Brasil

Operação da PF e da PGR revela dados estarrecedores sobre os pivôs do golpe

Além do passaporte de Jair Bolsonaro, operação autorizada pelo ministro do STF Alexandre de Moraes coletou material na casa de figuras importantes do governo anterior, como o general Augusto Heleno

Crédito: Bruna Prado

Generais Braga Netto (esq.) e Augusto Heleno, que eram ministros, entre outros militares, participaram ativamente de conversas de teor golpista para manter o então presidente Jair Bolsonaro no poder (Crédito: Bruna Prado)

Por Marcelo Moreira

RESUMO

• Com a colaboração de generais como Augusto Heleno e Braga Netto, Bolsonaro tramou a derrubada do regime democrático, com a prisão de ministros do STF, para a deposição de Lula e se perpetuar no Poder.
• Nem mesmo na ditadura de 1964 se viu tamanha ousadia.
• O fracassado projeto ditatorial só não deu certo porque a maioria dos militares não aderiu ao destrambelhado devaneio bolsonarista

Jair Bolsonaro articulou intensamente a tentativa de golpe de Estado em dezembro de 2022 pouco mais de um mês após a eleição de Lula para a Presidência. Ele queria prender o ministro Alexandre de Moraes, cancelar as eleições e se perpetuar no Poder, julgando que poderia contar com boa parte das Forças Armadas. Mas, como se viu no 8 de janeiro, desfecho da operação, isso não aconteceu e a maioria dos militares não aderiu aos seus ímpetos ditatoriais. Nem em 1964 se viu tanta ousadia.

Durante os preparativos para o seu fracassado projeto de ditador tupiniquim, os generais do seu entorno, sobretudo Braga Netto e Augusto Heleno, usaram militares próximos à estrutura de Estado, como ajudantes de ordens do presidente, oficiais graduados no comando das Forças Armadas para tramar ações que levariam à derrubada do regime democrático.

Detalhes de toda a operação da Polícia Federal (PF) e da Procuradoria-Geral da República (PGR) realizada na quinta-feira, 8, revelaram dados estarrecedores.

Bolsonaro aparece participando ativamente da formulação da “minuta do golpe” que quando foi encontrada com o ex-ministro Anderson Torres informou-se que ela era imprestável e seria jogada no lixo, mas que agora sabe-se que quem preparou o texto foi seu ex-assessor Filipe Martins. O então presidente, contudo, reescreveu o documento que seria usado como ponto de partida da tentativa golpista.

Operação Tempus Veritatis, da Polícia Federal, coletou material na casa de peças importantes do governo Bolsonaro, como o general Augusto Heleno (Crédito:Adriano Machado)
(Pedro Ladeira)

A PF teve acesso inclusive aos detalhes da formulação do documento.

• Filipe queria que Bolsonaro e seus militares prendessem não apenas Moraes, mas também o ministro Gilmar Mendes e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco.

• Na revisão do texto, contudo, Bolsonaro o amenizou e deixou apenas Moraes como a autoridade a ser presa durante a execução do golpe.

Para que o ministro fosse preso, o ajudante de ordens do presidente, Mauro Cid, monitorou o presidente do TSE com o apoio de agentes da Abin.

• Em trocas de mensagens do celular de Mauro Cid ainda no ano passado, a PF identificou que a agenda e os voos de Alexandre de Moraes era monitorados pelos golpistas em tempo integral para que ele pudesse ser preso quando o golpe fosse deflagrado.

• Baseado em informações fornecidas pelo ex ajudante de ordens, a investigação constatou que o ministro tinha o codinome de “Professora” na comunicação entre os golpistas.

• Em umas das trocas de mensagens entre Mauro Cid e Marcelo Câmara, o segundo na ajudância de ordens do presidente, o monitoramento fica explícito: “Tem algo?”, pergunta Cid. A resposta: “Viajou para SP hoje e retorna na manhã de segunda-feira, e viaja para SP no mesmo dia. Por enquanto, só retorna a Brasília para a posse do ladrão. Qualquer mudança que eu saiba eu lhe informo”.

Filipe Martins, assessor palaciano do ex-presidente, redigiu e apresentou a minuta do golpe sugerindo as prisões de dois ministros do STF e do presidente do Senado (Crédito:Divulgação)

Passaporte apreendido

Na decisão de Alexandre de Moraes que autorizou a operação policial de quinta-feira, o ministro ordenou que Bolsonaro entregasse o passaporte, o que foi feito ainda pela manhã. Os policiais chegaram a ir às residências do ex-presidente em busca do documento, até mesmo em sua casa de praia em Angra dos Reis.

O passaporte, contudo, estava na sede do PL e seus advogados o entregaram ao delegado-geral da PF, Andrei Passos. A apreensão do passaporte representa praticamente uma prisão, já que Bolsonaro não pode deixar o País.

A PF entende que essa é a fase preliminar do processo de prisão ao qual o ex-capitão deve ser submetido em breve. Afinal, essa medida é para prevenir eventuais tentativas de fuga. Mas nem só ele sofreu medidas restritivas na operação policial.

Em buscas no hotel onde mora o presidente do PL, Valdemar da Costa Neto, os policiais apreenderam uma arma de fogo sem registro e prenderam o político em flagrante. A partir de agora, os dois não podem mais se aproximar, sob risco de o ex-presidente ser efetivamente preso.

Valdemar Costa Neto, presidente do PL, é investigado por apoio à tentativa de golpe, mas foi preso porque tinha em casa uma arma sem registro legal (Crédito:Pedro Ladeira)

A operação da PF atingiu em cheio outros integrantes do núcleo político de Bolsonaro.
• Os então assessores palacianos Filipe Martins e Marcelo Câmara foram presos.

• Além disso, os generais Augusto Heleno e Walter Braga Netto foram alvos de busca e apreensão. Durante o governo Bolsonaro, Heleno foi ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), sob gestão da Abin, que vem sendo alvo de investigação por espionagem ilegal de milhares de políticos brasileiros.
• Os policiais fizeram operações de busca e apreensão ainda na casa do almirante Almir Garnier, ex-comandante da Marinha, e que chegou a dizer a Bolsonaro que poderia colocar suas tropas na rua a favor do golpe.
• O general Paulo Sérgio Nogueira, ex-comandante do Exército e ministro da Defesa do ex-presidente, foi também alvo de buscas. Ele também participou de reuniões com Bolsonaro para tramar o golpe. O ex-ministro Anderson Torres, que está cumprindo prisão domiciliar com o uso de tornozeleira eletrônica, também foi alvo de buscas.

(Pedro Ladeira)

“Infelizmente tenho que dizer que a culpa pelo que está acontecendo é do General Freire Gomes (então comandante do Exército). Omissão e indecisão não cabem a um combatente. Oferece a cabeça dele aos leões. Cagão.”
General Walter Braga Netto, ex-ministro da Defesa de Bolsonaro

Outro aspecto estarrecedor é a gravação de uma reunião entre generais que trabalhavam diretamente sob ordens de Bolsonaro. O general Augusto Heleno defendeu que o governo “virasse a mesa” antes das eleições de outubro 2022 para garantir um segundo mandato de Jair Bolsonaro “a qualquer custo”.

A reunião foi no Palácio do Planalto em 5 de julho de 2022. A gravação do encontro foi obtida pela PF no âmbito da Operação Tempus Veritatus. “Não vai ter revisão do VAR. Então, o que tiver que ser feito tem que ser feito antes das eleições. Se tiver que dar soco na mesa é antes das eleições. Se tiver que virar a mesa é antes das eleições”, disse Heleno, de acordo com a PF. “Nós vamos ter que agir. Agir contra determinadas instituições e contra determinadas pessoas”, diz Heleno na gravação.

(Andressa Anholete / Getty Images South America)

“Não vai ter VAR, se tiver que virar a mesa é antes das eleições. Temos que agir contra determinadas instituições e contra determinadas pessoas.”
General Augusto Heleno, ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI)

Em outro áudio ao qual os policiais tiveram acesso, o então candidato a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro em 2022, o general Walter Braga Netto pediu a “cabeça” e chamou de “cagão” o comandante do Exército, general Freire Gomes, por ele ter se recusado a aderir ao movimento golpista.

A fala consta em conversa obtida pela PF em uma conversa de Braga Netto com o capitão reformado do Exército Ailton Moreira Barros. Braga Netto encaminhou a Ailton Barros uma mensagem que ele teria recebido de um integrante das Forças Especiais do Exército na qual Freire Gomes é acusado de “omissão e indecisão” por não agir.

Ailton Gomes sugeriu para que o comandante fosse pressionado a aderir ao golpe e Braga Netto concorda, afirmando que o general teria que ter a cabeça dada aos leões e ele era “cagão”.

Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, forneceu gravações e cópias de mensagens que reforçam os indícios de golpe: minuta da ação foi encontrada na casa de Anderson Torres (abaixo.) (Crédito:Evaristo Sa)
(Mateus Bonomi)

As investigações também descobriram que militares da ativa pressionaram colegas contrários ao golpe para tentar fazê-los aderir ao movimento. Mauro Cid até recebeu um pedido de R$ 100 mil para ajudar na organização de atos golpistas, segundo os relatórios da investigação.

Para a PF, a reunião indica de forma conclusiva a dinâmica da tentativa de um golpe de estado. A PF, com o endosso da PGR, diz que todos os envolvidos na tentativa de golpe atuavam para “validar e amplificar a massiva desinformação e as narrativas fraudulentas sobre as eleições e a Justiça eleitoral”.

A investigação, neste ponto, tenta elucidar a participação dessas pessoas nos atos do dia 8 de janeiro, quando milhares de manifestantes invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes. Para os policiais, fica claro que o grupo se dividiu em dois ramos de atuação:
• um deles estava voltado a construir e propagar informações falsas sobre uma suposta fraude nas urnas, apontando a “falaciosa vulnerabilidade do sistema eletrônico de votação”. Essas afirmações, feitas sem provas, continuaram a ser propagadas mesmo após o resultado da eleição.
O segundo eixo, de acordo com as investigações, praticava atos para subsidiar a abolição do Estado Democrático de Direito, com a intenção clara de consumar o golpe. Essa etapa, de acordo com as investigações, tinha o apoio de militares ligados a forças especiais e táticas, como os “Kids Pretos”, com base num quartel de Goiás.

Em nota, o comandante do Exército, general Tomás Paiva, avisou que os quatro militares da ativa que são alvos da operação serão afastados de suas funções. A avaliação da instituição é de que as medidas judiciais contra os oficiais precisam ser respeitadas.

Almirante Almir Garnier Santos, ex-comandante da Marinha, e general Paulo Sergio Nogueira (abaixo), ex-comandante do Exército, também foram alvos de busca e apreensão da operação da Polícia Federal (Crédito:Marcos Correa)
(Divulgação)

Ao comentar a operação policial que o deixa ainda mais próximo da cadeia, Bolsonaro preferiu o deboche. Enquanto esperava por mais informações sobre a ação da PF fez declarações com gracejos na porta da casa de Angra dos Reis. “Saí do governo há mais de um ano e sigo sofrendo uma perseguição implacável. Ontem, eu havia combinado com o pessoal que ia 4h30 pescar hoje mais longe, mas eu estava cansado e cancelei. Fique em casa aqui. Mas ainda bem, né? Senão iam falar de novo que eu tinha fugido.”

(Alberto César)

“Colocaremos as tropas na rua para apoiar o golpe.”
General Estevam Theophilo, então comandante de Operações Terrestres (COTER) do Exército

Reação

A maioria dos investigados não se pronunciou sobre as operações de busca e apreensão, como foram os casos de Braga Netto, Anderson Torres e Augusto Heleno.

Em nota o Centro de Comunicação Social do Exército diz que o órgão acompanha a operação e está “prestando todas as informações necessárias às investigações”.

Ex-comandante da Marinha no governo Bolsonaro e um dos alvos da operação, o Almirante Almir Garnier Santos se manifestou também em nota, informando que teve o seu aparelho celular apreendido.

Entre outros aliados do ex-presidente, houve protestos. “O país vive uma situação de não normalidade. Inquéritos eternos buscam ‘pelo em ovo’, atacando, sob a justificativa de uma pretensa tentativa de golpe de estado, a honra e a integridade de chefes militares que dedicaram toda uma vida ao Brasil”, disse o general e senador Hamilton Mourão.

Entre os filhos do ex-presidente apenas o deputado federal Eduardo fez comentários: “A política no Brasil, hoje é feita pelo STF”.

Já o presidente Lula disse que Bolsonaro foi “peça fundamental” para os ataques de 8 de janeiro.