delirante. A tendência é a de uma decisão unânime.

Único dos 11 ministros de origem partidária comunista, Flávio Dino anunciou seu voto no domingo, 31, data em que o golpe militar de 1964 completou 60 anos. Ele ressaltou que os militares são subalternos aos poderes civis, afastou a tese de poder moderador e afirmou que o golpismo é “abominável”.

No final, para “expungir desinformações que alcançam alguns membros das Forças Armadas”, determinou que a Advocacia Geral da União e o Ministério da Defesa façam uma difusão ampla da decisão nas organizações militares, inclusive nas escolas de formação, aperfeiçoamento e similares, onde o germe do golpismo é “inoculado”.

Estudioso do militarismo, o historiador e professor da UFRJ Francisco Carlos Teixeira acha que a decisão do STF “é boa, mas ruim” porque, se de um lado explicita o óbvio, de outro levou a Corte a se ocupar do julgamento de um tema que já era claro no texto constitucional e ainda havia sido reforçado por outras duas leis complementares anexadas.

“Nelson Rodrigues já dizia que no Brasil o óbvio precisa ser explicado.” A tese de poder moderador, lembra ele, foi herdada da monarquia por ter sido o Exército que proclamou a República, mas não há acolhimento desde a Constituição de 1890.

“Só mostra que a cultura política brasileira é pobre e que as instituições militares, formadas por coronéis, generais, brigadeiros e almirantes, entendem aquilo que querem da Constituição.” Em vez de julgar, Teixeira acha que o STF deveria ter rechaçado a demanda numa sentença de não acolhimento. “O que mais vão colocar em votação?”

O general Tomás Paiva, comandante do Exército, diz que já estava consolidada a certeza de que as Forças Armadas nunca tiveram poder moderador (Crédito:Mateus Bonomi)

Artigo 142

No inquérito da Polícia Federal que investiga a tentativa de golpe, o artigo 142 é citado por vários militares envolvidos.

Segundo o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid, o ex-ministro da Saúde e hoje deputado federal Eduardo Pazuello estimulou Bolsonaro a usar o texto constitucional para promover a ruptura.

Em longo depoimento à PF, o general da reserva Laércio Virgílio chega ao desatino de afirmar que a ruptura seria feita “dentro da lei e da ordem” e que procurou convencer o ex-comandante do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes, da “constitucionalidade” da intervenção militar, conforme parecer do jurista Ives Gandra Martins.

Recusada por Freire Gomes e pelo ex-comandante da Aeronáutica, tenente-brigadeiro Carlos Baptista Júnior, no período mais agudo da tentativa golpista, a tese foi definitivamente sepultada pelo ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, que considerou a decisão uma “confirmação do óbvio”, e pelo atual comandante do Exército, general Tomás Paiva.

Ele afirmou que a decisão do STF consolidou o texto constitucional e sustentou que não existe no Brasil o poder moderador que tentaram atribuir às Forças Armadas.

“Não há novidade para nós. Isso já estava consolidado como entendimento e não causava dúvidas no Exército brasileiro.”

Paiva acha que a interpretação do STF foi correta e afirma que as Forças Armadas têm seu papel na defesa da soberania e dos interesses nacionais definidos na Constituição, mas não exerce nenhum poder moderador. “Isso já estava consolidado.”