Cultura

Uma autora contra a miopia religiosa

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Inscrições em ossos e cascos de tartaruga dos Shang (1600 a.C), na China, tinham caráter profético (Crédito: Divulgação)

Por Eduardo Simões

No recém-lançado A Arte Perdida das Escrituras, a escritora britânica Karen Armstrong – expert em estudos religiosos comparativos, com mais de dez títulos lançados no Brasil – aponta que a modernidade trouxe a reboque uma tendência à racionalidade que subtraiu das religiões o caráter místico e elástico dos textos sagrados. Como resultado, temos uma recorrente instrumentalização da fé, não importa de qual credo.

Não faltam exemplos na história recente. Do ataque às Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001, até a emergência do Estado Islâmico, na década seguinte, vimos o Alcorão, o livro sagrado do islamismo, ser repetidamente sujeito a uma manipulação ideológica. De um lado, para justificar atos de terrorismo; de outro, para defender uma visão intolerante da religião. Em ambos insistia-se numa interpretação literal das escrituras.

O mesmo vale para o cristianismo, segundo Armstrong, e ainda para outros ditos credos fundamentalistas, sejam eles judaicos, budistas, hindus ou confucionistas. Em seu livro, a estudiosa lembra que, antes do começo do período moderno, “os humanistas do Renascimento e os reformadores protestantes procuravam voltar ‘às fontes originais’ (ad fontes) do cristianismo”, e as escrituras eram revisadas e atualizadas. Sua mensagem, afirma, era reinterpretada de acordo com as demandas do presente. Prossegue a autora:

“A arte da escritura não significava um retorno a uma suposta perfeição do passado, pois o texto sagrado sempre foi um projeto em andamento”. Segundo ela, para ler as escrituras corretamente, precisamos fazê-las falar de forma direta às nossas dificuldades modernas.

Em vez disso, alguns fundamentalistas cristãos de hoje pretendem reviver a legislação da 24ª Idade do Bronze da Bíblia hebraica, enquanto reformadores muçulmanos tentam, servilmente, retomar os costumes dos mouros da Arábia do século VII.

Exemplo de escritura midrash, uma literatura rabínica que contém as primeiras interpretações e comentários sobre a Torá Escrita
e a Torá Oral, da Bíblia Hebraica (Crédito:Divulgação)

Armstrong ressalta que as narrativas das escrituras jamais tiveram a pretensão de serem descrições factuais dos acontecimentos, da criação do mundo à evolução das espécies. O mesmo vale para as biografias de seus sábios, profetas e patriarcas.

Mas o desenvolvimento da metodologia arqueológica e o conhecimento de línguas antigas impuseram um entendimento historiográfico e científico de nosso passado. “Com nossa mentalidade baseada no logos, também fica difícil para as pessoas pensarem em termos de mitos convencionais, o que torna a escritura altamente problemática”, afirma Armstrong.


Armstrong tem mais de dez títulos publicados no Brasil (Crédito:Aaron Harris)

Ritmos da natureza

As escrituras da Índia e da China, segundo as quais os seres humanos precisam se “alinhar aos ritmos da natureza”, são exemplares da falibilidade desta tentativa de interpretação exclusivamente racional de textos sagrados. A autora cita o Rig Veda, da Índia, o mais prestigioso texto da coleção conhecida como Veda (“conhecimento”), e ressalta que “as verdades comunicadas pela escritura diferiam do conhecimento factual que derivamos de nossa avaliação normal do mundo, feita com o cérebro esquerdo, que é apenas a representação de uma realidade muito mais complexa”.

Armstrong também se debruça sobre as inscrições dos Shang, “um povo nômade de caçadores, proveniente do norte do Irã, que tomou o controle da Grande Planície entre o Vale do Huai e a moderna Shantung em 1600 a.C”, na China, cujo rei era reverenciado como filho do deus Di Shang Di. A ele cabia fazer leituras de rachaduras em ossos ou cascos de tartaruga, com caráter oracular.

Depois, os gravadores reais esculpiam o recado do rei a Di numa concha, registravam o prognóstico do deus e, de vez em quando, documentavam o resultado. “Por mais irracional que pareça, tratava-se de uma séria tentativa de criar uma ciência de precedentes, para ver se surgia um padrão subjacente que pudesse ajudar o rei a prever o comportamento de Di”, escreve a autora.

Partindo da análise desses casos, Armstrong defende ainda que a escritura, como qualquer obra de arte, “requer o cultivo disciplinado de um modo adequado de consciência”.

E ressalta que a busca por seu entendimento não pode se limitar a uma procura individual. Para a autora, é preciso “voltar-se para essas escrituras e fazê-las falar diretamente ao sofrimento, à raiva e ao ódio que abundam hoje no mundo e que representam um perigo para todos nós.”


Segundo Armstrong, o Rig Veda, da Índia, trazia verdades que diferiam do conhecimento factual de nossa avaliação normal do mundo (Crédito:Divulgação)