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Biden x Trump: saiba o que está em jogo nesta disputa de impopularidade

Crédito: pexels; ap

Apesar da retórica autoritária, Donald Trump diz que defende a democracia, enquanto Joe Biden precisa convencer o eleitor de que a economia melhorou (Crédito: pexels; ap)

Por Marcos Strecker e Denise Mirás

RESUMO

• Joe Biden e Donald Trump terão de enfrentar as próprias dificuldades, que vão muito além da idade avançada dos dois
• O democrata conta com o peso da Casa Branca para superar a falta de carisma
• O republicano tenta superar os problemas na Justiça, mas parece ter afastado o fantasma da inelegibilidade
• Mercado eleitoral deve bater recorde este ano: apenas em anúncios, candidatos devem gastar US$ 16 bilhões

“A história nunca se repete. O homem se repete sempre”, já dizia Voltaire. Apesar de o mundo ter dado muitas voltas nos últimos quatro anos, as eleições presidenciais de 5 de novembro dizem muito sobre a situação da política dos EUA e, por extensão, do mundo. Pela primeira vez na era moderna, um ex-presidente concorrerá com o incumbente.

O pleito será uma revanche da disputa de 2020, quando o veterano Joe Biden conseguiu unir o Partido Democrata e derrotou o então presidente Donald Trump, que deixou um rastro de destruição ao radicalizar a sociedade americana.

No último dia 12, quando ocorreram várias primárias dos partidos Republicano e Democrata na chamada Super Terça, o atual mandatário assegurou os votos necessários para garantir a indicação na Convenção do seu partido, em 19 a 22 de agosto.

Trump obteve o apoio necessário entre os republicanos, cuja convenção se dará entre 15 e 18 de julho. A contenda nacional do segundo semestre será reeditada em um ambiente conflagrado.

Joe Biden visita o Congresso ao lado do presidente da Câmara, o republicano Mike Johnson (à dir.) (Crédito:Andrew Harnik)

Em 2024, os EUA vivem outra realidade econômica e social.
A economia está crescendo de forma consistente (3,3% ao ano, segundo o último dado oficial do PIB),
registra um nível historicamente baixo de desemprego (3,7%),
após o país ter superado uma crise inflacionária pós-pandemia sem ter caído em uma recessão.

É muita coisa. Mas falta convencer o eleitorado a dar o crédito ao presidente Joe Biden pelas boas notícias.

Trump, com certo sucesso, tem cravado no adversário a fama de mau gestor e de ter piorado a vida dos americanos. Mas ainda há esperança para o democrata. Especialistas consideram que o sentimento de bem-estar vai se ampliar nos próximos meses, e que Biden vai se beneficiar, sim, da bonança econômica.

Biden faz campanha em Atlanta, Georgia, no dia 9 de março, ao lado da estudante Desera Lennon: eleitorado negro é crucial para o democrata (Crédito:JIM WATSON)

A idade avançada de Biden, explorada à exaustão por Trump, também pode ser relativizada pela sociedade. Afinal, são apenas quatro anos de diferença entre os dois (Biden vai fazer 82 anos este ano, enquanto o magnata vai completar 78).

Uma corrida eleitoral reunindo dois candidatos tão idosos é algo igualmente inédito para a democracia americana.

Por fim, o democrata terá a seu favor o enorme peso do poder. Como presidente, terá mais facilidade em arrecadar fundos eleitorais (até o momento já acumulou quase quatro vezes mais recursos do que o oponente), além de contar com a simpatia de empresários e políticos por despachar na sala oval da Casa Branca.

E quanto à falta de carisma do atual presidente, que é um fato incontestado até pelos democratas, aí o jogo também pode se equilibrar. É consenso que a corrida presidencial deste ano será uma disputa de impopularidade, já que Trump também tem uma alta rejeição.

Segundo o site fivethirtyeight.com (agregador de pesquisas que serve de referência para a imprensa dos EUA), 55,2% dos americanos desaprovam Biden, enquanto 39% o apoiam. Em relação a Trump, 52,6% dizem ter uma opinião desfavorável do ex-presidente, enquanto 42,7% afirmam ter uma visão favorável.

O presidente com operários em greve em fábrica da GM em Michigan, em setembro. Abaixo, ele recebe o premiê Benjamin Netanyahu, em outubro (Crédito:Jim Watson)

Crises internacionais

Os dois candidatos também precisarão lidar com um novo cenário externo. Duas guerras estão mudando a geopolítica mundial.
Desde que as tropas de Vladimir Putin invadiram a Ucrânia, em fevereiro de 2022, a OTAN (maior aliança militar do mundo) renasceu, a Europa e o Ocidente se uniram contra o expansionismo russo e as grandes ditaduras, incluindo Irã, Coreia do Norte e a própria Rússia, se alinharam em torno da China contra a hegemonia americana.
Já a resposta militar de Israel contra o terrorismo do Hamas em Gaza, cada vez mais questionada, causa uma tragédia humanitária que desestabiliza o Oriente Médio e enfraquece ainda mais a ONU e o multilateralismo.

(Miriam Alster)

Nesse panorama de enormes ameaças, a começar da nova Guerra Fria com a China, que só piorou, Donald Trump está sendo mais do que nunca… Donald Trump.

Ele tem insistido que vai rifar o apoio americano à Ucrânia (o que seus aliados já estão praticando no Congresso), diminuir o suporte à Europa e alinhar-se ainda mais ao premiê israelense Benjamin Netanyahu.

E sua aposta na radicalização tem dado certo. Além de conseguir, até o momento, driblar o cerco judicial (enfrenta quatro processos civis e penais que compreendem um total de 91 crimes), o republicano conseguiu reverter o combate às fake news nas redes.

Acusado de tentar subverter o processo eleitoral em 2020, tenta caracterizar o próprio Biden de ameaça à democracia por ser “incompetente” no cargo.

Também diz, de forma mentirosa, que o democrata é o responsável pela avalanche de processos que enfrenta, o que seria uma interferência eleitoral.

Tudo dissimulação para minar a credibilidade do presidente. A ofensiva até o momento deu resultados: enfraqueceu a legislação de controle da desinformação nas redes sociais e inibiu a ação dos órgãos oficiais de controle, colocados em prática depois do ataque ao Capitólio em 2021. Ou seja, Trump está conseguindo criar uma “realidade alternativa” no universo virtual (termo que sua própria equipe ajudou a cunhar).

Donald Trump em busca do eleitorado do Meio-Oeste, em 16 de março: “estados-pêndulo” serão vitais (Crédito:Jeff Dean)

Um eventual novo governo Trump causa um temor justificado.

Nessa versão ainda mais radicalizada, o republicano já deu declarações de que “não será ditador, exceto no 1º dia”.
Também disse que vai anistiar todos os responsáveis pelo ataque ao Capitólio, que causou cinco mortes.
Com isso, aumenta a tensão e associa sua sorte na eleição ao destino do próprio país. Se ele não voltar ao poder, ocorrerá um “banho de sangue”, afirma. “Não haverá outra eleição neste país se eu não vencer “, disse em um comício em Ohio.

Essa retórica soa como música aos vários líderes populistas que já comemoram uma possível volta do republicano, pois vão se fortalecer. Entre eles, Viktor Orbán (Hungria), Javier Milei (Argentina) e Jair Bolsonaro, que deseja um apoio externo importante para diminuir sua situação cada vez mais encrencada no Brasil.

Comício do republicano em Vandalia (Ohio): discurso conservador. Abaixo, Trump recebe o húngaro Viktor Orbán em sua mansão na Flórida, em 8 de março (Crédito:Jeff Dean)

“Trump aposta no ressentimento, vingança e retaliação”, alertou Biden. O presidente está conseguindo definir o atual pleito como a eleição da democracia versus autoritarismo. Mas isso não tem convencido totalmente os americanos.

A corrida presidencial não é uma prova de 100 metros e sim uma maratona, onde a habilidade política também é vista como fundamental para a vitória, principalmente no que diz respeito ao planejamento de como os marqueteiros irão usar os recursos que estão sendo arrecadados (apenas em anúncios, a agência de mídia GroupM estima que o mercado eleitoral americano alcance perto de US$ 16 bilhões neste ano – um recorde).

Assim, a capacidade estratégica de republicanos e democratas de definir como essa montanha de dinheiro será empregada, e também a eficiência da comunicação, principalmente no ambiente virtual, são fatores que podem definir quem será o próximo presidente dos EUA.

(Zoltan Fisher)

Voto dos latinos

Para Lucas Leite, professor de Relações Internacionais da FAAP e pesquisador do INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os EUA), o peso dos chamados estados-pêndulo (swing states), onde há possibilidades para os dois lados, poderá ser decisiva.

Ou seja, Flórida, Arizona, Michigan, Wisconsin, Pensilvânia, Minnesota, Virgínia e New Hampshire podem determinar o resultado.

Já o discurso forte e contundente de Biden no Congresso na tradicional mensagem do estado da União, dia 7, parece ter sido o pontapé inicial dos democratas para mudar a imagem de um político que normalmente se mostra mais conciliador e agora deverá se mostrar mais agressivo na defesa de seu governo, para conquistar votos de indecisos.

Também precisará se mostrar capaz de reconquistar o apoio dos latinos e capitalizar a indignação com a reversão constitucional do direito ao aborto, uma bandeira republicana que foi encampada pela Suprema Corte de maioria conservadora.

Apoiadores ouvem discurso de Trump em uma reunião da National Rifle Association (NRA) em Harrisburg (Pensilvânia), em 9 de fevereiro passado (Crédito:SPENCER PLATT)

Biden também enfrenta outras delicadezas. Terá de unir a esquerda do Partido Democrata, que questiona seu apoio ao governo de Israel e pede apoio aos palestinos no conflito. O pedido de cessar-fogo em Gaza, encampado pelo governo americano na última quinta-feira, 21, é um sinal de que está agindo nessa direção.

Leandro Consentino, cientista político do Insper, vê uma mudança nos padrões dos eleitores democratas, com minorias “desembarcando” do partido. “A questão é como a campanha democrata irá se mobilizar para estancar a sangria da perda de eleitores que sempre foram deles”, afirma.

Segundo Lucas Leite, grupos de eleitores democratas (negros, mulheres, jovens, latinos, LGBTs) alteraram sua percepção com relação ao partido. “Na prática, uma homogeneização que já era difícil tornou-se definitivamente improvável. Com muitas divisões e fraturas, há a necessidade de se olhar para os grupos de forma interseccional e, o mais importante, de entendê-los para aprofundar um discurso direcionado e realmente cativar audiências.”

Para Rodrigo Amaral, professor de Relações Internacionais da PUC-SP, a única maneira de Biden conseguir a liderança é transformar seus números positivos em publicidade. “É um democrata mais liberal com uma história longa na política do país e que se apresenta como única alternativa de seu partido. E isso é mais um motivo de preocupação, pela falta de perspectiva para as eleições daqui a quatro anos.”

Trump na internet

O presidente Biden buscou criar marcas fortes em sua gestão. Conseguiu passar no Congresso US$ 1,2 trilhão para investimentos em infraestrutura e saúde, anunciou a taxação a bilionários, esteve com grevistas de fábricas automotivas.

Consentino, por outro lado, lembra a grande habilidade do republicano nas redes sociais, ainda que utilize algumas técnicas que estão longe da legitimidade, por vezes até da legalidade, auxiliados por bots, algoritimos opacos, talvez até com interferência internacional.

Ele assinala que os marqueteiros democratas “ainda rezam por cartilhas antigas em uma campanha tradicional que já não se encaixa mais no momento”.

Para Lucas Leite, os progressistas não olham para esses aspectos de forma pragmática e Trump oferece soluções simplistas do tipo “nós contra eles”, enquanto Biden precisa ser desconectado da suposta elite política para ser visto como “alguém que pensa no trabalhador”.

Por seu lado, Trump se mostra refratário a acusações e processos que poderiam progredir para sua inelegibilidade.

“Trump é o que no Brasil se chama de político teflon. Nada gruda nele. Trump se utiliza das dificuldades das instituições para lidar com pessoas que as desafiam, que as estressam sob forças políticas, abrindo caminhos voltados a seus próprios anseios.”
Leandro Consentino, cientista político do Insper

Para o ex-presidente o sistema é o problema, está falido. E, como um arauto, faz crítica implícita ao próprio establishment, desafiado permanentemente por esses extremistas, que colocam uma carga de estresse muito grande sobre as instituições, tentando justificar suas condutas condenáveis.

Mesmo quando está em dificuldades, consegue sair das cordas. Nesse momento, enfrenta a ameaça de ter bens confiscados para pagar US$ 454 milhões determinados pela Justiça em processo que o condenou por conduta fraudulenta em seus negócios.

A procuradora-geral de Nova York, Letitia James, deve anunciar essa decisão nesta segunda-feira, 25. Já Trump, que declarou não ter esse montante para pagar em juízo, usou essa ameaça para engajar sua base e pediu recursos a um milhão de doadores.

Processos

Lucas Leite diz que os EUA nunca tiveram de lidar com um candidato acusado de cometer crimes contra o Estado. “A única possibilidade é o impeachment. Não existe outra forma prevista em lei, porque lá a tradição do direito consuetudinário é baseada nos costumes, tradições e jurisprudências. Será difícil estabelecer a sua inelegibilidade. O que se configura, das decisões até agora, é que permanecerá com os direitos políticos.”

Para o especialista, a extrema-direita não se importa com lastro de realidade. Faz um discurso palatável, sempre colocando a culpa de tudo que está errado “no outro”: migrante, democrata, negro, latino, mexicano, russo, chinês. Trump se faz de vítima da “elite corrupta”.

Essa é uma disputa que não impactará apenas os EUA, mas vai ter consequências generalizadas. O mundo tinha se acostumado com décadas de prosperidade sob um consenso econômico e político liderado pelos EUA.
É o que Biden tenta preservar.
Já Trump pretende precisamente implodir essa ordem mundial, retornando ao isolacionismo histórico do início do século XX.

Nesse mundo pré-ONU, eram os países mais poderosos que determinavam o equilíbrio externo pela força, com consequências imprevisíveis – e as grandes tragédias que varreram a humanidade nos últimos 100 anos são um incômodo lembrete que essas ameaças são reais.

É bom lembrar que hoje há vários autocratas com arsenal nuclear dispostos a apertar o gatilho, risco que não existia há um século.

Já nos EUA, o sonho de uma nova era de prosperidade rooseveltiana, que foi a grande aposta de Biden, pode dar lugar a um recrudescimento institucional inédito. Os americanos ainda não chegaram lá. Mas nunca estiveram tão próximos disso.