Comportamento

“Saúde mental é um direito, não é privilégio de ninguém”, diz a jornalista Izabella Camargo

Crédito: Bruna Veratti

Izabella Camargo: “Sabedoria é a consciência de que sem saúde mental não há saúde” (Crédito: Bruna Veratti)

Por Luiz Cesar Pimentel

Em agosto de 2018, a então apresentadora da Rede Globo Izabella Camargo fazia a previsão do tempo quando teve um apagão ao vivo. Ao chegar ao estado natal, Paraná, ela não lembrava o nome da capital Curitiba. Teve diagnosticada síndrome de burnout (causada pelo stress excessivo relacionado ao trabalho), foi afastada e quando voltou ao trabalho, foi demitida. Irônica e paralelamente, ela estava escrevendo seu primeiro livro, Dá um Tempo, justamente sobre a percepção de não estarmos conseguindo lidar com o tempo e “um convite à busca por limite em um mundo sem limites”. O livro virou sucesso de vendas e todo o caso a alçou a porta-voz da saúde mental relacionada ao excesso de cobranças do mundo atual. Prestes a lançar seu segundo livro, Guia Prático da Produtividade Sustentável, ela falou à IstoÉ sobre como lidar com as cobranças excessivas, principalmente no ambiente corporativo.

Atualmente existem muitos autodiagnósticos de burnout e a doença corre o risco de ser banalizada, pois muita gente passa uma semana estressante e fala que está com a síndrome. O que está acontecendo de fato?
Existe, de fato, um excesso de autodiagnóstico, porque as pessoas não sabem a diferença entre cansaço, exaustão e burnout. Não respeitam os barulhos que o corpo faz para avisar que há algum desequilíbrio grave na rotina. Na prática, é assim: se estou cansada, descanso e recupero a energia. Isso é saudável e sustentável. Mas se, com o tempo, mesmo com meu corpo exigindo novos comportamentos, vou comprando, comendo, bebendo, anestesiando ou fumando o meu descanso, o meu corpo vai acumulando dores, sinais e sintomas e ninguém te explica o que pode acontecer ao longo do tempo.

O que pode acontecer?
Esse estágio pode durar cerca de três, quatro anos. Já sabemos que boa parte da energia é recuperada durante o sono, mas como a sociedade nos convence que dormir é perda de tempo, vamos negligenciando cada vez mais o tempo de descanso e ignorando o cansaço. No estágio seguinte você está acumulando várias dores e problemas de saúde, provavelmente culpando a idade, o café, o glúten, a lactose…Aí sai de férias, mas volta ao trabalho com a mesma irritação. Descansa e continua sentindo cansaço. Esse é o caminho para o burnout.

“O desembargador Sebastião Oliveira descreve o burnout como dano existencial, que é quando há o rompimento com o seu projeto de vida” (Crédito:Divulgação )

Quais são pontos mais comuns para levar a esse estágio?
O que existe em comum no quadro é o assédio sofrido. Toda vez que faço a pergunta para quem sofre da síndrome, que teve o diagnóstico clínico, a pessoa volta no tempo e lembra da gota que transbordou o copo. Só que não foi a gota a responsável, pois o copo já estava cheio. Mas a gota foi o divisor entre a exaustão e o burnout.

E o que acontece depois que transborda?
Há perda de funcionalidade. Deixo de fazer coisas que sempre fiz naturalmente. Então algumas pessoas ficam sem dirigir, sem compreender um texto, como foi o meu caso. Só depois de um ano é que retomei as capacidades cognitivas. Aliás, para a reabilitação, é preciso respeitar o tempo de recuperação. Se o problema não chegou de um dia para o outro, não vai embora de um dia para o outro.

O que chamam de design organizacional nessa equação?
É o que falta para equilibrar pessoas, funções e demandas. Se o modelo organizacional está ultrapassado, algumas pessoas farão o trabalho de muitas. A gente se acostumou a fazer mais com menos não mais como exceção, mas como regra. Quando a exceção se torna regra é que acontecem os desequilíbrios e ficar impassível com o assédio moral, intelectual e psicológico é menos trabalhoso. O desembargador Sebastião Oliveira descreve bem a consequência do burnout como dano existencial, que é quando há o rompimento com o seu projeto de vida.

O que é preciso ficar atento para não entrar ingenuamente nesse tipo de situação?
Eu demorei cinco anos pra entender que o burnout é causado por múltiplos fatores, mas que ele fala mais sobre o ambiente do que sobre as pessoas que adoecem. Porque para sobreviver ao ambiente, ao medo de perder o emprego ou os clientes, você vai tomando energéticos, anfetaminas e outros estimulantes, para dar conta de um estilo de vida insustentável. Na negligência, você acaba se deixando para depois, abre mão de sono, família, saúde e chega à crise existencial. A síndrome de burnout é um freio.

Como seu caso foi público, promoveu mudança de mentalidade no país em relação à saúde mental atrelada ao trabalho. Qual foi a sua gota d’água?
Eu não fazia ideia que aquilo que estava vivendo era um burnout, mesmo tendo pesquisado sobre o assunto para o meu livro. Já tinha entrevistado pessoas sobre as doenças do tempo. O padre Fábio de Melo falou sobre a ansiedade. O Ricardo Boechat, sobre depressão. E uma psicóloga falou sobre burnout. Eu já estava vivendo muitos dos sintomas que ela me relatava, mas não reconheci em mim, pois na minha cabeça eu amava o que fazia e seria impossível adoecer em um ambiente em que trabalhei muito para fazer parte. Ao mesmo tempo já estava tratando problemas graves de estômago, intestino, operado safena, sintomas cardíacos, de pele, e vivi um apagão ao vivo. Mesmo assim, só depois de terminar o expediente é que fui ao médico. Ele me deu o diagnóstico e disse para ele: “Doutor, é impossível, Não estou com isso, não. Eu amo o que faço”. Foi quando ele me disse que pessoas que amam o que fazem, que são muito comprometidas, tem maior chance de se negligenciar. Foi então que caiu a ficha, pois estava esperando o milagre, Em 2018 eu já tomava remédio para dormir, acordar e trabalhar. Achava que era uma fase, mas tinha muita coisa errada no meu ambiente profissional para o meu copo transbordar e o corpo pifar.

A parada da ginasta Simone Biles é exemplo de coerência — abre mão de uma competição para poder continuar a carreira (Crédito: Naomi Baker)

O Filipe Toledo, campeão mundial de surfe, anunciou que vai parar um tempo para cuidar da saúde mental. A Raíssa Leal, do skate, disse que fará o mesmo depois da Olimpíada de Paris. Você acha que existe uma conscientização maior?
Sim, inclusive além desses exemplos, eu traria a Simone Biles, que parou durante os Jogos de Tóquio. São atletas que conseguiram ter coerência — o que dizem é: “Vou pausar uma competição para poder continuar a minha carreira”. Ou seja, é melhor pausar por um tempo do que parar com tudo sendo obrigados pela falta de saúde. Isso é sabedoria. São pessoas que já entenderam que, sem saúde mental, a gente não tem saúde. Melhor uma pausa voluntária do que uma pausa involuntária.

 

Com tudo isso, estamos à beira de colapso “burnáutico”?
Se nós pensarmos em linha do tempo, nos últimos 10, 15 anos começamos a ter muito mais acesso à tecnologia e isso aqui (mostra um celular) se tornou uma extensão do nosso corpo. Note que quando eu consumo internet, estou consumindo tempo/energia/cérebro e todo esse excesso de acessos tecnológicos causa danos sem precedentes.

Além da confusão que é comum entre saúde mental e saúde física, certo?
Pense em quantas academias você encontra por aí. Especialmente nos últimos 40 anos houve explosão do culto ao corpo e isso reflete no número de academias. Nós temos o mesmo número de livrarias ou outros espaços de descompressão? Agora perceba a quantidade de farmácias que temos atualmente. Muito mais do que livrarias, não? Mesmo assim mantemos a crença de gerações passadas de que a mente não faz parte do corpo. Ainda mais com o preconceito que havia com o tratamento de pessoas com problemas relacionados à saúde mental. Você não sabe como é comum as pessoas me dizerem que achavam que fazer terapia as deixaria mais fracas.

O que você diz nessa hora?
Faço comparação com os dentistas. Pergunto: “Se você tiver dor de dente e não for ao dentista, como acha que ficará a sua vida?”. E proponho a mesma lógica para uma dor que não conseguimos nomear, uma dor que está na mente. Se você reage a uma dor buscando um profissional com a habilidade para cuidar dos seus dentes, como não procurar um que organize as ideias? É preciso que tenham consciência de que só pessoas fortes buscam ajuda, não o contrário. Séculos atrás a medicina nos fatiou para um entendimento pedagógico e nós estamos lidando com o primeiro momento da sociedade moderna em que estamos juntando os pedaços e compreendendo que a mente, além de parte do corpo, afeta emoções e comportamentos.

Qual é a consequência de um burnout não tratado? Pois é comum as pessoas sentirem que têm que seguir mesmo sob esgotamento, já que do trabalho vem o sustento.
O passo seguinte é o AVC (acidente vascular cerebral) isquêmico. O número de AVCs tem aumentado, o que significa que as suas veias estão envelhecendo pelo estresse, pelo seu estilo de vida. Se você não está parando porque acha que precisa seguir em frente, uma hora você vai ter que parar obrigatoriamente.

Falamos de pessoas que puderam parar profissionalmente e falamos de celular. Como podemos impor limites e usar celular ao mesmo tempo, já que ele nos deixa disponíveis 24 horas dos 7 dias da semana?
Eu fiz essa mesma pergunta para um executivo e a opinião dele é que vamos viver um processo como aconteceu com a alimentação. Nós possuíamos escassez alimentar até que o desenvolvimento agrícola e depois comercial e industrial passou a nos prover comida suficiente. Mas não é por isso que vou comer o dia inteiro. A mesma coisa vale para a informação – não é porque tenho tudo disponível que vou ficar conectado o tempo todo. Preciso saber quais são os meus limites. Somos a primeira geração que está tendo de lidar com a educação disso e ensino as pessoas fazerem os contratos de tempo.

O que é isso na prática?
Deixa eu ver se você tem. (Checa a mensagem do meu whatsapp e lê) “Se for urgente, ligue. Se não for, relaxe que responderei.” Isso é um contrato de tempo. Não é todo mundo que lê o recado, mas você está passando uma educação da utilização desses recursos. Esse é um cuidado importante, pois há muita gente angustiada sendo cobrada por contratos tem tempo que não assinou. Por isso é preciso educar, deixar claro que celular é uma ferramenta de comunicação, ponto. Temos que criar os limites e comunicar aos nossos contatos ou clientes quais são eles. Serve para família, amigos e para o trabalho. Os contratos de tempo vão salvar seu tempo e consequentemente sua saúde.

Sabemos que a terapia trata a questão da saúde mental, mas ela não é acessível para a maioria da população. Como podemos tornar a cura acessível?
Primeiro a gente tem que entender que uma sessão de terapia, hoje, pode custar o mesmo que uma pizza. Eu só vou ver valor na terapia quando tiver humildade para reconhecer os resultados. Você não precisa abrir mão de tudo para se cuidar. A grande sabedoria está em se incluir na própria agenda para dar conta dela. Se já temos dados suficientes para entender que a saúde mental faz parte das três principais causas de afastamento do trabalho, tenho que cobrar da minha empresa um ambiente com segurança psicológica, no mínimo. Saúde mental é um direito, não é privilégio de ninguém. Estamos falando de coisas básicas, de descanso, de sono decente.