Fim de jogo: generais entregam Bolsonaro
Por Vasconcelo Quadros
RESUMO
• Acusado pelos comandantes que tentou cooptar, Bolsonaro é apontado como mentor do decreto que destruiria o sistema democrático e perde seu álibi
• Encurralado pela Polícia Federal e isolado pelos militares, ele está cada vez mais perto da prisão
• A coerência dos relatos e os documentos apreendidos descontroem todo o álibi de Bolsonaro
• Defesa de Bolsonaro pediu ao ministro Alexandre de Moraes a íntegra de depoimentos, mas trata-se de pleito sem chances de ser atendido
Jair Bolsonaro entrará para a história como o tolo que mobilizou e iludiu legiões de apoiadores criando a falsa expectativa de que podia contar com o apoio das Forças Armadas para dar um golpe de Estado. Pego no contrapé e enredado na própria trama, o ex-presidente experimenta agora a reação demolidora da cúpula militar que ele tentou envolver na tentativa de ruptura institucional. Três ex-comandantes militares, dois do Exército e um da Aeronáutica, sustentaram em depoimentos à Polícia Federal que o ex-mandatário…
• …tentou arrastar a tropa para o golpe,
• …encomendou e discutiu com eles a minuta de um decreto de Estado de Defesa,
• …e deu a ordem para que manifestantes que pediam intervenção militar não fossem retirados dos acampamentos em frente aos quartéis.
Fio condutor do plano, o decreto anularia a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e colocaria tropas nas ruas para manter o capitão no governo.
Em meados de dezembro de 2022, Bolsonaro, como chefe das Forças Armadas, chamou os ex-comandantes do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes, da Aeronáutica, tenente-brigadeiro Carlos Baptista Júnior, e da Marinha, Almir Garnier, para uma reunião no Palácio da Alvorada e, sem meias palavras, pediu apoio ao golpe.
Só Garnier concordou. Freire Gomes e Batista Júnior, em depoimentos fortes que se ligam às provas documentais que a Polícia Federal já tinha, jogaram a pá de cal na sepultura política de Bolsonaro.
Na sexta-feira, 1º de março, Freire Gomes prestou um depoimento de quase oito horas à Polícia Federal, em Brasília. Ele afirmou ter recebido duas versões da minuta do decreto de Estado de Defesa, uma encaminhada por Bolsonaro e outra pelo ex-ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira.
Freire Gomes afirmou que Bolsonaro queria, sim, implantar medidas de exceção para as quais esperava receber o apoio do Congresso Nacional mais à frente.
O primeiro decreto encaminhado ao então comandante do Exército previa:
• as prisões do ministro Alexandre de Moraes, relator dos inquéritos contra Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal (STF),
• e do presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco, uma das primeiras autoridades da República a reconhecer a vitória de Lula.
• Nos ajustes que seriam feitos no texto final do decreto, elaborado pelo ex-assessor de Assuntos Internacionais do Planalto Filipe Martins, preso na operação Tempus Veritatis, Bolsonaro retirou a prisão de Pacheco, mas manteve a de Moraes, cujos movimentos eram controlados em meados de dezembro de 2022 por agentes das Forças Especiais do Exército fiéis a Bolsonaro.
Pelo relatório da PF, baseado nos diálogos encontrados no celular de Mauro Cid, o ministro deveria ser detido no dia 18 de dezembro.
Depoimento explosivo
Freire confirmou todos os diálogos travados com Mauro Cid citados no relatório da PF. O tenente-coronel, sob as ordens de Bolsonaro, buscava convencer o então comandante do Exército a aderir ao golpe.
Em pelo menos dois telefonemas registrados no celular e num computador apreendidos pela PF, os diálogos transcritos mostram que Cid telefonou para Freire Gomes e, sob o pretexto de colocá-lo a par dos acontecimentos, informou que Bolsonaro fizera ajustes no decreto golpista.
Na mesma conversa conta ao general que o então presidente estava sendo pressionado por deputados e empresários do agro a adotar medidas mais duras para reverter a eleição de Lula.
Freire Gomes negou a intenção de participar da trama e afirmou que atendeu o ajudante de ordens porque este falava em nome do presidente que, como comandante em chefe das Forças Armadas, era seu superior hierárquico.
O general falou à PF como testemunha, mas policiais que atuam no caso chegaram a considerar a hipótese de indiciá-lo por prevaricação, já que as conversas tinham teor de crime e ele, na condição de autoridade, deveria ter dado voz de prisão a Cid.
A disposição do ex-comandante em colaborar com a polícia pode mantê-lo com testemunha. A PF considera o depoimento esclarecedor por ligar Bolsonaro às minutas de decretos encontrados na casa do ex-ministro da Justiça, Anderson Torres, e na sede do PL, em Brasília.
Uma versão que corre nos bastidores da investigação indica que Bolsonaro só não assinou o decreto pelo medo de ser preso quando percebeu que não teria o apoio institucional do Exército ao golpe.
O depoimento do comandante da Aeronáutica, brigadeiro Carlos Baptista Júnior, vai na mesma linha. Ele confirma a reunião no Palácio da Alvorada e a sondagem feita por Bolsonaro em torno da minuta do golpe.
Um terceiro depoimento, concedido há três semanas pelo general Estevam Theóphilo, ex-chefe do Comando de Operações Terrestre e até o ano passado membro do Alto-Comando do Exército, também não deixa dúvidas de que Bolsonaro propôs o decreto.
Alvo da investigação por ter apoiado a tentativa de golpe, Theóphilo se transformou num personagem importante por ter declarado à PF que se o ex-presidente tivesse assinado o decreto, como prometera e ele mesmo esperava, colocaria as tropas nas ruas para garantir o golpe “mesmo que tivesse de passar por cima de Freire Gomes”, que era seu comandante.
Theóphilo tinha sob seu controle no período das tratativas golpistas cerca de 180 mil homens, entre os quais estavam agentes das Forças Especiais conhecidos como Kids Pretos.
Nas declarações dos três comandantes fica claro que o decreto ganhou forma, foi discutido, analisado e, no final, teve seu texto ajustado pelo próprio Bolsonaro, o que coloca o ex-presidente como mentor intelectual e articulador central das tratativas de ruptura institucional.
A coerência dos relatos e os documentos apreendidos descontroem todo o álibi de Bolsonaro. O ex-presidente agora faz contorcionismo verbal para descaracterizar o documento, afirmando que não assinou nenhum decreto ou insistindo na delirante tese de que agiu “dentro das quatro linhas” porque a discussão teria girado em torno de uma medida prevista na Constituição.
“Agora o golpe é porque tem uma minuta do decreto de estado de defesa. Golpe usando a Constituição? Tenha a santa paciência.” Com essa declaração, o ex-presidente admitiu a materialidade do decreto e acabou se autoincriminando.
Isolado pela cúpula militar que nunca foi fiel a ele, mas se manteve em silêncio durante o governo pela liturgia do poder e, é claro, também pelos privilégios, Jair Messias Bolsonaro perdeu. Encurralado, vive seu pior momento.
O que há de indícios e provas no inquérito dos atos antidemocráticos já é juridicamente suficiente para a decretação de prisão preventiva, o que poderia ocorrer numa próxima fase das operações.
Há correntes no Judiciário e no governo que defendem, no entanto, que a prisão só deva ocorrer com a condenação – o que deixaria Bolsonaro livre para atuar como cabo eleitoral nas eleições municipais – ou diante de algum fato que implique em obstrução às investigações.
O presidente Lula afirmou em entrevista na segunda-feira, 4, que a manifestação promovida por Bolsonaro na Avenida Paulista foi uma tentativa de escapar da Justiça. “Ele fez burrice e pode ser preso. Preparou o golpe quando se trancou em casa. Não queria deixar o presidente eleito tomar posse, mas acho que se borrou de medo e foi para os Estados Unidos.”
Alto-comando
A nova ordem no Alto-Comando do Exército é que Bolsonaro seja mantido o mais longe possível dos quartéis e que quem participou conte tudo o que sabe para esclarecer a trama.
“Freire Gomes agiu com ponderação e coerência. É legalista e não embarcaria numa canoa dessas. Contou o que já se sabia: Bolsonaro propôs o plano. Se Freire negasse as informações, estaria cometendo um crime contra as Forças Armadas. Quem esconder informação é porque está se protegendo. Se cometeu crime que seja punido”, diz o general da reserva Paulo Chagas.
Desde o início do governo, Bolsonaro flertou com a aventura golpista, mas passou a se dedicar com empenho depois de pressentir a derrota na disputa pela reeleição.
• Em março de 2021, ele afastou do governo os oficiais considerados moderados e empoderou os que encampavam suas bandeiras antidemocráticas. Demitiu o então ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, provocando a saída dos demais oficiais considerados moderados, como Edson Pujol (Exército), Ilques Barbosa (Marinha) e Antônio Carlos Bermudez (Aeronáutica).
•A troca fortaleceu os generais Braga Netto, ex-chefe da Casa Civil e candidato a vice-presidente em 2022, que assumiu a Defesa, e Augusto Heleno, do GSI. Os dois ajudariam na articulação do golpe.
• Em 1977, Heleno, o mesmo que propôs “a virada de mesa” antes das eleições (conforme gravação de reunião ministerial de julho de 2022, encontrada com Mauro Cid), havia atuado como ajudante de ordens do ex-ministro do Exército Sylvio Frota, maior expoente da linha dura militar na ditadura, demitido no governo Ernesto Geisel por se opor à redemocratização do País, um indício de que o instinto golpista do grupo vem de longe.
O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, que como presidente do TSE convidou as Forças Armadas para participar da Comissão de Transparência que avaliou a segurança das urnas eletrônica, afirmou, sem citar Bolsonaro, que os militares foram manipulados e arremessados na política por más lideranças.
“Convidados para ajudar na segurança e para dar transparência, foram induzidos a ficar levantando falsas suspeitas. Acabaram fazendo um papelão.”
Barroso acha que a politização da caserna foi uma das coisas mais dramáticas à democracia. O desencanto quanto ao futuro de Bolsonaro já domina a bancada do PL, onde seu filho, o senador Flávio Bolsonaro, é um dos poucos que acredita em sua inocência.
“Bolsonaro quer o bem do Brasil. Ele nunca pensou em dar golpe”, disse à ISTOÉ.
Seu correligionário Jorge Seif (PL-SC), também senador, é mais realista: “O objetivo sempre foi prender Bolsonaro. Fazem pesca probatória. Querem prendê-lo por uma minuta sem assinatura e por uma reunião que foi filmada. Bolsonaro está pregando a pacificação do País. Será que o STF vai entra nessa seara (da prisão)?”.
Mauro Cid volta a depor
Os depoimentos dos generais Freire Gomes e Estevam Theóphilo e do brigadeiro Baptista Júnior são considerados relevantes provas testemunhais por complementarem a delação de Mauro Cid, ligando relatos a documentos já apreendidos.
O ex-ajudante de ordens volta nos próximos dias à PF para preencher lacunas sobre as quais silenciou nas declarações anteriores. Entre os fatos que deixou incompletos estão nomes de financiadores do agro e quem teria doado os R$ 100 mil que Cid repassou a um major das Forças Especiais para bancar ações dos Kids Pretos em Brasília.
Caso a PF conclua que ele se omitiu, deixando de relatar fatos importantes para a investigação, poderá ter o acordo de colaboração anulado e voltará para a prisão. Nesse caso, ele perderia os benefícios, mas a polícia poderia usar como provas todas as informações que prestou.
Para manter a vigência do contrato de delação, Cid terá de abrir mais sobre o papéis de Bolsonaro e Braga Netto, o segundo mais importante no grupo golpista.
• Nos diálogos encontrados nos aparelhos do ex-ajudante de ordens, Braga Netto tenta constranger Freire Gomes e Baptista Júnior com ofensas e xingamentos quando se certifica, a partir de 15 de dezembro de 2022, que os dois não embarcariam na aventura.
• Numa conversa com o major Ailton Barros, ele afirma que a culpa pelo fracasso do plano é de Freire Gomes. “Omissão e indecisão não cabem a um combatente”, diz, sugerindo ao major que constrangesse o ex-comandante do Exército. “Entrega a cabeça dele aos leões. Cagão”.
• Sobre o ex-comandante da Aeronáutica, Braga Netto o chama de “traidor da pátria”, orienta Ailton Barros a “infernizar a vida dele e da família” pelas redes sociais e pede que elogie o almirante golpista Almir Garnier.
Interrogado há duas semanas, Braga Netto decidiu se calar. Sua defesa tentou, sem sucesso, “acesso absoluto e integral a toda investigação para que possa prestar os devidos esclarecimentos”.
A defesa de Bolsonaro pediu ao ministro Alexandre de Moraes a íntegra dos depoimentos de Freire Gomes e de Baptista Júnior, mas trata-se de um pleito sem chances de ser atendido, já que a lei protege investigações em andamento e os depoimentos, que devem instruir uma nova fase da operação, estão sob sigilo.
Os generais Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira, Mário Fernandes, ex-comandante de Operações Especiais do Exército, e o ex-comandante da Marinha também optaram pelo silêncio.
Na avaliação da PF, os coronéis Bernardo Romão Corrêa Neto, Marcelo Costa Câmara e o major Martins de Oliveira, presos na Tempus Veritatis, frustrados com o recuo de Bolsonaro e abandonados por Cid, que os recrutou, podem pedir acordos de delação, o que só agravaria a condição do ex-presidente.
Eles também são pressionados pelo novo comando do Exército a falarem o que sabem. A instituição, pelo que se vê, está fazendo esforço para se redimir.