Editorial

As emendas do caos

Crédito: Tripe

Carlos José Marques: "A onda do Orçamento comprometido é quase irreversível, até porque a oposição manda e desmanda nas duas casas legislativas" (Crédito: Tripe)

Por Carlos José Marques

E a pressão política, como esperado, acabou prevalecendo sobre a racionalidade técnica. Nem poderia ser diferente, os parlamentares fizeram o possível e o impossível para garantir a boquinha e saíram contemplados com as famigeradas emendas que minam o Orçamento público e dilaceram qualquer alternativa de saneamento do Estado. O governo cedeu. De novo. Recuou e aceitou cumprir o calendário previsto de desembolsos. O acordo foi firmado em pleno Palácio do Planalto. Desde o veto presidencial a esse dispositivo de distribuição de recursos na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) deu-se o rebuliço. Gritaria por todos os lados, ameaças, chantagem. O poder do Congresso é monumental nesse aspecto. O presidente da Câmara, Arthur Lira, principal liderança a impor os ditames da relação do Executivo com o Legislativo, não arredou pé de nenhuma exigência. Jogou para o tudo ou nada e sabia que levaria. Sem blefe. O veto será mantido oficialmente – para “inglês” ver –, porque, do contrário, a sua derrubada claramente iria ferir a Lei de Responsabilidade Fiscal, significaria pedalagem escrachada, como acabou fazendo a gestão anterior, e o time de Lula tenta manter as aparências. Ao menos as aparências. O acordo com os congressistas, no entanto, relacionou uma espécie de emendas impositivas, muitas delas individuais e outras de bancadas, a serem pagas até a data limite de 30 de junho, já que, após esse prazo, por conta das eleições municipais, ficam legalmente proibidas as distribuições de demandas que podem significar agrados. Tem de tudo um pouco. Repasses para fundos de saúde e assistência social, educação e até por meio do SUS. No total, as emendas liberadas neste semestre irão chegar à considerável soma de mais de R$ 14,5 bilhões. Fora fundos partidários com valores recordes, representará uma dinheirama sem fim para saciar o apetite dos políticos. O relator da LDO, Danilo Forte, presente na reunião que selou o acordo, nem fez questão de disfarçar o cabo de guerra: “foi uma vitória para o Congresso”, disse. E é mesmo por aí. Desde que Jair Bolsonaro instituiu a modalidade de orçamento secreto para comprar aliados e simpatizantes ao seu projeto de reeleição, partidos, deputados e senadores gostaram do mimo e não quiseram mais largar a prática. Foi um renascer do clientelismo em grande estilo, com montantes ainda mais indecentes. Essa espécie de oleoduto financeiro serve essencialmente para que parlamentares agradem as bases, destinando altas somas para os currais eleitorais. Compra de votos na veia e sem cerimônia. Hoje não existe qualquer chance nem maioria parlamentar suficiente para reduzir a quantidade de emendas em curso. A onda do Orçamento comprometido é quase irreversível, até porque a oposição manda e desmanda nas duas casas legislativas. Os senhores congressistas estão mais empoderados do que nunca e a gestão do governo foi hipotecada junto a essa gente. A pactuação de recursos federais atingiu níveis insuportáveis e indecentes. Algo precisa ser feito, o quanto antes, para evitar que tal escalada não comprometa o próprio modelo presidencialista. Do contrário, melhor mesmo entregar as armas e a direção definitiva do País ao Legislativo. Para atender ainda mais à classe e sustentar apoios possíveis, o governo de Lula turbinou as concessões de crédito para estados e municípios. No ano passado injetou para além de R$ 43 bilhões em dinheiro novo a esses entes federativos gastarem em obras e investimentos diversos. O aporte extra representou um crescimento de cerca de 142% no total em relação a 2022 e, para este ano, o butim promete ser ainda maior, alcançando os R$ 74,2 bilhões. Não há arrecadação de receita que faça frente à tamanha gastança. De onde virá tudo isso se não do bolso do sempre castigado contribuinte? O boom de empréstimos a título de estímulos é uma bomba-relógio tão grande como a das emendas e com a mesma finalidade nefasta de aliciamento político. Já estão saindo gordas emendas até na modalidade Pix. O dinheiro vai a jato para o curral do parlamentar e o controle e transparência ficam sempre comprometidos, um ardil para driblar a fiscalização que tem ganho muitos adeptos. Nesse tipo de transferência direta para o caixa das unidades da Federação não há qualquer vinculação com políticas públicas, muito menos prestação de contas à sociedade. Uma festa que consagra o desrespeito com a coisa pública – algo que virou hábito aqui e alhures.