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Volta de Trump pode ser um perigo para o mundo, dizem analistas

A demonstração de força do ex-presidente em Iowa reforça seu favoritismo para voltar à Casa Branca. O destino dos EUA está na Suprema Corte, que deve julgar um caso-chave em fevereiro que poderá torná-lo inelegível. Seu retorno ao poder pode enfraquecer a democracia no mundo e ampliar os conflitos armados

Crédito: Evelyn Hockstein

Donald Trump usa de discurso populista para tentar mais um mandato e implantar o que adversários chamam de ‘erosão da democracia’ (Crédito: Evelyn Hockstein)

Por Denise Mirás

RESUMO

• À frente nas pesquisas, Trump tem acusações a resolver, entre elas a de que incentivou a invasão do Capitólio em 6/1
• Mas se sair candidato e ganhar, a segunda era Trump pode ser mais radical e polarizada que seu primeiro mandato
• Mundo teme fortalecimento da extrema-direita e enfraquecimento global da democracia
• Como Trump pode ser derrubado nos tribunais, os concorrentes DeSantis e Nikki Haley seguem em briga pela indicação do Partido Republicano
• Democrata Joe Biden espera vencer se apresentando como garantidor da democracia
• Cenário internacional (Ucrânia, Rússia, China, Taiwan, Israel) pode mudar radicalmente com as ideias de Trump, temem analistas

O destino do planeta pode estar nas mãos de nove juízes da Suprema Corte dos EUA, que em 8 de fevereiro se reúnem para iniciar um julgamento vital para Donald Trump, que tenta voltar à Casa Branca. O ex-presidente entrou com recurso contra o estado do Colorado, que decidiu exclui-lo de suas cédulas nas primárias, e eventualmente na eleição presidencial de 5 de novembro. Seja qual fora a decisão — que pode se estender a todo o país —, irá refletir nas campanhas dos candidatos do Partido Republicano e também do Democrata, pelo qual o presidente Joe Biden tenta se reeleger.

Fato é que, se Trump está muito à frente das pesquisas, pode ser excluído do processo se considerado inelegível. Ele enfrenta quatro processos, com 91 acusações no total, e o mais significativo deles é sobre seu envolvimento na invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021.

Em meio às turbulências políticas e um processo eleitoral já judicializado, o mundo teme uma segunda era Trump, mais radical e polarizada que em seu primeiro mandato (2017-2020). Se naquele período a extrema-direita ganhou força pelo mundo, com mais poder em um segundo mandato Trump estimularia a erosão da democracia, em efeito dominó.

O pontapé inicial das prévias republicanas se deu com o caucus no Iowa — nesse sistema, usado em alguns dos 50 estados americanos, a votação é organizada pelo partido; no caso das primárias, é pelas instituições eleitorais. Conforme os votos recebidos, os candidatos têm direito a um número proporcional de delegados para a Convenção Nacional do partido (Republicano ou Democrata), que então bate o martelo sobre qual será seu representante na eleição à Presidência — marcada para 5 de novembro.

Trump convocou seus eleitores do Iowa para enfrentar borrascas e metros de neve, estradas congeladas e perigosas em frio de menos 37 graus, para votar “e deixar para morrer depois”.
Com grande apoio de evangélicos, ficou com 51% dos cerca de 110 mil votos, uma vitória recorde.
• A única disputa se deu entre o segundo colocado, Ron DeSantis, com 21,2%, e a terceira, Nikki Haley, com 19,1%.
O jovem bilionário Vivek Ramaswamy, quarto colocado com 7,7%, e Asa Hutchinson, o último com 1%, desistiram da disputa.

Ron DeSantis e Nikki Haley seguem em briga ferrenha pelo segundo lugar entre os pré-candidatos republicanos, na esperança de Trump se tornar carta fora do baralho (Crédito:Andrew Harnik)
(Meg Kinnard)

Essa é a função essencial das prévias americanas: tirar do páreo os candidatos com menor potencial, além de selecionar os temas que vão mobilizar os eleitores.

Como o rumo da campanha eleitoral deste ano pode ser determinado pelos tribunais, os principais rivais de Trump — DeSantis e Nikki Haley — são acompanhados com atenção, já que podem herdar a candidatura republicana.

Mas isso não minimiza o fato de que não se mostram à altura, pelo menos em popularidade, para enfrentar o ex-presidente.

Se muitos apontam DeSantis, governador da Flórida, como “pior que Trump” em seu radicalismo, capaz até de cooperar com os democratas para tornar Trump inelegível e se tornar o candidato republicano, também se especula que os dois, ele e Nikki, seguiriam na corrida de olho nessa possibilidade mesmo amargando resultados ruins.

Ou mesmo para negociar desistência em troca do posto de vice-presidente na chapa. O próximo embate será nesta terça-feira, 23, no estado de New Hampshire, onde Nikki, ex-governadora da Carolina do Sul, pode ter um desempenho melhor, mesmo sem fazer sombra a Trump.

Arrogância radical

Em seu primeiro discurso após vencer em Iowa, o ex-presidente mostrou o tom do que será seu eventual segundo mandato. Chamou os imigrantes de “terroristas” e prometeu uma deportação em massa.

Ele voltou a explorar os temas que o tornaram popular e ajudaram a criar uma espécie de culto em torno de seu nome:
• o ressentimento contra as elites,
• a xenofobia,
• e o preconceito racial.

Paradoxalmente, ele está atraindo eleitores mais jovens, hispânicos e negros — está avançando sobre o eleitorado democrata. A vitimização (de perseguido pelo Judicionário) e a retórica violenta estão dando resultados.

Apoiadores republicanos enfrentam frio perto de -50 graus no Iowa, com nevascas e estradas muito perigosas conforme ordem de Donald Trump para ‘votar primeiro e morrer depois’ (Crédito:Elizabeth Frantz)

O democrata Joe Biden conta com esse extremismo do oponente para conseguir a reeleição, já que se apresenta como uma alternativa de centro e ponderada — uma espécie de garantidor da democracia.

O Partido Democrata coloca todas as fichas nas prévias da Carolina do Sul, por causa do grande número de eleitores negros (que ajudaram na eleição de Biden, assim como mulheres e jovens).

Essas primárias democratas serão em 3 de fevereiro, praticamente a uma semana do início do vital julgamento da Suprema Corte sobre a questão do Colorado, no dia 8 daquele mês.

A data foi escolhida para dar tempo dos nove juízes (maioria conservadora, com três nomeados pelo próprio Trump) chegarem a alguma conclusão sobre a inegibilidade ou não do ex-presidente até 5 de março, quando ocorrerá a “Superterça” — momento decisivo em que haverá primárias democratas e republicanas em 15 estados.

É um processo pré-eleitoral complexo. O cientista político Leandro Consentino, do Insper, argumenta que “são 50 eleições distintas”, com regras de 50 estados e suas questões próprias.

“Há ações locais e federais e um caminho tortuoso, se repassadas à Suprema Corte, com decisões até imponderáveis”, diz.

Para ele, processos que eram vinculados à esfera política estão sendo tratados também na judicial. Isso é pernicioso, porque conduz à politização da Justiça, que deve ser neutra.

E, o mais grave, coloca os tribunais no centro de disputas partidárias. “É perigoso para a democracia.”

Acusações

Das acusações contra Trump, a mais emblemática é sobre o atentado de 6 de janeiro de 2021, quando ele se negou a passar a presidência para Joe Biden, o eleito, e ainda incentivou o ataque ao Capitólio.

Além do processo do Colorado, o Congresso abriu investigação e em seu relatório final incriminou Trump por crime de sedição, acrescenta Roberto Goulart Menezes, do Instituto de Relações Internacionais da UnB. “A conclusão foi de que, ao negar o resultado eleitoral e convocar apoiadores para uma invasão onde cinco pessoas morreram, houve tentativa do golpe de Estado”, afirma.

A Justiça do Colorado tirou Trump de sua cédula eleitoral das primárias (assim como o Maine) justificando que ele violou a Seção 3 da 14ª Emenda da Constituição, de 1868, que proíbe de ocupar cargos públicos qualquer pessoa que tenha jurado obedecer à Constituição e depois se envolvido em uma insurreição contra ela.

O ex-presidente recorreu à Suprema Corte, e lá espera-se debates sobres palavras e interpretações (“insurreição”, que é planejada, e “motim”, que é espontâneo; presidente e não funcionário público, porque é “eleito” e não “nomeado”), da parte da acusação e da defesa.

Os juízes terão de dizer se Trump traiu a democracia — tornando-se inelegível — e se a decisão vale só para o Colorado ou para todo o país.

João Carlos Souto, professor de Direito Constitucional e diretor da Escola Superior da AGU, estuda a Suprema Corte americana há 30 anos. Explica que nada será decidido na audiência fechada do dia 8, quando passam a ser ouvidos acusadores e a defesa.

Manifestação anti-Trump e pró-escritora da ação por estupro; Trump faz tribunais de palco, mas em Nova York manteve a boca fechada por ordem do juiz (Crédito:Angela Weiss)
(Pool / Getty Images North America)

Normalmente a resolução só seria apresentada depois de meses, mas nesse caso a tendência é a Corte decidir rapidamente — é difícil prever em quanto tempo — e com efeito amplo.

Consentino observa que existe uma oposição “entre dois direitos, duas garantias”: da liberdade de expressão, de forte tradição nos EUA, e do resguardo do Estado de Direito. “Se Trump for barrado, poderá liderar uma reação. Mais um ingrediente nesse contexto americano complicado.”

Para Fernando Acunha, doutor em Direito, Estado e Constituição pela UnB, será julgada a aplicação da 14ª Emenda “sobre um presidente no cargo” e baseada em argumentos do Colorado. “Mas há outros procedimentos no país tentando afastar Trump da candidatura pela mesma emenda. É uma característica do sistema americano: eles julgam um caso individualmente e então fixam suas razões, que passam a ser aplicadas em situações iguais. Assim, valeria para o país todo.”

Para Juliano Zaiden, professor associado da UnB com foco em Direito Constitucional Comparado, a decisão será quanto à aplicação da 14ª Emenda no Colorado, mas a partir daí se nacionalizaria a discussão.

Mesmo com a economia indo bem, Joe Biden precisa do apoio de celebridades democratas para conseguir ‘reenergizar’ eleitores (Crédito:Matt Rourke)

Trump ainda responde a processos por difamação (um “adendo” ao acordo de multa pelo estupro da escritora E. Jean Carroll) e fraude empresarial em Nova York.

E há os mais aguardados, que já têm datas marcadas para audiências:
• em 4 de março, começa o julgamento em Washington por tentativa de subverter a eleição de 2020;
• no dia 25 desse mês, em Nova York, responde por pagar a uma atriz pornô com dinheiro de campanha do Partido Republicano;
• em 20 de maio começa ação na Flórida, dos documentos secretos da Casa Branca que surrupiou e levou para sua mansão.

Entre 15 e 18 de julho, será a Convenção do Partido Republicano, quando terá de sair o indicado para a disputa da Presidência da República em 5 de novembro.

Estando ou não no páreo, Trump ainda terá de ir à Georgia responder por tentativa de reverter resultados eleitorais naquele Estado.

A Convenção do Partido Democrata será de 19 a 22 de agosto. Até lá, Biden tentará se contrapor a Trump — que aproveita até seus julgamentos para tentar aparecer mais —, apresentando os bons indicadores de seu governo, quanto à economia no geral, com queda no desemprego, por exemplo.

“Em 2016, o Trump era novidade e agradava os perdedores da globalização. Agora, Biden pode deixar a desejar, mas não em números”, avalia Menezes.

Para ele, a ação do atual presidente no caso de imigração foi até mais forte — o que pode agradar eleitores adversários.

E se a eleição passada foi apertada, os democratas deverão investir novamente na Georgia, que se mostrou decisiva pelos votos dos eleitores negros, e nos estados do meio-norte com indústrias falidas, também chamados de swing states porque oscilam entre votar por democratas ou republicanos a cada eleição.

Taiwan manteve seu governo pró-EUA e anti-China com a eleição de Lai Ching-te, em uma região altamente sensível para as duas potências, em acirrada disputa geopolítica (Crédito:ChiangYing-ying)

Percepção negativa

Entre as vantagens de Biden está o fato de ter a máquina do governo na mão. “O que ele precisa é remobilizar os eleitores tradicionalmente democratas, negros e latinos, que andaram pendendo para o Trump, contando com uma entrada forte em campo de correligionários importantes, como o ex-presidente Barack Obama”, analisa Cosentino.

Para Carlos Braga, da Fundação Dom Cabral, Biden se vê em meio a uma ironia: a economia do país vai bem, mas ele está sob percepção negativa. Também tem uma agenda mais difícil de explicar aos eleitores.

Já Trump usa o discurso de quem tem soluções simples para problemas complexos, típico de populistas. “Um eventual novo mandato de Trump equivalerá a uma mensagem de erosão de normas democráticas para o mundo”, assinala.

A retirada dos EUA do Acordo de Paris, por exemplo, que trata das questões climáticas, teria implicações globais significativas também no comércio internacional.

O professor ainda destaca como a administração Trump foi negativa para os europeus, que viram o crescimento da extrema-direita em vários países daquele continente, que poderá ficar mais forte ainda com um novo mandato do americano. “Uma preocupação grande é com a situação em Israel, que teria apoio mais significativo e poderia resvalar para um perigo bem maior, de conflito com o Irã.”

Para Consentino, um segundo mandato de Trump seria mais radical e deixaria lideranças do mesmo perfil mais à vontade para esgarçar ainda mais o sistema político e o tecido social, com polarização se aprofundando e investidas mais fortes contra controles constitucionais.

Braga fala de Trump como “figura única” que é percebida positivamente como parte do processo dos países industrializados, por aqueles que perderam mobilidade social (a produção americana cresceu 126% nos últimos 40 anos, contra apenas 27% dos salários).

“Esse é um problema mundial, associado à globalização, à tecnologia que faz consumidores se beneficiarem de produtos da China, por exemplo, mas não beneficia os trabalhadores, que se sentem deslocados e viram massa de manobra do MAGA (Make America Great Again, mantra de Trump)”, destaca.

Biden tem cinco frentes de conflitos abertas pelo mundo, como no Mar Vermelho, onde grupos de terroristas houthis atacam navios mercantes ocidentais (Crédito:Divulgação)

Consequências

As implicações de uma eventual vitória de Trump, tida cada vez mais como inevitável, já se mostram. Os atores dos conflitos internacionais em curso agem com mais cautela, temor e radicalização.

• A Ucrânia, que perderá toda a ajuda militar americana, tenta ampliar sua rede de apoios, pois ficará mais vulnerável ao expansionismo de Vladimir Putin e dependerá do auxílio da União Europeia.

• A própria Europa ficará mais vulnerável, já que Trump deseja enfraquecer — ou mesmo extinguir — a OTAN, aliança militar que garantiu a segurança do continente desde a Segunda Guerra.

• A China ficará sob maior pressão comercial, o que leverá Xi Jinping a acelerar ainda mais sua corrida armamentista.

• E Taiwan, que acaba de eleger um presidente pró-autonomia, Lai Ching-te, viverá uma ameaça de invasão ainda mais concreta e iminente.

•  Da mesma forma, crescerá a tensão no Oriente Médio, já que Trump deverá apoiar incondicionalmente a política extremista de Benjamin Netanyahu contra os palestinos.

Não é apenas a democracia no planeta que estará mais frágil com a eventual vitória do republicano. A escalada de conflitos internacionais dos últimos anos é apenas uma mostra das tensões que podem ser esperadas se o populista mais poderoso do planeta voltar ao poder.