Cultura

Nelson Freire: o gênio do piano e suas zonas cinzentas

Biografia de Olivier Bellamy narra a vida e a trajetória do pianista brasileiro Nelson Freire, morto em 2021, dois anos após uma queda que o afastaria dos palcos

Crédito: Tuca Vieira

Nelson Freire, em 2007, em apresentação do projeto Piano Solo, no Teatro Municipal, em São Paulo (Crédito: Tuca Vieira)

Por Eduardo Simões

Tímido, Nelson Freire era avesso a entrevistas. Ao longo de 20 anos, no entanto, o jornalista e escritor francês Olivier Bellamy conseguiu romper paulatinamente a resistência do pianista brasileiro, em conversas feitas em Paris ou no Rio de Janeiro, que serviram de lastro para a biografia Nelson Freire: O Segredo do Piano (DBA), que chega ao Brasil no ano do octagésimo aniversário do nascimento do artista.

Em entrevista à Istoé, Bellamy conta que chegou, com o passar do tempo, a aproximar-se de Freire ao ponto de passar vários dias em sua casa, no Rio. “Não só conversamos, mas tive acesso a documentos pessoais. E pude conhecer seus amigos íntimos com quem a confiança foi estabelecida”, diz. “Nelson falava pouco, era preciso adivinhar muita coisa, mas quando ele contava uma lembrança, ela era sempre muito vívida e precisa”.

Nelson Freire nasceu em 1944, em Boa Esperança (MG), e começou a tocar piano apenas observando sua irmã 14 anos mais velha, Nelma, “acariciar as teclas com graça”, escreve Bellamy.

Prodígio, aos 3 anos já tocava de ouvido todas as músicas aprendidas pela irmã. Quando morreu, em 2021, aos 77 anos, era um dos pianistas mais importantes do mundo, já tendo se apresentado com orquestras do naipe da Filarmônica de Berlim e da Sinfônica de Londres, entre outras.

Para completar as eventuais lacunas de suas conversas com Freire, Bellamy explica que leu entrevistas em francês e português. “Foi fascinante porque, em cada uma, ele acrescentava detalhes extras que poderiam parecer insignificantes por si só, mas que no contexto diziam muito sobre sua personalidade e sua vida. Não dizem que o diabo está nos detalhes?”, indaga o biógrafo, que também entrevistou amigos do pianista, por WhatsApp, durante o auge da pandemia de covid-19. “O filme dirigido por João Moreira Salles (em 2003) também foi uma grande fonte”.

Registro do pianista brasileiro, aos 18 anos, praticando o piano, que começara a tocar aos 3 (Crédito:Divulgação)

Autor de uma biografia da pianista argentina Martha Argerich, amiga muito próxima de Freire, Bellamy ressalta que o brasileiro é um dos artistas que ele mais ouve. Afirma que o pianista tinha Chopin “muito perto de seu coração”, assim como Mozart ou Brahms. Beethoven, porém, nem tanto.

“Ainda assim, ele tocava lindamente suas composições, mas deve ter sido um desafio para ele. Exceto Piano Concerto no. 4, aquele que Martha Argerich nunca ousou tocar, mas que ele compreendeu intimamente”, afirma o escritor.

“Em suas interpretações, Nelson buscou a verdade. Ele não tentava dar a sua interpretação, mas sim desvendar o segredo da autenticidade absoluta das obras. É a coisa mais difícil de todas. Ele buscou o impossível, muitas vezes se aproximou dele, e quando todos os planetas estavam alinhados, não havia nada mais belo e puro no mundo.”

Na biografia, Bellamy lembra que, “ao voltar à cidade natal para um recital clássico de verdade, ele ouvirá o mais fanfarrão de seus tios exclamar depois de uma sonata de Beethoven: ‘Ei, Nelson, agora toque o ‘Tico-tico no fubá’!’”. Apesar da brilhante carreira internacional, o pianista, afirma Bellamy, nunca se esquecera do Brasil.

“Ele permaneceu muito apegado às memórias de infância, à comida do Brasil, à língua, à mentalidade brasileira, aos pais, aos amigos. Era um vínculo indestrutível, mas ele não viu o seu País mudar. E ele próprio era diferente dos outros. De certa forma, ele estava apaixonado por uma imagem, por uma ilusão. O Brasil era para ele como Dulcineia para Dom Quixote”, observa.

Ícaro

Em 1967, surge um dos pontos de inflexão de sua carreira ainda incipiente. A caminho de Belo Horizonte, onde tinha um concerto marcado, Freire é um dos sobreviventes de um acidente de ônibus que vitima seus pais, José e Augusta.
“A perda deles assinou um pacto infernal entre a música e ele”, conta Bellamy. “Tal como Ícaro, ele sempre teve que voar mais alto. Ele queimou as asas quando caiu sobre o ombro”, diz o biógrafo, referindo-se à queda que Freire sofreu em 2019, causando uma fratura no braço direito. “Quando ele soube que não tocaria mais como antes, tudo dentro dele morreu. Martha teve dificuldade em entendê-lo. Ela entendeu, mas não admite. De certa forma, com esse fim trágico e prematuro, ele se tornou uma lenda, o que é raro entre os intérpretes.”

Instado a destacar o que a sua biografia traz de mais revelador sobre seu misterioso personagem, Bellamy ressalta que Freire era “um gênio musical, um ser hipersensível, com um grande coração, muitos segredos, sofrimentos, terríveis zonas cinzentas, mas também muita alegria, travessuras e ternura para partilhar. Existem vários Nelsons. Eles são todos muito diferentes. E parafraseando Jorge Luis Borges, ‘o real é o outro’”.