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Equador: violência das gangues explode e governo autoriza matar; entenda

Presidente Daniel Noboa decreta estado de exceção pressionado pelo terror importado de grupos do narcotráfico do México, Colômbia e Peru

Crédito: Jose Orlando Sanchez Lindao

Ruas de Guayaquil foram tomadas pelas Forças Armadas à caça de narcotraficantes, medida que não funcionou efetivamente nem na Colômbia nem no Rio de Janeiro (Crédito: Jose Orlando Sanchez Lindao)

Por Denise Mirás

RESUMO

País, tomado por gangues do narcotráfico, vive caos que obrigou o presidente Daniel Noboa a decretar estado de exceção
• Militares foram autorizados a caçar e matar membros de 22 facções criminosas
• Brasil e demais países sul-americanos assinaram documento em apoio
• A dimensão da crise mostra que o crime atua com mais ousadia, atravessa fronteiras e supera o controle do Estado 

Com ruas tomadas por tanques e tropas das Forças Armadas, mais população apavorada sob toque de recolher por 60 dias, o Equador se tornou o terceiro grande polo de tensão na América do Sul depois de Venezuela e Argentina. Foi no domingo, 7, que o terror importado de violentos grupos de narcotráfico de México, Colômbia e Peru explodiu, levando o presidente Daniel Noboa a decretar estado de exceção no dia seguinte, complementado na terça-feira, 9, por artigos que reconhecem “conflito armado interno” — ou guerra civil, em linguagem direta.

As medidas foram tomadas depois de encapuzados armados invadirem — com transmissão ao vivo — o estúdio em Guayaquil (maior cidade do país) da tevê estatal TC Televisión. Noboa acabou reconhecendo o “estado de guerra” e destacou que as gangues serão enquadradas como grupos terroristas para o Exército “poder agir”.

Na prática, policiais e soldados estão liberados para “ações militares” e poderão atirar para matar membros de 22 facções criminosas, que chegam a 20 mil, ainda segundo o presidente.

O episódio alarmou as nações vizinhas e provocou a reação de vários países, inclusive do Brasil, diante da gravidade dos fatos e de ameaças que vão além das fronteiras locais.

O Equador é a mais recente vítima da expansão do narcotráfico na América Latina e de quadrilhas internacionais que desafiam o poder do Estado.

• Colômbia e Peru, os dois maiores produtores de cocaína do mundo, reagiram prontamente enviando tropas a suas fronteiras com o Equador — no caso colombiano, foram fechadas pelo governo — enquanto EUA, China, França e Argentina ofereciam ajuda imediata.

• António Guterres, secretário-geral da ONU, manifestou “grande preocupação” com a situação no país e em comunicado condenou “veementemente esses atos criminosos de violência”, enviando mensagem de “solidariedade” ao povo equatoriano.

• No Brasil, o presidente Lula passou a Ricardo Lewandowski, o novo ministro da Justiça, a missão de elaborar com os colegas sul-americanos um plano transfronteira de combate ao narcotráfico.

Na mesma quarta-feira, 10, o Consenso de Brasília (grupo formado por Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Guiana, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela, além do Equador) divulgou documento “pelo pronto restabelecimento da segurança e da ordem pública” em defesa do Estado de Direito e da institucionalidade no Equador, com respeito à democracia e aos direitos humanos”.

O presidente Daniel Noboa anuncia o decreto de urgência, que inclui toque de recolher das 23h às 5h (Crédito:Handout / Presidencia Ecuador / AFP)

Cidades desertas

Durante a semana, as cidades equatorianas permaneciam desertas. Na capital, Quito, centenas de soldados patrulhavam metrôs e guardavam as ruas em torno do Palácio Carondelet. O governo lutava para retomar o controle sobre os presídios, em grande parte dominados por mais de 20 facções criminosas.

No início da semana, ainda havia mais de 130 agentes penitenciários e policiais tomados como reféns nos complexos presidiários superlotados, depois de 13 mortes confirmadas em meio à onda de violência que tomou Guayaquil.

A cidade com 2,7 milhões de habitantes, a maior do país, tornou-se o epicentro do tráfico para EUA e Europa por sua localização estratégica e também por abrigar três portos de águas profundas, que favorecem a logística de envio de drogas (mas também armas e mesmo pessoas) por mar, avaliadas em centenas de milhões de dólares.

Não à toa, os governos colombiano e equatoriano vêm apreendendo “narcosubmarinos”, que transportam toneladas de cocaína, principalmente.

Militares vasculham espaços em busca de Adolfo “Fito” Macías, líder dos Choneros que está desaparecido (Crédito: Franklin Jacome/Agencia Press South/Getty Images)

É nessa zona costeira que fica um complexo com 10 mil prisioneiros: na chamada Penitenciária Regional, os três pavilhões estão nas mãos dos Choneros (que dominam boa parte do litoral equatoriano, funcionando também como braço armado do antigo cartel colombiano fundado por Joaquín “El Chapo” Guamán, hoje preso nos EUA).

Na Litoral, onde 79 presos foram decapitados em 2021, cada pavilhão está dominado por uma gangue: Chone Killers, Águilas, Fatales, Latin Kings, Lobos, Tiguerones e Máfia. No complexo superlotado e caótico, os presidiários têm chaves das celas e comercializam de geladeiras a drogas.

Giram ordens internas e externas sobre quantias bilionárias acumuladas do tráfico de drogas e armamentos, mas também de assassinatos encomendados.

A corrupção começa pelos agentes presidiários, que facilitam fugas, e abarca autoridades, militares e figuras do Judiciário.

A violência política marcou o país nas últimas eleições.
O candidato à presidência Fernando Villavicencio teria sido assassinado em agosto passado por traficantes dos Lobos.
O presidente Daniel Noboa, que venceu a disputa e exerce um mandato-tampão de 18 meses desde novembro passado, após a renúncia do antecessor, elegeu-se prometendo manter linha dura contra as quadrilhas e limpar o Estado dos seus agentes. Determinou que todos os servidores públicos que protegerem traficantes serão tratados como criminosos.

Ministro das Relações Exteriores, Marcio Vieira foi convocado por Lula para tratar da crise no Equador com vizinhos sul-americanos (Crédito:Gabriela Biló)

O barril de pólvora explodiu no domingo, com o desaparecimento de José Adolfo Macías Villamar, o “Fito”, líder dos violentíssimos Los Choneros, que cumpria pena de 34 anos desde 2011 (ele teria fugido antes de uma de revista ou estaria escondido no presídio).

Na terça-feira, 9, mesmo dia da invasão ao estúdio de tevê, foi a vez de Fabrício Colón Pico, líder dos Lobos, fugir com mais 38 detentos, usando armas, dinamite e pedras, antes de uma transferência para presídio de segurança máxima. O rastilho se espalhou pelas ruas de Guayaquil, principalmente, com vandalismos contra edifícios, queima de carros e ônibus, sequestro de policiais e mesmo “de oportunidade”, como no caso do brasileiro Thiago Allan Freitas, dono de uma churrascaria.

Ele foi libertado na quarta-feira pela polícia. Todos os países vizinhos se preocuparam com a situação de seus cidadãos.

Da parte do Brasil, o senador Renan Calheiros, presidente da Comissão de Relações Exteriores do Congresso, pediu ao governo Lula uma operação de repatriação de brasileiros.

O brasileiro Thiago Allan Feitas, feito refém em Guayaquil, foi libertado pela polícia equatoriana um dia depois (Crédito:Divulgação)
Depois de duas horas, criminosos que invadiram estúdio da TV estatal em Guayaquil foram rendidos (Crédito:Vicente Gaibor )

Navios-prisões

O presidente Daniel Noboa, 36 anos e filho do empresário mais rico do país, vai completar o mandato de Guillermo Lasso, que dissolveu o Congresso em maio passado para escapar de impeachment após denúncias de corrupção. Vai ocupar a Presidência até maio de 2025.

Ele apresentou o plano Fênix, com base em “vigilância cidadã” do governo de Israel, propondo a criação de prisões em navios em alto mar a 100 km da costa — até a construção de ao menos duas penitenciárias de segurança máxima nos moldes da proposta do colega Nayib Bukele, presidente de El Salvador e também empresário, com 42 anos.

Naquele país centro-americano, a “mano dura” impera, atropelando direitos civis, depois de gangues dividirem toda a capital San Salvador em bairros próprios. Hoje são 60 mil presos e isso rendeu a Bukele mais de 90% de aprovação por parte dos salvadorenhos.

Seguindo o exemplo de países como as Filipinas, Bukele lotou as penitenciárias e expõe fotos de prisioneiros enfileirados como propaganda do sucesso da sua política. Nesta semana, Noboa acrescentou que pretende deportar prisioneiros colombianos (que seriam 1.500), o que já foi rechaçado pelo governo vizinho, que quer estudos “caso a caso”.

Vladimir Feijó, especialista em Relações Internacionais, lembra que em 2017 o governo do presidente Lenín Moreno no Equador extinguiu importantes ministérios que combatiam o tráfico, em favor de uma superpasta, para cortar gastos e efetivos (o que também ocorreria no Brasil em 2019, como lembra o professor, “sem preocupação com consequências a médio e longo prazos”).

A medida, acompanhada da cultura da globalização e do livre comércio, contribuiu com o crime, pela baixa na fiscalização de aduanas e responsabilidades delegadas a empresas de importação e exportação e também pelo combate à lavagem de dinheiro, “que o Equador abandonou de vez e o Brasil segue remediando”.

Ficou uma lacuna, diz Feijó, com situação agravada no ano seguinte, quando a Colômbia acirrou o combate às drogas e narcotraficantes seguiram para o Equador, já com criminosos vindos do México.

A criminalidade piorou com a luta pelo domínio de territórios e o número de homicídios explodiu, pelo “tráfico combinado com morticínio”.

Há um grande número de detentos nas penitenciárias, depois de o presidente Moreno mudar a legislação e o país passar a focar na prisão dos “aviõezinhos”. Com famílias tentando minorar a situação de caos nos presídios, a troca de favores é cobrada dos parentes e os crimes nas cidades aumentaram.

O discurso de linha-dura também foi empregado pelos últimos presidentes, com pouco sucesso.

Mas o populismo de esquerda também é criticado por especialistas. O ex-presidente Rafael Correa desmontou uma unidade de combate ao narcotráfico que tinha cooperação com os EUA por razões ideológicas, o que favoreceu a expansão de facções.

A pandemia agravou o problema econômico do país, com Guayaquil refletindo o terror desse cenário com cadáveres amontoados nas ruas.

Flavia Loss, professora de Ciência Política da FESPSP (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo), argumenta que à época o país já estava em déficit fiscal, com situação econômica em colapso que ainda não se reverteu.

Com tudo isso, o Observatório Equatoriano do Crime Organizado (OECO) estima que o país de 17 milhões de habitantes tenha fechado 2023 com mais de 7 mil homicídios (número oito vezes maior que o de 2018) e 220 toneladas de droga apreendidas de gangues que já são pelo menos 22, somando 30 mil homens. O resultado se viu nas cenas de terror vividas pelo Equador nos últimos dias.

Perigo regional

• Para os especialistas, não se trata mais de um drama local, mas de um fenômeno internacional que precisa ser combatido por políticas transnacionais. Não é mais possível cada país tratar apenas internamente do narcotráfico, problema gravíssimo que se espraia pela região com efeitos explosivos.

• É preciso um trabalho conjunto regional. Mas o antigo Conselho de Defesa Sul-Americana desapareceu com a Unasul, um organismo criado no segundo governo Lula, mas derivado da chamada Comunidade de Nações, elaborada ainda na época do presidente Fernando Henrique.

• Para Flavia Loss, as Forças Armadas nas ruas não resolveram o problema do narcotráfico, “nem na Colômbia nem no Rio de Janeiro” – só aumentaram violações de direitos humanos.

António Guterres, presidente da ONU (Crédito:Yuki Iwamura)

“A ONU condena veementemente esses atos criminosos de violência e envia uma mensagem de solidariedade ao povo equatoriano.”
António Guterres, presidente da ONU

• Como a falta de segurança com a desestabilização de governos sempre interessa àqueles que querem justificar medidas extremistas, o presidente argentino Javier Milei aproveitou a crise equatoriana para afirmar que também quer as Forças Armadas nas ruas.

• A ministra da Segurança argentina, Patricia Bullrich, declarou que seu país está disposto a enviar forças de segurança, se necessário. “É uma questão continental. O que acontece no Equador, na Colômbia, no Peru, na Bolívia, influencia a Argentina.”

• O presidente boliviano, Luis Arce, divulgou que seu país manifesta “predisposição de apoio” para que o Equador volte à normalidade. “É urgente trabalhar na regionalização do combate ao tráfico de drogas e outras atividades ilícitas”, afirmou.

• O conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Jake Sullivan, disse que seu país “condena fortemente” os ataques de grupos armados no Equador e que está empenhado em cooperar para que os criminosos sejam levados perante a Justiça.

Presídio de El Salvador, que Daniel Noboa quer replicar no Equador (Crédito:Press Secretary Of The Presidenc )

Repercussão no Brasil

• O diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, disse que se comunicou com o diretor da polícia do Equador, Cesar Zapata, colocando a instituição à disposição do país vizinho.

• Para os especialistas, um ponto de atenção ao Brasil que deve ser redobrado são as chamadas “cidades gêmeas”, basicamente na Amazônia e que fazem fronteira com Peru, Bolívia, Colômbia, aí sim com a participação das Forças Armadas, em vigilância de florestas, rios e ar, como a Operação Ágata, ficando a Polícia Federal com as fronteiras secas.

“A questão é a locação de tropas, concentradas no Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro, quando o problema maior está no Centro-Oeste e Norte”, diz Feijó.

A dimensão da crise no Equador mostra que o narcotráfico e as facções criminosas estão aumentando sua ousadia, atravessando fronteiras e superando o controle do Estado. É um alerta para o Brasil, que tem vastas regiões urbanas — e diversas penitenciárias — controladas pela criminalidade.

Patrulhas colombianas e equatorianas vêm apreendendo vários desses ‘veículos’ improvisados e carregados com toneladas de drogas (Crédito:Divulgação)

LOS CHONEROS: A GANGUE QUE MAIS CRESCE NO EQUADOR

Com raiz nos cartéis mexicanos, os criminosos mais violentos do país são especializados em tráfico, extorsão e assassinatos por encomenda

Choneros presos em operação contra o narcotráfico, uma das promessas de campanha de Daniel Noboa (Crédito:Divulgação)

• Foi a partir da repressão dos EUA a grupos mexicanos como o Jalisco e o Sinaloa, que o narcotráfico começou a se expandir para o sul do continente americano, agravando a violência já instalada em países andinos, atolados em crises econômicas, criminalidade e corrupção. Colômbia e Peru tornaram-se os maiores produtores de cocaína do mundo e facções estenderam braços para o Equador (e, ultimamente, para Jujuy, província ao norte da Argentina).

• É em meio a esse caos social que Los Choneros crescem cada vez mais, sob o signo do terror. É comandado por Adolfo “Fito” Macías, líder desaparecido que se tornou midiático por participar de coletivas na prisão e lançar músicas de “narcorrecorrido”, variante do gênero mexicano.

A quadrilha vem da região de Chone, zona interiorana ao norte do país. O grupo foi formado pelas gangues Fatales (de onde saiu Fito) e Águilas (do líder Junior Roldan, o JR).

• “Descendentes” do Cartel de Sinaloa, são especializados em extorsão e assassinatos encomendados, além do tráfico.

Também funcionam como braço armado e operacional do Cartel de Sinaloa, com interesse no Equador, que praticamente se tornou um hub do narcotráfico, a partir da localização estratégica de Guayaquil.

• Seus maiores adversários estão na quadrilha Nueva Generación (formada com Los Lobos, Tiguerones e Chone Killers) e também com antigas raízes mexicanas – é oriunda do Cartel de Jalisco Nueva Generación (CJNG).

Adolfo “Fito” Macías, que comanda a violenta gangue Los Choneros e poderia ter fugido com auxílio de agentes penitenciários (Crédito:Ecuadorean Armed Forces / AFP)