Comportamento

As redes sociais no banco dos réus

As duas décadas de supremacia digital das plataformas de relacionamento trazem mais reclamações de toxicidade do que soluções benéficas aos usuários ­­— interesses de Facebook, Instagram, X e até YouTube são colocados em xeque

Crédito: Saul Loeb

Mark Zuckerberg, da Meta, depõe no Congresso norte-americano e tenta explicar por que faz vista grossa ao uso político de suas plataformas, especialmente o Facebook (Crédito: Saul Loeb)

Por Luiz Cesar Pimentel

O aniversário de 20 anos do Facebook, neste fevereiro de 2024, marca as duas décadas em que as redes sociais dominaram com folga o ambiente digital. Mas o período anterior à data comemorativa representa o pior momento sobre a imagem dessas plataformas de conexão, com atribuições de dor e sofrimento em volume bem mais alto do que o entretenimento ao qual elas dizem que se propõem.

Tanto que, na semana que passou, a Meta, proprietária do Facebook, Instagram e Whatsapp, e a Open AI, símbolo de inteligência artificial com o Chat GPT, anunciaram novas políticas de controle dos conteúdos disponibilizados em seus domínios ou criados a partir das ferramentas que disponibilizam.

Inclua na conta o X (ex-Twitter), que desde a aquisição pelo bilionário Elon Musk, em 2022, perdeu mais de 70% de seu valor de mercado.

As respostas das redes demoraram e vieram somente por pressão popular. Em 2023, documentos obtidos pelo jornal Wall Street mostraram que as propriedades da Meta exploravam intencionalmente vulnerabilidades em cérebros jovens para viciá-los.

Pelos relatórios, a empresa adaptou mudanças a características típicas adolescentes para liberação de dopamina, o hormônio da satisfação e motivação. A partir da revelação, 41 dos 50 estados norte-americanos entraram com ação coletiva por “prejuízo à saúde mental e física dos jovens a partir de práticas nocivas”.

Vale lembrar que o problema é ainda mais grave no Brasil, já que o País é vice-campeão mundial em uso de redes sociais, com média diária de 4 horas por internauta, enquanto os EUA ficam próximos da média global de 2 horas e meia.

“Os jovens vivem como se estivessem sempre com arma apontada para suas cabeças — não podem brigar com ninguém, falar o que pensam, reagir a nada, usar a roupa que querem, com medo de serem expostos, denunciados, cancelados. Muitos dizem por força de expressão: ‘Nossa, eu prefiro morrer’. E infelizmente alguns realmente preferem”, aponta o perigo a psicóloga e especialista em Neurociência Cris Eppenstein.

Funcionários substituem o logotipo do Twitter pelo X. O nome foi escolhido por Elon Musk, para marcar a nova fase da plataforma (Crédito:Justin Sullivan)
(Tayfun Coskun)

Maior rigor

• A Meta atualizou as configurações de publicação para torná-las mais restritivas, prometendo remoção acelerada dos mais nocivos, como de automutilação e distúrbios alimentares.

• O maior rival da empresa, o chinês TikTok, adotou mudanças em agosto passado para se adequar à política mais rígida de redes na União Européia.

• Já a OpenAI, que se tornou ferramenta útil para criações mal-intencionadas de fake news, fake nudes e disseminação de desinformação, calculou um ano arriscado, com eleições presidenciais nos EUA, e anunciou plano para impedir o uso de suas propriedades para fins políticos nas redes.

• O Google, proprietário do YouTube, igualmente decidiu que restringiria as respostas que suas ferramentas de IA dariam a questões relacionadas a eleições. Nenhuma, entretanto, descreve como irá garantir o cumprimento das novas regras anunciadas.

“Sempre vi a Internet como a última chance de o ser humano dar certo neste planeta. Infelizmente, os algoritmos tendenciosos, a ganância das Big Techs e a falta de civilidade das pessoas nos trouxeram a esse abismo, que ameaça nossa saúde física, mental e a democracia no mundo. Ou realinhamos a rede aos interesses humanos, ou vamos produzir nossa própria destruição”, diz Rosana Hermann, autora de Celular, Doce Lar, sobre o vício em redes sociais.

• O X, que, enquanto Twitter, foi a rede preferida do universo político pelo DNA mais noticioso e menos imagético, capota em credibilidade desde a aquisição do controle por Elon Musk. Uma de suas primeiras atitudes foi restituir a conta do ex-presidente e atual candidato Donald Trump.

Ele havia sido removido da plataforma desde a invasão do Capitólio norte-americano, em 6 de janeiro de 2021.

Musk fez uma enquete no então Twitter e baseado em 51% de favoráveis colocou Trump de volta no jogo.

A atitude é seguida por inúmeras alegações de promoção de desinformação e racismo. Sem alarde, removeu política contra o “erro de gênero ou o apelido de indivíduos transgêneros”, ao que o grupo de defesa GLAAD a apontou como “a plataforma mais perigosa para pessoas LGBTQ”.

“Desde 2006, o Twitter sempre foi a rede mais interessante, divertida, rápida, aberta, fonte de informação, humor, linguagem, onde a vida acontecia em tempo real. Aí veio o menino rico, comprou para ser seu brinquedo pessoal e destruiu esse espírito. Com seu estilingue capitalista ainda matou o passarinho azul. Lamentável”, diz Hermann, também autora de Um Passarinho me Contou (Relatos de uma viciada em Twitter).

Nem plataformas de vídeo ficam de fora de acusações de lucro baseado em conteúdos mentirosos. O CCDH (Centro de Combate ao Ódio Digital) divulgou relatório em que aponta que o YouTube ganha milhões de dólares por ano com publicidade em canais que fazem afirmações falsas sobre mudança climática, o tema de principal interesse global no momento.

Caso recorrente

Acusações do tipo e de interferência em assuntos tão importantes quanto descabidos aos propósitos das redes não são novidade na trajetória das mesmas.

Em 2018, o líder da Meta, Mark Zuckerberg, depôs no Congresso dos EUA e perante o Parlamento Europeu para explicar o envolvimento da empresa nos escândalos políticos da época.

Desde 2014, a empresa de análise de dados Cambridge Analytica havia recolhido informações pessoais de 87 milhões de usuários do Facebook e negociado com as campanhas que promoviam Donald Trump para presidente dos EUA, em 2016, e pela saída do Reino Unido da União Européia (Brexit), desde 2017. As duas foram bem-sucedidas.

“Quando a Cambridge Analytica nos disse que não estava usando os dados e que os havia excluído, consideramos o caso encerrado. Isso foi claramente um erro. Não deveríamos ter acreditado na palavra deles”, tentou se justificar Zuckerberg.

De lá para cá, as mídias sociais dobraram de tamanho.

• Hoje, 61,4% da população global as utiliza; acima de 18 anos o percentual chega a 80,8%.
• São 5 bilhões de pessoas se relacionando digitalmente, tendo o Facebook de Zuckerberg na liderança, com 3,03 bilhões de usuários.
• Suas duas outras propriedades dividindo o terceiro lugar, com Instagram e Whatsapp com 2 bilhões cada.
• Segundo lugar é do Google, com os 2,5 bilhões no YouTube.

Enquanto a polêmica corre barulhenta, Zuckerberg anunciou, como dono da Meta, que está “focado em construir o futuro da conexão humana”, e que esse vai além das plataformas atuais, com “interações entre as pessoas com suas versões em hologramas e robôs de IA criados para ajudá-los”.

Tanto às empresas quanto ao público, que o futuro traga o alerta em letras garrafais: “Use a tecnologia disponível com responsabilidade”.