Cultura

Filme ‘Os Colonos’ toca em ferida aberta da história chilena

Com pano de fundo histórico, o primeiro longa de Felipe Gálvez Haberle lança mão de uma linguagem de faroeste para narrar o genocídio de povos indígenas no Chile

Crédito: Divulgação

O longa tem personagens inspirados em pessoas, caso do soldado escocês MacLennan (Mark Stanley, à dir.) (Crédito: Divulgação)

Por Eduardo Simões

Com uma linguagem cinematográfica já comparada àquelas dos faroestes dos anos 1960, de Sergio Leone (diretor de i, 1964) e Monte Hellman (de A Vingança de um Pistoleiro, 1966), Os Colonos é o primeiro longa-metragem do diretor chileno Felipe Gálvez Haberle. Vencedora do prêmio FIPRESCI Prize, da mostra Un Certain Regard, em Cannes, no ano passado, a produção era a candidata do Chile à disputa pelo Oscar de Melhor Filme Internacional.

Inspirado em fatos reais, o filme se passa na virada para o século XX, no arquipélago da Terra do Fogo, no Chile, onde três cavaleiros – o atirador mestiço Segundo (Camilo Arancibia); MacLennan (Mark Stanley), um soldado escocês; e Bill (Benjamin Westfall), um mercenário americano – embarcam numa expedição com o objetivo de proteger a propriedade de um rico latifundiário, José Menéndez (Alfredo Castro).

À medida que o trio percorre as terras, das planícies à costa e ao sopé da Cordilheira dos Andes, fica claro que a sua empreitada verdadeira é a aniquilação da população indígena nativa, os onas. Aos poucos, a perspectiva do filme se afasta dos cavaleiros. Sua sanha assassina passa a ver vista com contornos reais, como mera peça numa engrenagem política cujo objetivo é definir a emergente nação chilena.

Passados alguns anos, um agente do governo, Vicuña (Marcelo Alonso), chega à casa de Menéndez com o pretenso objetivo de investigar os crimes genocidas do fazendeiro. Aos poucos, fica claro que seu único objetivo não é fazer justiça, mas certificar-se de que o governo controla a narrativa oficial.

(Divulgação) (Crédito:Divulgação)

Em primeiro plano, o fazendeiro José Menéndez (Alfredo Castro); ao fundo, o mestiço Segundo (Camilo Arancíbia), um dos três protagonistas (Crédito:Divulgação)

Haberle, que vive em Paris, contou em uma entrevista que teve a ideia de fazer o filme, do qual também é roteirista, ao ler sobre o genocídio dos povos originários do Chile em jornais independentes, há cerca de 15 anos. Segundo ele, trata-se de uma parte da história chilena apagada dos livros de história ou contada de forma distorcida, como é o caso do povo selk’nam, da Terra do Fogo, representado hoje em dia em cartões- postais e suvenires, segundo ele.

Com o objetivo de narrar o drama desses indígenas sob a perspectiva daqueles que cometeram os crimes, o diretor optou pela linguagem dos faroestes, em especial dos filmes de John Ford.

Haberle conta que os vê como uma ferramenta do colonialismo, um elemento da propaganda oficial, e que sua obra parte de uma motivação cinemática e política, em que ele se infiltra no gênero, ocupa suas regras e as questiona. O longa, por fim, também é uma ponderação sobre o papel do cinema nesses processos históricos.

Mesmo do ponto de vista formal, Os Colonos traz em si uma reflexão. Como é o caso da fotografia, de Simone D’Arcangelo, marcada pela crescente saturação das cores das roupas dos personagens e de elementos da paisagem ao longo do filme.

Haberle pensou inicialmente em fazer o longa em preto e branco. Em seguida vieram à memória os experimentos com cor dos irmãos Lumière, os autocromos. O diretor conta que quis situar seu drama num reino artificial, visto que o cinema é uma representação, mas também uma distorção da realidade.

Cores das roupas e da paisagem são saturadas, para passar uma ideia de artificialidade ao filme (Crédito:Divulgação)

Outro aspecto técnico importante é a música, dramática, do compositor Harry Alouche. Para Haberle, ela transmite a mensagem de que seu filme é modular, no que refere a seu gênero. Ele varia de um faroeste para um filme de aventura, para um drama, e, por vezes, pode soar como um filme de terror ou mesmo um suspense político.

Após uma das cenas em que os indígenas são massacrados, por exemplo, os três cavaleiros surgem acompanhados de uma música heroica, do mesmo modo como os protagonistas dos faroestes clássicos eram apresentados. O contraste dessa passagem, defende o diretor, permite que ele crie um diálogo crítico com os espectadores.

Alguns dos personagens de Os Colonos, no entanto, são de carne e osso, como é o caso de José Menéndez. A família Menéndez ainda é, segundo Haberle, proprietária de boa parte da Terra do Fogo. MaLennan também existiu, foi integrante da guarda armada do fazendeiro e empresta seu nome, ainda hoje, a rios e estradas da região. O Chile também encarregou um juiz, de nome Vicuña, de investigar aqueles terríveis crimes ocorridos na virada do século.