Editorial

O desprezo pela vacina passou a ser rotina

Crédito:  Pedro Ladeira

Carlos José Marques: "Os atuais e baixíssimos níveis de cobertura vacinal podem colocar tudo a perder, com a volta de doenças das quais nem se falava mais" (Crédito: Pedro Ladeira)

Por Carlos José Marques

Vacinação no Brasil parece ter virado supérflua e o interesse por se prevenir com imunizantes caiu no descaso. Isso ocorre com qualquer uma das vacinas, não importando a enfermidade para a qual se destine, faixa etária do público alvo ou tipo de eficácia verificada. O País que já foi célebre por índices recordes de cobertura vacinal, referência no mundo, deu meia volta e passou a desconsiderar conceitos elementares da Ciência — e, por conseguinte, os benefícios advindos daí. De acordo com o Observatório da Atenção Primária à Saúde, uma associação civil sem fins lucrativos, o Brasil atingiu em 2021 a menor cobertura já registrada em um período de 20 anos. A média nacional ficou em 52,1%, percentual que assusta e que compromete o Programa Nacional de Imunização (PNI), cujas taxas superavam invariavelmente os 70%. Existem regiões nacionais hoje com menos de 30%. No plano da vacinação infantil o quadro é ainda mais dramático por se tratar de um público essencial no PNI. Nesse segmento populacional, a queda espanta, é brusca, desabou dos 93,1% para, em alguns locais, menos de 60%. A dramaticidade dessa situação deverá repercutir por gerações a fio. É processo movido a fake news, com disseminação de desinformações, preconceito e, claro, uma liderança política capaz de destruir a reputação do método que representa um dos maiores avanços da medicina do qual se tem notícia em toda a história. No campo da imunização, milhões de vidas foram salvas ao longo de décadas. Em diversos momentos e frente a inúmeras doenças. No caso da epidemia da Covid, mais recente, não pairam dúvidas sobre os bons frutos e benefícios que a campanha de vacinação gerou. O Brasil e o Planeta caminhariam inexoravelmente para o extermínio, caso seguissem uma rota contrária. Ainda sim, milhares de vidas foram perdidas em vão em virtude do desleixo de governantes. Um atraso criminoso e indecente na encomenda dos imunizantes por aqui foi patrocinado pelo então presidente Jair Bolsonaro, que não deixou de demonstrar o quanto os desprezava. Virou marqueteiro número um da não vacinação e muitos o seguiram.

Trombeteava que não iria tomar. Dizia que achava besteira. Diminuiu as verbas para campanhas destinadas ao tema e propôs o uso de remédios alternativos ineficazes para o tratamento, como a famigerada Cloroquina, apesar dos alertas da comunidade mundial de saúde sobre o malefício da prática. Movimentos anti-vaxx surgiram no bojo dessa inconsequência federal e o resultado tá aí. Até hoje é difícil recompor os níveis decentes e seguros de cobertura. Mães temem infundadas alegações de que a vacina faz mal, traz consequências ruins para seus bebês ou simplesmente acham-na desnecessária pela ilusão de que algumas enfermidades foram extintas ou completamente erradicadas, como varíola e poliomielite. Ledo engano. Os atuais e baixíssimos níveis de cobertura vacinal podem colocar tudo a perder, com a volta de doenças das quais nem se falava mais. A conscientização é peça importante nessa cruzada. De outra parte, o envolvimento dos governos, em todas as esferas, também. No momento, os altos índices de contaminação pela dengue colocam de joelhos a população. Em diversos Estados e municípios aumentou mais de 500% o número de casos e (fato) não existem imunizantes suficientes para conter a onda e enfrentar a escalada que está apenas em seu início. Clínicas particulares e a rede pública expressam preocupação pela falta da vacina de dengue e tentam dar conta de uma procura por tratamento sem precedentes, com salas abarrotadas e falta de leitos. Somente em janeiro, a procura pelo imunizante subiu quase 200% e nada foi feito. O planejamento está precário. Autoridades sanitárias, com um lote mínimo que não chega a um milhão de doses, estão fazendo aplicações seletivas, por idade e em poucos locais. Uma gota no oceano. O Brasil, que há muito tempo convive com essa moléstia, já poderia e deveria ter tomado providências estruturais de maior monta. O imunizante custa caro, a importação é custosa e demorada e nem todo mundo consegue ter acesso ao que é disponibilizado. A limitação no fornecimento nesse caso é mais uma das grandes falhas que o Estado brasileiro tem promovido, dentro de um cenário no qual a imunização dos brasileiros deixou de ser direito para virar privilégio. Uma pena.