Editorial

A dengue nossa de cada dia

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Antonio Carlos Prado: "Nada de novo sob o sol, mas tal frase atribuída ao rei Salomão não sensibiliza grande parcela do estamento político e administrativo do País" (Crédito: Divulgação)

Por Antonio Carlos Prado, diretor de Edição

Aihil novi sub sole — e nessa mesmice, dia após dia, epidemia após epidemia, esperança nascida e morrida, após esperança morrida e nascida novamente para morrer, nesse aranzel segue o Brasil. Nada de novo sob o sol, mas tal frase atribuída ao rei Salomão não sensibiliza grande parcela do estamento político e administrativo do País. Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, o monumental Tom, com a precisão de letrista de primeira linha, declarou certa vez que “o Brasil não é para principiantes”. Disse tudo, mas também não sensibilizou. Nihil novi sub sole, vamos a alguns fatos, cara leitora e caro leitor. Enfadonhos fatos? Esse é teu fado. Nosso fadário. Falemos de dengue, nesse momento em que ela se aproxima de um milhão e quinhentos mil casos em toda a Nação – na semana passada, oito estados e o DF decretaram emergência. Há quanto tempo martelam que somos um País tropical onde mosquitos e dengue são frutos da própria natureza? Faz tempo! E também fazia tempo que ministros da Saúde não investiam em vacinas contra essa moléstia. Mas investir para quê? Deixa vir a mosquitama! E ela não se fez de rogada. Veio. E agora o Brasil se arrasta em intermináveis filas do SUS, o Brasil se arrasta apoiado em parente, amigo, vizinho ou até cabo de vassoura porque, sem apoio, cai, não consegue andar não. Garrafinha d’água na mão, pois sem vacina a constante hidratação é o único tratamento. Pelo menos água é medicação barata, é só abrir a torneira, encher com água do cano enferrujado a garrafa que um dia já foi de nobre água mineral. Há, no entanto, um detalhe: a água de torneira ainda é no País um sério risco à saúde – aliás, o não acesso de todos à água potável é nítido indicador de apartheid social. É inacreditável, mas aqui, já que se segue a mesmice, chegamos a essa questão de lugar sem eira nem beira. Quase cinquenta milhões de brasileiros não têm acesso à rede de esgoto, segundo levantamento do IBGE. Mais: trinta e nove milhões de pessoas descartam seus dejetos em fossas ou buracos cavados no chão. Mais ainda: cerca de dois milhões não possuem banheiro nem sanitário. Essa indiligência com o saneamento básico implica gravíssimas doenças — esquistossomose e cólera, por exemplo. É duro falar, mas o previsto tem de ser dito. Todo esse esgoto a céu aberto aos trinta e tantos graus, toda essa água podre e estagnada atrai ratos. A pulga dos roedores são as mesmas que gostam da espécie humana. E gostam tanto que do corpo do rato pulam para o nosso corpo. Elas, as pulgas, tão romanticamente cantadas pelo poeta jacobita inglês John Donne, infectam com a bactéria da peste bubônica a nossa corrente sanguínea. Pouco está sendo feito para cuidar de cerca de dezessete milhões de pessoas que nas periferias das grandes cidades queimam lixo em casa ou enterram-no em seus quintais. Queira Deus que pulgas e ratos sumam daqui; queira Deus que a peste bubônica tenha mesmo ficado morta lá na Idade Média. Se ela der as caras novamente, o estamento político e administrativo dirá que é coisa de País tropical, e lá vamos nós atrás do prejuízo. Elegemos, aqui, a questão da saúde pública, devido à epidemia de dengue e para mostrar que no Brasil reina a desencantada frase do cansado rei Salomão. Nihil novi sub sole. Mas há infinitos temas e um deles merece ser destacado. No final dos anos 1990, um excelente diretor de penitenciária, e exímio pescador, sempre muito quieto e muito atento (não sei se mais devido aos presos ou aos peixes), pediu para que eu lesse em voz alta o que estava escrito na entrada do presídio. Eu li: “Casa de Regeneração”. Ele acrescentou secamente: “em vez de R, devia ser D”. E completou: “Presidiários não dormem e eu não durmo. Eles pensam vinte e quatro horas em fugir, e eu penso vinte e quatro horas em não deixá-los fugir. É urgente construir muralhas nas cadeias”. Repita-se, era final dos anos 1990. Le temps passe. Ouve-se uma falação sobre muralhas agora? “Tudo isso cansa, tudo isso exaure”, dizia Machado de Assis. Pois é, Bruxo Machado, nada de novo sob o Sol. Só a intumescência da dengue, mas no País também epidemia já é mesmice.