Comportamento

Água, o mais recente luxo da gastronomia; entenda

Das geleiras ao orvalho, águas especiais são vendidas por cifras de até quatro dígitos. Brasil já tem restaurante com carta exclusiva na capital e sommeliers atuam para promover as nacionais e a importância do líquido para a gastronomia

Crédito: Nat Diniz

Rodrigo Rezende, sommelier: rótulos europeus, do continente americano e até da Coreia compõem coleção (Crédito: Nat Diniz)

Por Ana Mosquera

Imagine um casamento regado a água, e não só para aqueles que não bebem álcool por saúde ou opção. A invasão do líquido em celebrações, tomando lugar do champanhe, está longe de ser piada. Em cartas de bares e restaurantes, do Centro-Oeste brasileiro aos Emirados Árabes, águas exclusivas cativam proprietários, bartenders e consumidores.

Enquanto em Dubai profissionais assistem seus drinques se manterem gelados por mais tempo nas mãos dos clientes, em um estabelecimento do Distrito Federal a presença de sete rótulos eleva o nível do líquido básico a bebida de harmonização. “A ideia é propiciar ao cliente que aprecia a bebida uma experiência completa. Estudei o conceito e as diferenças de cada água para fazer a carta, que tem tido uma receptividade excelente”, diz o chef Marcelo Petrarca, sócio do Restaurante Lago, em Brasília.

Na seleção feita por ele, há rótulo francês, italiano, português, mineiro, da Serra da Mantiqueira e norueguês — a última, chamada Voss, é considerada a mais pura do mundo, de fonte artesiana.

Segundo o primeiro sommelier de água certificado do Brasil, Rodrigo Rezende, é preciso se desprender da ideia de que água serve apenas para hidratar. “Todas elas têm essa função, mas se eu coloco uma opção com muita mineralidade combinada a um espumante ou vinho branco, vou cortar aromas e sabores muito delicados dessas bebidas.”

A quantidade de sais minerais presentes na água que se bebe durante uma refeição ou intercalada com um vinho altera a percepção do sabor.

Além das harmonizações óbvias, há aquelas feitas por contraste: para acompanhar uma delicada ostra, por exemplo, uma bebida com gás pode trazer crocância ao fruto do mar. “Uma água com mineralidade alta pode ajudar a ‘temperar’ uma salada ou sopa. 90% das vezes dá errado, mas o sommelier gosta de arriscar”, brinca.

“Precisamos nos desprender da ideia de que água serve apenas para hidratar.”
Rodrigo Rezende, sommelier de água

Assim como, regras à parte, especialistas dizem que o melhor vinho é aquele que a pessoa gosta, no caso da água a máxima também funciona. “Está muito ligado à cultura local, àquilo que você consome”, diz Ensei Neto, engenheiro químico e especialista em Gestão Sensorial de Alimentos e Bebidas.

Da mesma maneira que “água não é tudo igual”, como espalha o sommelier Rodrigo Rezende, não existe um ideal da bebida perfeita. A nomenclatura gourmet ou premium não passa de marketing, segundo os especialistas. “O que torna uma água boa? Ela não precisa ser tão mineralizada, inclusive porque isso pode causar interferência no sabor se os sais mais frequentes — sódio, cálcio, potássio e magnésio — não estiverem em equilíbrio. Águas boas tem pH próximo do neutro, entre 6 e 7”, complementa Neto.

Engana-se quem pensa que, na estante de rótulos para degustação, Rezende acumula apenas exemplares de outras nacionalidades e de territórios exclusivos. De Belo Horizonte, sempre que vai a São Paulo ele faz questão de adquirir uma série de garrafas na rua comercial 25 de março.

“Da última vez, comprei mais de sete marcas diferentes. As pessoas me acham doido, mas são águas boas, e a degustação faz parte da pesquisa.”

A água mineral que brota de fontes brasileiras, contudo, ainda é pouco valorizada. “Lá fora, eles não têm a abundância que nós temos e, nos EUA, 90% das águas são purificadas. No Brasil, vem surgindo agora as adicionadas de sais e livres de sódio, só que a presença desse elemento na água mineral natural não faz mal à saúde.”

Ele compara a relação com a água nativa ao “complexo de vira-lata” criado pelo escritor Nelson Rodrigues na década de 1950, que se refere à inferioridade colocada pelo brasileiro frente ao resto do mundo. Poucas pessoas sabem, por exemplo, que a Lindoya já chegou até a Lua, a bordo da Apollo 11, em 1969, e que no País há chefs colhendo resultados satisfatórios ao cozinhar usando águas de melhor qualidade. À distância de fiordes e geleiras, está na hora de o Brasil abrir os olhos para sua bebida valiosa.

OURO DE BEBER
De geleiras do Ártico a coquetéis em Dubai, gelo considerado o mais puro do mundo viaja 7.600 km

De rochas vulcânicas no Havaí, icebergs na Noruega, gotas de orvalho na Tasmânia e das geleiras da Groenlândia. É do último local, do fiorde Nuup Kangerlua, ao redor da capital Nuuk, que a startup Arctic Ice extrai gelo milenar para bares de Dubai, nos Emirados Árabes.

Considerado o mais puro do planeta, nunca teve contato com o fundo nem com o topo da geleira; comprimido por 100 mil anos, possui menor quantidade de bolhas e, logo, maior tempo de derretimento. Já foram 20 toneladas métricas enviadas à Dinamarca e, dali, de navio ao Oriente Médio. 7.600 km, no total. Uma longa viagem.

Luxo de 100 mil anos: alta compressão garante ausência de bolhas e derretimento vagaroso no drinque (Crédito:Divulgação)