Comportamento

USP completa 90 anos e ensina como conservar vocação democrática

Com imensa produção acadêmica e constante valorização da pesquisa científica, a Universidade de São Paulo segue ao longo de nove décadas os princípios que levaram à sua criação — a defesa incondicional da democracia e a liberdade de expressão e de pensamento

Crédito: Jorge Araujo Folhapress

Cidade Universitária, na capital paulista: marco de excelência de ensino, ela passou a se chamar Armando de Salles Oliveira, um de seus idealizadores, por decreto do então governador Jânio Quadros, na década de 1950 (Crédito: Jorge Araujo Folhapress )

Por Antonio Carlos Prado e Ana Mosquera

Se ela não mudou lá atrás, apanhando, não é agora que vai mudar, quando acabou de completar noventa anos de existência na última quinta-feira e vive em um Brasil que lhe dá liberdade de expressão. Ela nasceu, amadureceu e envelheceu sob o signo da teimosia, a mais saudável, socialmente falando, de todas as teimosias: a da vocação para a defesa da democracia. Por isso, quase centenária, conserva a juventude da alma crítica, convicção na ciência e no espírito iluminista. Fala-se, aqui, da Universidade de São Paulo (USP), a melhor da América Latina e uma das principais em todo o mundo.

A sua trajetória, desde 25 de janeiro de 1934 (foi criada pelo então interventor Armando de Salles Oliveira), é a de lutar contra o obscurantismo político que, infelizmente, de tempos em tempos escurece a Nação. Vem daí, da racionalidade científica e liberdade de pensamento, a perenidade de sua vasta produção intelectual.

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Claude Lévi-Strauss (no alto) e Roger Batisde (acima), dois nomes consagrados da antropologia e sociologia francesa na década de 1930: ajuda acadêmica no entendimento da identidade brasileira (Crédito:Divulgação)

É natural que hoje, quando falamos de USP, nos venha à mente a cidade universitária no bairro paulistano do Butantan, e também as unidades em outros pontos da capital e do interior, totalizando campi de setenta e oito mil metros quadrados. Mas voltemos no tempo.

É interessante notar que, na linhagem machadiana entre as tantas outras linhagens que a USP segue, cabe a definição do Bruxo do Cosme Velho à personagem Capitu: se dentro da menina da rua de Matacavalos já existia a mulher da rua da Glória, na recém-nascida USP de 1934 também já exista a USP atual. E a mulher, no caso, é a vocação democrática.

Dois anos recua­dos, é 1932, e os estados de São Paulo e Mato Grosso se insurgem contra a ocupação da Presidência da República por Getúlio Vargas, uma vez que ele perdera as eleições de 1930 para Júlio Prestes. Chegou ao Palácio do Catete pelas armas e, pelas armas, era justo alijá-lo de lá. São Paulo perdeu, no entanto, a Revolução de 1932.

Agora, dois passos à frente: 1934, São Paulo, por sair derrotado da revolução, necessi­tava criar nova elite dirigente. “A USP foi formada como resposta à derrota política”, diz Sergio Miceli, professor titular de sociologia e diretor-presidente da Edusp.

Sergio Miceli: “A USP formou gerações que comandam universidades em outros estados” (Crédito:Marco Ankosqui)

Mais, bem mais: Getúlio, na Constituição que promulgara em 1934, centralizava o poder no patamar federal e já não flertava às escondidas, mas namorava publicamente o fascismo italiano. Era urgente que se criasse um estamento irradiador do pensamento liberal e democrático.

Assim veio à luz a USP, ou, melhor, a sua menina dos olhos: a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, no Palacete Jorge Street, na então elegante Alameda Glete, no ex-nobre bairro dos Campos Elyseos.

“A universidade é uma alma mater central da classe política e dirigente brasileira. Ela é a instituição-chave na formação de quadros acadêmicos, intelectuais e científicos”, diz Miceli.

A USP nasce com o privilégio de acolher entre seus docentes uma missão francesa integrada por intelectuais da estatura de Claude Lévi-Strauss, Fernand Braudel, Roger Bastide.

Em 1937, quando Getúlio instaurou a ditadura do Estado Novo, é ela, a USP, quem resistirá. E venceu.

Idêntica resistência, entre docentes e discentes, viu-se contra o famigerado golpe militar de 1964 — e, quatro anos após, em relação ao AI-5. Entre os professores, houve a diáspora; entre os estudantes, luta armada, tortura e morte. Símbolo dessa barbárie do golpe de Estado é Alexandre Vannucchi Leme, 23 anos, piracicabano aluno de geologia, massacrado pela repressão — hoje nomeia ruas e praças de diversas cidades. Mais uma vez era a USP resistindo, a razão nocauteando a brutalidade.

Demorou, mas o arremate do triunfo veio em 1986, quando, finalmente, já na redemocratização, a USP realizou seu grande sonho democrático: a criação do Instituto de Estudos Avançados, presidido pelo professor Carlos Guilherme Motta, em um processo do qual participou ativamente a revista Senhor, publicada pela Editora Três.

Não sem motivo o primeiro palestrante foi um dos principais articulistas da revista nessa época, o jurista, sociólogo e artífice da abertura política Raymundo Faoro. A palestra tratou da existência ou não de um pensamento político nacional Há ou não há? Debate mais democrático, impossível.

Palacete Jorge Street: primeira sede da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, em 1934, na então elegante Alameda Glete, no ex-nobre bairro paulistano de Campos Elyseos (Crédito:Divulgação)