Cultura

O liberto que ficou rico com o tráfico de africanos

Biografia de Joaquim de Almeida, de Luis Nicolau Parés, lança nova luz sobre a trajetória do escravizado que, após a alforria, acumulou fortuna com o comércio negreiro transatlântico. Seus descendentes, na África Ocidental, fazem hoje parte de uma elite local

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Joaquim de Almeida (Crédito: Divulgação)

Por Felipe Machado

Em 2010, o escritor Luis Nicolau Parés, professor do departamento de antropologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), foi convidado a fazer uma palestra em Agoué, pequena vila no litoral da República do Benim, na África Ocidental. Em princípio, Parés deveria falar sobre “os processos de identidade coletiva dos africanos no Brasil durante o período da escravidão”. Sua participação tomou outro rumo, no entanto.

A convite da cardiologista Marina de Almeida Massougbodjiç, ex-ministra da Saúde do Benim, Parés fez uma apresentação de documentos, achados nos arquivos da Bahia, sobre um notório ancestral da médica, Joaquim de Almeida. Africano escravizado no Brasil, Almeida se tornara, após liberto em 1830, um abastado empresário do tráfico negreiro transatlântico.

O ex-escravizado, ressalta-se, era parte de “uma minoria cosmopolita que incluía, amiúde, os mais abastados e poderosos” entre os emancipados, como descreve Parés no recém-lançado livro Joaquim de Almeida – A história do africano traficado que se tornou traficante de africanos, um desdobramento daquela sua palestra.

Na foto de 2014, o mausoléu que homenageia o fundador da família Almeida no Benim, na entrada da residência de Joaquim de Almeida, em Agoué (Crédito:Luis Nicolau Parés)

Em seu prefácio, o autor mais de uma vez faz a ressalva de que outros pesquisadores já se debruçaram sobre a trajetória de seu biografado, a exemplo do fotógrafo e antropólogo franco-brasileiro Pierre Verger (1902-1996). No entanto, Parés enriquece as narrativas já conhecidas acerca de Almeida a partir de descobertas de fontes do Arquivo Público da Bahia.

O escritor também se lança a um interessante desafio historiográfico: estabelecer, por meio da biografia de Almeida, uma “interrelação entre a escala macro do Atlântico e a escala micro da trajetória individual, entre a história atlântica e a micro-história”. Nesse contexto, um dos exemplos mais interessantes é o “pioneirismo” de Almeida na difusão do catolicismo na África, quase duas décadas antes da chegada das primeiras missões europeias ao continente.

A palestra de Parés no Benim, vale notar, ocorrera sob uma grande lona, instalada num terreno onde, nos anos 1840, Almeida teria erguido uma capela “em memória de uma irmandade católica de homens pretos […] que existia em Salvador, na Bahia”.

Segundo o escritor, a prática religiosa, como os rituais de batismo, acabou possibilitando “alianças e redes de confiança propícias ao sucesso de empresas mercantis atlânticas bastante arriscadas”, a saber, o tráfico de africanos, inclusive já clandestino no Brasil a partir de 1850, com a aprovação da Lei Eusébio de Queirós.

Uma economia que permitira, até meados do século 19, que mercantes portugueses e brasileiros, e libertos, como Almeida, acumulassem grandes fortunas.

Representação da Revolta dos Malês, que em 1835 provocou o autoexílio de Almeida no Benim (Crédito:Divulgação)

Em seu testamento, escrito em 1844, Almeida declarou ter entre seus bens 36 escravos em Havana, 20 em Pernambuco e nove na Bahia. Parés considera que a distribuição geográfica das posses elencadas indicava “a conectividade hemisférica do tráfico no chamado período da ‘segunda escravidão’”, o que faria de Almeida “um verdadeiro empreendedor atlântico”.

Almeida se autoexilara no Benim após a Revolta dos Malês, que aconteceu em Salvador em 1835. Maior insurreição de escravizados ocorrida no Brasil, a rebelião fora protagonizada, em sua maioria, por africanos muçulmanos, contrariados com a imposição do catolicismo. Sufocada, teve como uma de suas consequências “uma feroz e indiscriminada campanha de deportação” de africanos libertos, como Almeida.

No Benim, Almeida deixou vasta descendência que, ao longo dos anos, tornou-se uma elite local, segundo Parés, desde cedo diferenciados dos povos autóctones em parte “por seu contato com os modos ‘civilizados’ dos ‘brancos’”, e hoje formada por empresários, médicos, advogados, líderes políticos e religiosos. A cardiologista Marina de Almeida Massougbodjiç faz parte desse grupo social, e a palestra de Parés, em 2010, fora um “evento midiático”, com direito a “câmeras da televisão estatal”.