Capa

Entenda por que o saneamento básico é o calcanhar de Aquiles do Brasil

A aparência modelo do brasileiro é bastante conhecida, mas a divulgação da segunda parte do Censo, de análise de saneamento básico, escancara que moramos em dois Brasis

Crédito: Lalo de Almeida

Criança brinca ao lado de córrego que funciona como esgoto de toda a vizinhança na Favela da 13, em Osasco (SP) (Crédito: Lalo de Almeida)

Por Luiz Cesar Pimentel 

RESUMO

• País tem oficialmente 49 milhões de pessoas sem esgotamento sanitário adequado
Dados divulgados pelo IBGE pedem uma atenção especial para o Norte da Federação
• Taxas ruins de saneamento refletem em toda a sociedade: da escolaridade a renda média
• Governos terão que cumprir metas do Marco Legal do Saneamento Básico até 2033
• Média nacional, de 75,7%, ainda está longe da meta

O retrato do brasileiro típico é uma mulher na faixa de 35 anos de idade, parda, moradora de casa na região Sudeste e cristã. Essas são as características predominantes no recenseamento realizado em 2022, divulgado no ano passado e que serve para as redes sociais. Só que a segunda parte da pesquisa, divulgada em 23 de fevereiro pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), mostra que na verdade habitamos dois Brasis, dadas as distorções de serviços obrigatórios de saneamento básico entre regiões do País.

• De um lado temos a quase excelência do Sudeste, com índices semelhantes a alguns dos países mais desenvolvidos, como Holanda e Irlanda (acima de 90%).
• De outro temos a mal atendida Região Norte, com números próximos a alguns dos países mais deficientes economicamente, como Bangladesh e Ruanda (entre 50 e 60% de atendimento), segundo dados do Banco Mundial.

A divulgação dos números marca também a contagem regressiva para resolução da situação, já que o Marco Legal do Saneamento Básico, sancionado em 2020, estabelece a meta de que 99% da população dos 5.568 municípios do País (5.570 unidades, contados Distrito Federal e Distrito Estadual de Fernando de Noronha) deve ser atendida com serviços de água potável e acima de 90% com coleta e tratamento de esgoto até 2033.

Os serviços essenciais, que são parâmetro primário de desenvolvimento socioeconômico, incluem também coleta e destinação de resíduos sólidos (lixo) e drenagem urbana das águas pluviais.

Garoto trabalha buscando material aproveitável em área de despejo de lixo no Complexo das Favelas, no Rio de Janeiro (Crédito:Fabio Teixeira)

O presidente do IBGE, Marcio Pochmann, resumiu a importância da análise dos dados durante evento de divulgação: “Essas informações, para além do cartão-postal do Brasil, são uma bússola do País. Política pública pressupõe o conhecimento da realidade a ser transformada”, afirmou o economista.

A agulha magnética citada por Pochmann aponta justamente para o Norte como destino credor de recursos da Federação.

Em números gerais, o Estado com mais baixo percentual de pessoas com acesso à estrutura essencial de serviços é Rondônia, que entre os sete estados nortistas só perde em população para Pará e Amazonas. Lá, 39,4% dos habitantes são atendidos em saneamento básico.
• O terceiro lugar no quesito também fica na região, o Pará, com 45%, tendo o Maranhão entre os dois (41%).
No outro extremo da bússola estão São Paulo na liderança, com 94,5%, seguido por Distrito Federal (94,1%), Rio de Janeiro (90,6%), Santa Catarina (89,3%) e Minas Gerais (84,3%).

A média nacional — 75,7% — ainda está longe da meta.

Para Ariano Castelar, pesquisador do Ibre (Instituto Brasileiro de Economia) da FGV, a diferença está na distribuição de populações urbana e rural entre as regiões.

Tanto na Norte quanto na Nordeste, os números de moradores de áreas rurais é quase o dobro da média nacional — batem em 27% contra 15% no geral do País.

Já no Sudeste, por exemplo, os urbanos são 93,1% dos habitantes.

“Aplicação de saneamento é facilitada pela aglomeração urbana, além do acesso ter a ver com a renda da população. Em São Paulo, a (companhia de saneamento) Sabesp se viabiliza na cobrança do serviço. Em outros lugares, isso não é possível”, diz. “Pode ser aplicado o subsídio cruzado dentro do mesmo Estado, com pessoas de renda mais alta subsidiando os de renda mais baixa”, sugere.

Moradores do Jardim Damasceno, na zona norte de São Paulo, improvisam sistema de esgoto com canos que despejam material no Córrego do Canivete (Crédito: Lalo de Almeida)

Ao esmiuçar os números colhidos pelo IBGE por serviço, a disparidade fica ainda mais evidente.

O Amapá (também na região Norte) possui a mais precária rede de esgoto do País. Na soma das soluções adequadas de esgotamento — rede geral ou pluvial e fossa séptica ligada à estrutura —, o Estado tem apenas 11% de cobertura e uma em cada 20 casas não possui banheiro de uso exclusivo.

Na outra ponta, São Paulo tem 91% de cobertura da rede, em sintonia com todo o Sudeste (86,2%).

“A cobertura de esgotamento registrada no País [75,5%%] é uma ilusão. Fossa séptica [17,4%] não é uma solução adequada, pois absolutamente ninguém limpa ou cuida na periodicidade necessária. Ou seja, quase metade da população [42%] não tem esgotamento adequado”, afirma o coordenador do Centro de Estudos de Infraestrutura da FGV, Gesner Oliveira.

(Divulgação)

“Precisamos dobrar investimentos se quisermos atingir meta do Marco Legal.”
Gesner de Oliveira, coordenador do Centro de Estudos da FGV

Norte e Nordeste

Também no Norte fica o maior contingente de domicílios que não recebem água encanada no Brasil, 6,5%. Se analisado o recorte de casas atendidas pela rede geral de distribuição — outras possibilidades são poços, fontes, rios, açudes e carros-pipa —, o Amapá novamente se destaca negativamente, com 43,7% de atendimento contra 95,6% do líder São Paulo.

A situação chega ao ponto de termos no Estado cortado e batizado pelo rio mais caudaloso do mundo, o Amazonas, menos da metade da população com acesso a água encanada potável e de rede de esgoto juntas.

A coleta de lixo traz mais um índice ruim para o Maranhão, já que o Estado nordestino só alcança 69,8% dessa taxa em comparação aos 99% de São Paulo.

Os resíduos que não são destinados adequadamente são queimados, enterrados ou descartados em terrenos baldios, o que propicia a incidência maior de problemas de saúde pública. “As taxas ruins refletem em todas instâncias. Onde há saneamento, a escolaridade média é muito mais alta. São 9 anos em média nas áreas atendidas contra 5 nas que não são. Reflete na renda média da população também. Áreas no Norte cobertas têm R$ 3.266 mensais de ganho médio contra R$ 656 das não cobertas”, afirma a presidente-executiva do Instituto Trata Brasil, Luana Pretto.

Progresso apesar de tudo

Os números gerais brasileiros apresentam melhora desde o recenseamento anterior, de 2010. Mesmo assim, o País tem oficialmente 49 milhões de pessoas sem esgotamento sanitário adequado e 10 milhões que não recebem água encanada dentro de casa por equipamentos como torneira, chuveiros e vasos sanitários.

Para esses últimos, o acesso a item de sobrevivência só é obtido no transporte por baldes, galões ou recipientes do tipo.

O relatório mais recente do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), de 2020, é mais pessimista. Segundo este, à época o País tinha 33,1 milhões de brasileiros sem acesso à água, 94 milhões de pessoas sem coleta dos esgotos e somente 44,92% dos esgotos eram tratados.

Outros vetores básicos que ultrapassam o milhão de pessoas desassistidas são de habitantes sem coleta adequada de lixo para descarte (18 milhões ou 9% da população) e sem banheiro ou sanitário nas residências (1,2 milhão ou 0,6%).

Ainda assim, os índices do Censo de 2022 em comparação mostraram melhora geral:
o índice de esgoto adequado subiu de 64,5% para 75,5%;
banheiro residencial exclusivo, de 64,5% para 97,8%;
coleta de lixo, de 85,8% para 90,9%,
e ligação à rede geral de água, de 81,5% para 86,6%.

“Quando consideramos o saneamento nas suas quatro vertentes, água, esgoto, resíduos e drenagem, observamos que somente os três primeiros estão equacionados do ponto de vista de investimento e retorno. A questão da drenagem sequer começou a ser discutida ainda”, diz Caio Fontana, coordenador Executivo de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação de Gestão de Tecnologias Educacionais da Fundação Vanzolini.

O Instituto Trata Brasil, uma organização formada por empresas com interesse nos avanços do saneamento básico e na proteção dos recursos hídricos do País, estudou o tema na ponta do lápis e chegou à conclusão que o investimento pode trazer retorno sem precedentes, tanto financeiro quanto em mercado de trabalho e na qualidade de vida dos assistidos.

Como a ausência de cobertura impacta meio ambiente, valores imobiliários, produtividade, mercado de trabalho e turismo, além de gastos em saúde, a universalização dos serviços essenciais podem alcançar R$ 1,455 trilhão em duas décadas — R$ 864 bilhões viriam de benefícios diretos (renda gerada pelo investimento e pelas atividades e impostos recolhidos) e R$ 591 bilhões devido à redução de perdas associadas às condições negativas proporcionadas pelo vácuo assistencial.

“Saneamento é um setor óbvio de ganho para a sociedade. Torna-se mal compreendido porque não se veem os resultados imediatamente, mas faz todo sentido em retorno para o País”, diz o pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia, Castelar.

(Divulgação)

“Onde há saneamento, escolaridade e renda média são muito maiores.”
Luana Pretto, presidente do Trata Brasil

Horizontal x vertical

O adensamento urbano dá a falsa impressão de que o Brasil é verticalizado em edifícios residenciais, mas somente 12,5% da população tem esse tipo de moradia (25,3 milhões de pessoas) — eram 7,6% em 2000 e 8,5% em 2010, o que representa uma tendência, apesar de ainda a esmagadora maioria morar em casas (84,8% ou 171,3 milhões de habitantes).

Apenas três municípios no País todo têm mais moradores em edifícios:
Santos (SP), 63,5%,
Balneário Camboriú (SC), 57,2%,
e São Caetano do Sul (SP), 50,8%.

O índice maior por unidade federativa é do Distrito Federal (28,7%), e o menor é do Piauí: 95,6% residem em casas. Nos 12 anos que separam as pesquisas, a cidade que mais aumentou em residentes de prédios foi São Paulo, com 700 mil pessoas a mais. Com isso, a proporção cresceu 26,6% na comparação.

A sugestão de meta do Marco do Saneamento Básico não é uma questão de melhora de índices socioeconômicos, mas especialmente de saúde.

Ao determinar que pelo menos 90% dos brasileiros sejam atendidos por sistema de tratamento de esgotos e 99% com acesso a água potável é estabelecido um ponto desejável salutar.

Áreas que não possuem saneamento mínimo são potenciais focos de proliferação de doenças transmitidas a partir de água contaminada e de agentes como moscas, baratas e ratos. “O Datasus de 2021, que é o último dado que temos, mostra que na Região Norte aconteceram 25 mil internações por doenças de veiculação hídrica. Ou seja, ainda temos pessoas morrendo por falta de saneamento básico”, afirma Luana Pretto.

Vista da Favela de Paraisópolis, em São Paulo, com prédios de alto padrão vizinhos e terraços em forma de leque para que o sol alcance as piscinas ali localizadas em todos os andares (Crédito:Rivaldo Gomes)

Hoje a situação mais preocupante é novamente da Região Norte, ainda mais se estabelecida uma régua etária e a maior vulnerabilidade de crianças.

O percentual de crianças de 0 a 14 anos residente de domicílios sem canalização de água é de 9% na área amazônica contra 0,5% no Sudeste. Adicione à estatística de risco o número de 1,2 milhão de crianças pelo Brasil que estudam em colégios sem acesso à água potável, segundo Censo Escolar do Inep.

A reversão desse quadro cabe agora à Agência Nacional de Água e Saneamento (ANA), a quem foi entregue a terefa de padronizar a regulação definida pelo Marco do Saneamento e a fiscalização dos serviços para que o mínimo esteja disponível e chegue a todos os brasileiros.

“Precisamos de planos estruturados. Hoje o Brasil investe 111 reais por ano por habitante nos serviços essenciais. Para atingir a meta do Marco Legal, precisaria subir para 231 reais. No Norte, o investimento precisaria quadruplicar, já que a média é de 57 reais por morador”, diz Luana Pretto.

“Além de aumentar o investimento, precisamos de boa regulação, para que não seja populista e sirva a interesses políticos, e boa gestão e planejamento, já que a vida útil dos equipamentos é de 30, 40 anos”, completa Gesner Oliveira.