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Golpistas de 8/1: como despolitizar o Exército? Entenda a sinuca do Planalto

Com disciplina e hierarquia afetadas pelo envolvimento de oficiais das Forças Especiais na tentativa de golpe, as Forças Armadas vivem sua maior crise depois da ditadura: governo e Congresso discutem como acabar com a cultura do golpismo para adequar os militares à democracia, despolitizando os quartéis

Crédito: Antonio Cruz/Agência Brasil

A função constitucional dos militares é zelar pela segurança do País, mas se quiserem disputar cargos políticos têm que abandonar os quartéis (Crédito: Antonio Cruz/Agência Brasil)

Por Vasconcelo Quadros

A impressionante capacidade de Jair Bolsonaro destruir instituições atingiu em cheio o Exército que, cindido pela politização extremista, vive a mais séria crise nos 39 anos que separam a ditadura da democracia. Ao arrastar os militares para a aventura golpista, o ex-presidente mexeu no ponto mais sensível aos militares: a disciplina e a hierarquia, princípios que, conforme demonstrou a operação Tempus Veritatis da Polícia Federal, foram quebradas sem escrúpulos por um grupo de oficiais e agentes das Forças Especiais do Exército flagrados em ações ilegais na tentativa de golpe de Estado no dia 8 de janeiro de 2023.

Na avaliação de um general da reserva que já integrou o Alto Comando do Exército, ouvido por ISTOÉ, o envolvimento com as ações clandestinas e os ataques contra companheiros de farda que não aderiram ao delírio golpista agrediram a ética militar, “ferindo de morte” princípios que norteiam o militarismo como instituição, baseada na confiança entre seus integrantes. Para esse militar, “não há Forças Armadas sem valores”.

Por isso, os atuais comandantes das forças terão de cortar “na própria carne” se a intenção é despolitizar as tropas.

A primeira iniciativa do Palácio do Planalto e da cúpula militar para mexer na estrutura das forças é a PEC 42, de autoria do senador Jaques Wagner (PT-BA), líder do governo. A proposta manda automaticamente para a reserva militar que registrar candidatura, e não mais apenas depois de eleito ou sem restrição de retorno aos quartéis em caso de fracasso nas urnas, como é atualmente.

Jaques Wagner disse à ISTOÉ que apresentou a PEC a pedido da cúpula militar. “Nós passamos por um período de exceção de quatro anos, de politização das Forças Armadas. Depois do 8 de janeiro, os próprios comandantes militares disseram: ‘nós precisamos fazer um processo de desmame’. Se o militar fez a opção de se candidatar, ok, tudo bem, mas não volta para a ativa”, explica o líder do governo.

Segundo ele, pelas regras atuais, não eleito, o militar volta para a caserna levando a política na bagagem. “Alguém faz campanha sem xingar o general ou o presidente da República? Eu assinei uma PEC que é oriunda do meio militar. Não tem nada com o PT ou com a esquerda”.

O líder do governo no Senado, Jaques Wagner (acima), garante que a PEC que manda candidatos para a reserva foi pedida pela caserna, enquanto o general Tomás Paiva foca na despolitização do Exército (Crédito:Jefferson Rudy)
(Mateus Bonomi)

Despolitizando os quartéis

O líder do governo queria uma tramitação rápida da matéria, mas assim que leu a proposta, o senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS) conseguiu aprovar um requerimento submetendo a matéria a duas sessões temáticas (ele queria quatro).

• Jaques Wagner acha que política e carreira militar são coisas distintas. “Militares não devem tomar parte da política. São feitos pra cumprir a Constituição”.

• Mourão, que como vice chegou a afirmar que quando “a política entra pela porta da frente dos quartéis, a disciplina e a hierarquia saem pela porta dos fundos”, agora entende que a PEC é revanchista, cerceia a liberdade e discrimina os militares da ativa que, se não tiverem 35 anos de carreira, vão para a reserva não remunerada sem direitos.

Ele afirma que essa restrição não ocorre em outras carreiras de Estado, como bombeiros, policiais e magistrados.

O ex-comandante do Exército, general Villas Bôas, apoiou os acampamentos em frente aos quartéis e foi cobrado por Tomás Paiva (Crédito:Divulgação )

O comandante do Exército, general Tomás Paiva não invocou as leis da caserna e nem criou qualquer obstáculo para que a PF prendesse os coronéis Bernardo Romão Correia Neto, Marcelo Câmara e o major Rafael Martins, das Forças Especiais do Exército, os chamados Kids Pretos, golpistas da linha de frente, enquadrados pelos crimes de tentativa de golpe e abolição violenta do Estado de Direito.

No auge das tratativas golpistas, Paiva fez uma visita ao ex-comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas e, em tom áspero, cobrou lucidez para impedir que a tropa embarcasse com Bolsonaro no golpe.

Villas Bôas apoiava Bolsonaro e os acampamentos em frente aos quartéis. Até agora foram identificados 16 militares envolvidos diretamente com a tentativa de golpe, todos eles liderados, segundo a PF, pelo general Walter Braga Neto, ex-chefe da Casa Civil e candidato a vice de Bolsonaro.

Novos indícios levantados nas investigações colocam Braga Neto no topo da articulação golpista, inclusive com empresários do agro, mas reforçam também a participação dos generais Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa, Eduardo Pazuello, que foi ministro da Saúde e atualmente é deputado, e do almirante Almir Garnier Santos, ex-comandante da Marinha.

Os depoimentos e análise do material apreendidos nas buscas apontam para o envolvimento de outros militares que até agora não apareceram e revelações de oficiais de alta patente, como o general Estevam Theóphilo, ex-comandante da força terrestre, que admitiu formalmente ter participado das tratativas sobre o decreto golpista com Bolsonaro.

Ele fez à PF uma surpreendente revelação: afirmou que se Bolsonaro tivesse assinado o decreto, daria o golpe passando por cima do então comandante do Exército, general Freire Gomes.

A íntegra do depoimento de Theóphilo, mantida em sigilo, é considerada como uma reveladora confissão que compromete Bolsonaro com a elaboração do texto de um decreto editando o Estado de Defesa.

Ainda que não tenha concordado com o que o ex-presidente queria, Freire Gomes, que deve ser ouvido em breve pela PF, também cometeu crime: ele participou das discussões e deu corda as golpistas quando tinha a obrigação de prender os militares que o assediavam para aderir ao golpe.

O ex-comandante deve ser indiciado por prevaricação. Na avaliação da PF, um novo depoimento de Cid e um provável acordo de delação dos oficiais presos deve esclarecer o real papel exercido por integrantes das três forças na tentativa de ruptura institucional.

O general Hamilton Mourão (acima) quer o envolvimento de líderes da direita contra a PEC no Senado, mas o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro (abaixo), quer despolitizar a tropa (Crédito:Geraldo Magela)
(Charles Sholl/Brazil Photo Press/Folhapress)

Especialistas

Na avaliação de especialistas, com o que já foi revelado pela operação da PF, governo e Congresso cria clima adequado para redefinir o papel dos militares, colocando uma tranca na cultura do golpismo que, como se viu nos dois meses finais de 2022, não havia sido extinta no período pós-ditadura como a maioria da classe política acreditou.

Na Câmara, uma PEC de autoria do deputado Ricardo Zarattini (PT-SP), que propõe um novo texto ao artigo 142 da Constituição, para eliminar interpretações que possam considerar, equivocadamente, as Forças Armadas como poder moderador, deve voltar à tona depois que o Congresso decidir sobre a proposta de Jaques Wagner.

• Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o historiador Francisco Teixeira diz que esse é o momento adequado para mudanças. “É preciso estabelecer com clareza a missão das Forças Armadas, que devem cuidar da soberania do país da fronteira para fora. Não é mais possível manter o artigo 142, que dá aos militares o poder de garantir os poderes constitucionais, que é função dos civis. É a hora de desconstruir a cultura da tutela e de papel moderador que pertenciam ao imperador e foram assumidos pelos militares com a proclamação da República”.