Brasil

Lula x Israel: o comentário que gerou crise diplomática e ofuscou a reunião do G20

Presidente brasileiro chama a reação do país contra os palestinos de genocídio e a compara com o Holocausto na Segunda Guerra, provocando protestos furiosos do governo israelense e abrindo uma inédita crise diplomática

Crédito: Gabriela Biló

Ministro Mauro Vieira (Relações Exteriores) e Lula: o morde e assopra da diplomacia brasileira (Crédito: Gabriela Biló)

Por Marcelo Moreira

Era para ser o encerramento de uma viagem bem-sucedida à África, com a ampliação dos contatos multilaterais, mas deu origem a uma das maiores crises diplomáticas do Brasil, algo raro por conta da tradição do Itamaraty. Ao comparar a reação de Israel na Faixa de Gaza contra o grupo terrorista Hamas ao extermínio de 6 milhões de pessoas – a imensa maioria de judeus – pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva desencadeou uma torrente de ira por parte do governo conservador de Benyamin Netanyahu, o primeiro-ministro israelense.

“O que está acontecendo em Gaza não é uma guerra, é um genocídio. Nunca existiu nada parecido, exceto quando Hitler matou os judeus.”
Luiz Inácio Lula da Silva, presidente

A fala de Lula, respondendo a uma pergunta em entrevista coletiva em Adis Abeba, na Etiópia, teve repercussão mundial e quase imediata, fazendo com que Netanyahu fizesse um duro discurso contra o presidente brasileiro, considerando a comparação “inaceitável’ e afirmando que Lula tinha “cruzado a linha vermelha”, termo diplomático que se refere a uma crise grave ou ofensa pesada.

Com maior ou menor dimensão, a comparação de Lula ganhou as manchetes de veículos de comunicação na Europa e obrigou um porta-voz da Casa Branca, a sede do governo norte-americano, a uma constrangida declaração de que os Estados Unidos “não compactuavam da mesma opinião”.

Dias depois, o secretário de Estado Anthony Blinken desembarcou no Brasil para a reunião do G20 (as maiores economias do mundo) e reafirmou a posição, em termos brandos, após um encontro com Lula em Brasília.

(Jacquelyn Martin)

“A fala do presidente do Brasil, Lula, é vergonhosa e cruzou uma linha vermelha. Trata-se de banalizar o Holocausto.”
Benyamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel

O assunto, obviamente, é bastante sensível para os israelenses, frequentemente acusados de força excessiva e desproporcional ao atacar e invadir Gaza após os ataques terroristas de 7 de outubro de 2023 que deixaram 1.220 mortos e 243 sequestrados.

Segundo o Hamas, autor dos ataques e administrador de Gaza, mais de 30 mil palestinos morreram no conflito, que obrigou cerca de 1,5 milhão dos 2,5 milhões de habitantes do local a se deslocar para fugir dos bombardeios.

O governo israelense está sendo acusado de praticar um genocídio contra os palestinos, algo que Lula mencionou em mais de uma ocasião. As menções e comparações com o Hoocausto judeu perpetrado pelos nazistas são recorrentes – e repudiadas pelos judeus e seus apoiadores –, mas o presidente brasileiro foi a primeira autoridade mundial, de primeira grandeza, a fazer publicamente tal comparação.

Genocídio metódico e praticado em escala industrial, o assassinato de judeus e outras minorias na Segunda Guerra ainda hoje é descrito como o ato mais bárbaro e brutal cometido contra a espécie humana – e contra um grupo específico da população mundial.

Para os israelenses, a maioria afetada direita ou indiretamente pelas consequências do Holocausto, fazer qualquer comparação utilizando os fatos históricos é banalizar o próprio Holocausto, “cuja dimensão trágica ainda hoje é quase impossível de se medir, assim como o impacto na humanidade”, como declarou o ministro das Relações Exteriores do governo Netanyahu, Israel Katz, um dos mais irados ao condenar as palavras de Lula.

Palestinos deixam as imediações do Hospital Shifa na Cidade de Gaza, fugindo dos ataques das forças israelenses (Crédito:Abo Alkas / Anadolu (Photo by Dawoud Abo Alkas )

Retórica inflamada

A pedido de Netanyahu, Katz convocou o embaixador brasileiro, Frederico Méier, para um protesto formal e uma “dura repreensão”, em um local público, o Museu do Holocausto, algo inusitado de acordo com as práticas diplomáticas.

O ministro israelense subiu o tom nos dias seguintes afirmando que a declaração de Lula era um “cuspe no rosto dos judeus brasileiros” e exigiu de imediato um pedido de desculpas oficial por parte do governo brasileiro.

A reação do Itamaraty, seguindo ordens de Lula, foi convocar o embaixador brasileiro “para consultas”, um eufemismo diplomático equivalente a demonstrar que as relações azedaram de forma bem complicada.

Tanque israelense na fronteira da Faixa de Gaza, de onde os militantes do Hamas partiram para os ataques terroristas do dia 7 de outubro passado (Crédito: Amir Levy )

Mesmo com a crise escalando uma gravidade surpreendente, como admitem muitas autoridades do governo federal, o tratamento oficial do governo brasileiro é de que não há retratação alguma a ser feita, muito menos um pedido formal de desculpas de Lula ou do Estado brasileiro.

A explicação disseminada pelo assessor especial para assuntos internacionais Celso Amorim e replicado pela primeira-dama, Rosangela Lula da Silva, a Janja, é de que Lula não se referiu ao povo judeu ou israelense, mas criticou as ações levadas a cabo pelo governo Netanyahu.

Ao mesmo tempo, o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, convocou o embaixador israelense no Brasil, Daniel Zonshine, para reclamar de forma oficial da postura “belicosa e agressiva” do governo israelense, indicando que o Brasil não cederia e que as divergências prosseguiriam.

O chanceler Mauro Vieira se dirige a chanceleres do G20 no Rio, dia 21. Crise ofuscou a pauta brasileira na presidência rotativa do grupo (Crédito:Charles Sholl)

As repercussões no Brasil foram ruins para o governo Lula. Várias entidades judaicas brasileiras repudiaram a comparação do presidente. Cobraram uma retratação e apoiaram a reação enérgica do governo israelense.

Em nota, o Instituto Brasil-Israel disse lamentar “a imprecisão dos fatos descritos”, o que pode gerar uma “incompreensão sobre o conflito entre Israel e Palestina. É um tema complexo e o caminho para a paz.”
Para a Conib (Confederação Israelita do Brasil), a fala de Lula é “distorção perversa da realidade”. A instituição afirmou que a comparação ofende a memória das vítimas do Holocausto, assim como seus descendentes.
Para o governo, a polêmica teve outro efeito negativo. Ofuscou a reunião do G20 no Rio de Janeiro que ocorreu durante a semana, que era uma grande aposta do Brasil, que ocupa a presidência rotativa do grupo, para pautar o debate entre as grandes nações de acordo com as prioridades de Lula, incluindo o combate à fome e a reforma da governança global.

O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, chega ao Planalto para se reunir com Lula na quarta-feira (Crédito:Evaristo Sa)

Repercussão política

No meio político, a declaração foi vista como “desastrosa e desastrada”.

• O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD), em discurso durante os trabalhos da Casa, classificou a fala de Lula como “inapropriada” e cobrou uma retratação de forma oficial como forma de iniciar a normalização das relações com Israel.
Jaques Wagner (PT), líder do governo no Senado, tentou contornar a situação diante da forte repercussão negativa, mas teve de admitir que a comparação da ação israelense com os atos de Adolf Hitler “não é pertinente” – Wagner é judeu.
Na onda de indignação seletiva, 133 deputados federais assinaram uma petição na Câmara pedindo a abertura de um processo de impeachment contra Lula pelas declarações. “Foi muito ruim, realmente, e agora teremos de lidar com esse tipo de oportunismo”, disse um deputado federal da base governista.

O embaixador brasileiro Frederico Méier (dir.) é convocado pelo chanceler Israel Katz ao Museu do Holocausto (Jerusalém), dia 19, e ouve críticas (Crédito:Ahmad Gharabli)
(Pedro Ladeira/Folhapress)

“A frase do presidente Lula foi inapropriada, e deve haver uma retratação.”
Rodrigo Pacheco, presidente do Senado

(Marcos Oliveira)

“Não se traz à baila o episódio do Holocausto para nenhuma comparação, que foi indevida.”
Jaques Wagner, líder do governo no Senado