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Senado x STF: quem vai legislar sobre drogas?

Em novo conflito entre os poderes, o STF discute a descriminalização do uso de maconha, enquanto o Senado deve aprovar uma PEC que aperta a repressão sem distinguir consumidor do traficante: Barroso diz que lei deve tratar igual pobres e ricos

Crédito: Paulo Pinto/Agência Brasil

A decisão do Senado de criminalizar usuários da maconha contrasta com o desejo de parte da população que se manifesta nas ruas (Crédito: Paulo Pinto/Agência Brasil)

Por Vasconcelo Quadros

Um tema sensível, mas ideologizado, sobre a questão da quantidade de drogas que pode caracterizar se é tráfico ou consumo próprio, está agora nas mãos dos congressistas conservadores. A menos que haja uma mudança brusca na correlação de forças, o Senado deve finalizar nas próximas quatro semanas uma PEC que não fará distinção sobre qualquer quantidade de maconha apreendida entre tráfico e uso.

Pelo relatório do senador Efraim Filho (União Brasil-PB), quem for apanhado com qualquer quantidade de entorpecentes será punido pela nova lei.

A PEC, de autoria do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) na semana passada por massacrante maioria, 21 a 4, diferença que deve se repetir no plenário quando a matéria for posta em votação, na contramão de políticas adotadas por cerca de 30 países que flexibilizaram o uso da droga.

A decisão amplia também os conflitos entre a maioria conservadora do Congresso e o STF, que tem agido com mais liberalidade e bom senso.

Antes da proposta de Pacheco chegar à CCJ, os ministros do Supremo discutiam o tema e estão a um voto de tornar inconstitucional a criminalização do porte de maconha para uso pessoal e discute a quantidade, entre 10 e 60 gramas, como permitido para que o viciado não seja preso, mas sim tratado.

• O Senado entrou no tema a toque de caixa para se opor ao STF, que está votando a despenalização do uso e a regulamentação do consumo da maconha como complemento à Lei nº 11.343, aprovada pelo próprio Congresso em 2006.

Longa trilha

O tema foi pautado em agosto do ano passado no recurso extraordinário apresentado pela Defensoria Pública de São Paulo no caso de um homem preso com pequena quantidade da droga. A decisão do STF, que deve ser anunciada depois que o ministro Dias Toffoli, que pediu vistas, devolver o caso para o término do julgamento em plenário, deve ser seguida pelo judiciário de todo o país.

Faltam apenas os votos dos ministros Toffoli, Luiz Fux e Cármen Lúcia, o que deve ocorrer nos próximos dias, antes, portanto, de uma decisão do Congresso sobre a PEC. Hoje, o placar na Corte está em 5 a 1 pela descriminalização.

Barroso acha que os poderes devem reconhecer que a política contra drogas fracassou e precisa ser revista por suas implicações no sistema prisional e na repressão, que consome muito dinheiro sem resultados (Crédito:Ton Molina)

O Senado tem a atribuição de legislar sobre o tema, mas optou para enfrentar o STF num momento de exacerbação ideológica em que a bancada conservadora, de expressiva maioria, como vem fazendo desde o ano passado em relação a outros temas polêmicos – marco temporal e desoneração da folha de pagamento de empresas – em vez de contribuir para uma definição mais abrangente, gerou intenso debate passando a falsa ideia de que se discute a legalização das drogas no País.

O presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, teve de explicar que a Corte, ao se debruçar sobre a quantidade de droga permitida, está apenas balizando uma regra que quem decide hoje é a polícia.

“Esse filme nós já assistimos e sabemos quem morre no final: o homem negro e pobre que porta 10 gramas de maconha e vai ser considerado traficante e enviado para a prisão. Já o homem branco, de bairro nobre, com 100 gramas da droga, será considerado usuário e liberado. O que está em jogo aqui é evitar a aplicação desigual da lei”, esclareceu o ministro.

Ele frisa que a grande tragédia no confronto entre polícia e bandidos nos morros é a morte de crianças por balas perdidas, “vítimas inocentes da guerra sem fim”.

(Ton Molina/Fotoarena/AgÍncia O Globo)

“Como não há tráfico sem usuário, deve-se combater quem porta a droga.”
Efraim Filho, relator da PEC das Drogas no Senado

Presídios lotados

Estimativas do próprio STF apontam que entre 25%e 30% dos 833 mil encarcerados até o ano passado estão presos por delitos associados ao tráfico, o equivale a cerca de 200 mil pessoas, a imensa maioria jovens cooptados pelas facções criminosas, boa parte com bons antecedentes que, ao entrarem para o sistema penitenciário, perdem valores e dificilmente voltam ao convívio social.

No caso das mulheres, o número de presas nessas condições é assustadoramente surpreendente: são 63%. Além dos investimentos públicos para garantir sempre mais vagas no sistema, o custo mensal de um preso gira em torno de R$ 3 mil, sem que produza resultados positivos.

Na ponta da repressão, o número de mortes é idêntico ao de países em guerra, com a curva da criminalidade sempre ascendente, o que levou Barroso a uma desoladora constatação: “É imperativo reconhecer que a política que vimos adotando há 50 anos não está dando certo. O consumo e o poder do tráfico só fizeram aumentar”.

O ministro diz que a criminalização do uso, além de exigir dos governos altos investimentos na repressão, sem que nada seja aplicado em prevenção e recuperação, afasta o dependente do tratamento de saúde em consequência do estigma. Em países que descriminalizaram, como Portugal, o número de tratamentos aumentou e as doenças ocasionadas pelo consumo injetável, como o HIV, diminuiram.

O senador Efraim Filho tem uma explicação simplista, segundo a qual, como “não há tráfico sem usuário” deve-se combater a conduta de quem porta a droga, porque é a compra que acaba por financiar o crime organizado e a violência.

O estudo analisado pelo senador é uma pesquisa com sete anos de defasagem, mostrando que 70,9% dos entrevistados pelo Instituto Paraná Pesquisas têm opinião contrária à legalização da maconha e os efeitos da droga à saúde.

O senador acha que descriminalizar equivale a fortalecer o tráfico.

O relatório aprovado considera crime qualquer quantidade de droga, com a ressalva de que, ao aplicar a lei que prevê reclusão de 5 a 15 anos, o juiz pode oferecer penas alternativas à prisão e tratamento contra a dependência.

O problema é que a decisão é do policial que prende que, como mostram os números que ajudaram a superlotar o sistema prisional de usuários.

O senador Fabiano Contarato (PT-ES) lembrou que o STF foi provocado a regulamentar uma lei com vícios de inconstitucionalidade, corrigindo uma falha que o próprio Congresso deixou passar, num caso pontual, mas interpretado pela direita com a falsa ideia de que com a criminalização “resolve-se os problemas de segurança pública”.