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Entenda o ataque dos extremistas ao padre Júlio Lancellotti

Para recuperar espaço político, extremistas de direita voltam a usar táticas de cancelamento e fake news, desta vez contra um religioso. A propósito de investigar ONGs, um vereador paulistano mira o padre Júlio Lancellotti por sua militância pelos direitos humanos

Crédito: Marco Ankosqui

Padre Júlio Lancellotti: “A presença da população de rua, que cresceu e cresce muito na cidade, passa a ser ameaçadora e incômoda” (Crédito: Marco Ankosqui)

Por Marcelo Moreira e Ana Mosquera

A campanha eleitoral de 2024 em São Paulo começou de forma inusitada e alçando um personagem improvável: um religioso. O padre Júlio Lancellotti, elogiado por setores ligados aos direitos humanos, tornou-se alvo de ataques orquestrados por movimentos de extrema-direita em busca de recuperar espaço político após a derrota de Jair Bolsonaro em 2022, sem contar os vários processos que o ex-presidente enfrenta. Lancellotti é padre católico responsável pela paróquia de São Miguel Arcanjo, que fica em uma importante via do bairro paulistano da Mooca. Seu trabalho mais notório, e que lhe rendeu fama nacional e internacional — e o ódio de extremistas de direita e de muitas pessoas que se dizem conservadoras — é a Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo, que assumiu em 2004 e se tornou a razão de sua vida.

É uma continuação do trabalho que desenvolveu a partir de 1980 na Pastoral do Menor. Seu trabalho de assistência aos sem-teto e de combate à fome é elogiado até mesmo por figuras de pensamento conservador.

Milton Leite (União), presidente da Câmara de São Paulo, disse que enviaria ao Vaticano “graves denúncias” contra o padre, mas não revelou quais eram (Crédito:Zanone Fraissat)

Aos 75 anos, o paulistano acostumado a receber ameaças de morte e agressão decidiu acolher milhares de sem-teto oferecendo comida a quem não a tem.

Por conta de seu ativismo, a acanhada sede da paróquia de Padre Júlio, como é conhecida, nos arredores de uma importante universidade particular, tornou-se um porto seguro para sem-teto famintos.

O religioso virou referência no trabalho social da cidade e um ativista ferrenho dos direitos humanos. E também alvo dos que se incomodam com o “desfile” de miseráveis pelo bairro, como bradou certa vez um motorista de utilitário esportivo ao berrar pela janela xingamentos contra o padre em frente à igreja após uma missa em domingo de manhã.

Diante dos reveses políticos e ideológicos do bolsonarismo, os aliados do ex-presidente buscam recuperar espaço sem que tenham de amenizar o discurso ou rever posicionamentos.

Partir para o ataque parece ser a opção, ainda que sem muita convicção ou coordenação. Lideranças políticas ouvidas pela ISTOÉ acreditam que o apelo extremista é uma forma de tentar recuperar espaço e, na Câmara Municipal, uma maneira de reverter uma tendência de perda de cadeiras no pleito de outubro.

Tudo isso seria um movimento natural se não fosse o padre Júlio virar o alvo político. Ao final de 2023, ninguém prestou atenção ao pedido de CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) feito pelo vereador Rubinho Nunes (União Brasil), ex-militante do MBL (Movimento Brasil Livre, de direita), para investigar as ONGs (organizações não governamentais) e organizações sociais que recebem dinheiro da Prefeitura para “trabalhar com dependentes químicos da Cracolândia e sem-teto em geral”.

Conseguiu 24 assinaturas em duas semanas (eram necessárias 19) e o pedido foi protocolado. A abertura da CPI será votada em fevereiro, com a necessidade de 28 votos. No texto do pedido não há qualquer menção ao padre Júlio Lancellotti ou seu trabalho com sem-teto.

A questão ganhou relevância quando Nunes foi às redes sociais e desancou o padre, que é odiado pela extrema-direita por sua militância pelos direitos humanos e considerado muito próximo ao PT.

Ao chamá-lo de “cafetão da miséria” e de dizer que ele se beneficia com isso, o vereador afirmou que o religioso será um dos principais investigados pela CPI, atraindo a ira da esquerda e da Arquidiocese de São Paulo. O deputado estadual Eduardo Suplicy (PT) reagiu: “O debate sobre melhores soluções para a população em situação de rua é positivo, mas considero uma verdadeira inversão de valores a tentativa de condenar um trabalho tão exemplar como o do Padre Júlio”.

Rubinho Nunes, vereador de São Paulo (União Brasil) (Crédito:Divulgação)

“Você anda no centro e é roubado. O Júlio Lancellotti atua como um cafetão, explorando miseráveis. Distribui marmitas, mas não faz nada para ajudar ninguém.”
Rubinho Nunes, vereador de São Paulo (União Brasil), em vídeo na internet

Reversão na CPI

Com a repercussão negativa, Rubinho Nunes enfrentou revezes. Foi rechaçado por alguns vereadores que assinaram o pedido de CPI, que se sentiram enganados por não saberem que o padre Júlio seria o alvo. Retiraram suas assinaturas, embora isso não tenha efeito prático – o pedido vai ser votado por já estar protocolado.

Mas as chances de rejeição cresceram muito. Rubinho conta com o apoio de uma liderança importante, Milton Leite, seu companheiro de União Brasil e atual presidente da Câmara. Político veterano de sete mandatos, Leite apressou-se em defender o colega afirmando que recebeu “denúncias gravíssimas contra o padre e que vai encaminhá-las ao Vaticano” — não detalhou quais são.

Os dois só esqueceram de combinar com Ricardo Nunes (MDB), o prefeito paulistano que concorrerá à reeleição. Os dois são da base do governo. Nunes, o prefeito, não ficou satisfeito com a polêmica porque mantém relações amistosas com padre Júlio e a Arquidiocese.

• Quando a questão eclodiu, apressou-se a telefonar para o arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Scherer, e informar que a Prefeitura não encampa as intenções da CPI e que manterá os trabalhos em conjunto com Lancellotti.

• O prefeito, inclusive, teria tomado a decisão de pedir aos vereadores da base que não apoiassem a abertura da CPI, mas a Prefeitura não confirmou a informação.

• Um vereador, pedindo anonimato, disse ter recebido essa orientação. No dia 8 de janeiro, o padre e o prefeito se encontraram na sede do Executivo municipal. Pessoas próximas ao prefeito disseram que Ricardo Nunes teria se comprometido a isentar publicamente o padre de qualquer irregularidade, já que não existe convênio formal entre a Prefeitura e a Arquidiocese.

• A Prefeitura confirmou o encontro, mas não o que foi discutido. À ISTOÉ, o padre afirmou na última quinta-feira, 11, apenas que fez um pedido ao prefeito: a extensão do horário da Operação Altas Temperaturas (medidas para amenizar a consequências do calor) para além das 16h.

• Surpreendido pela polêmica, Lancellotti tem evitado falar sobre a questão. Após uma missa, ironizou a celeuma. “Se eu sou a causa da ‘Cracolândia’, então é fácil: quando eu morrer, no dia seguinte ela não existe mais.”

Para a ISTOÉ, ponderou: “Foram vários programas de governo: do [Fernando] Haddad, do [José] Serra, do [Gilberto] Kassab, da Marta [Suplicy]. Não eram programas municipais para a Cracolândia. Não resolve, porque os governos duram quatro anos”.

Reação conservadora

A Mooca, na zona leste, é um bairro próximo da região central de São Paulo e compõe o chamado “centro expandido”.

Uma das primeiras regiões industrializadas da capital paulista, prosperou rápido e se tornou uma região valorizada a partir dos anos 60 como alternativa de habitação mais barata do que bairros como os Jardins (zona sul) ou Higienópolis (zona oeste).

Mesmo com a chegada de moradores de outras regiões, manteve as características do começo do século anterior – forte presença de famílias italianas, que prosperaram rapidamente, catolicismo fervoroso e certo conservadorismo em quase todos os sentidos, destoando dos conterrâneos que se estabeleceram na Bela Vista (Bexiga, zona central) e na Barra Funda (zona oeste).

O ex-presidente Jair Bolsonaro conseguiu 48,84% dos votos no bairro da Mooca e percentual parecido no vizinho, também de classe média, Tatuapé.

A prosperidade trouxe a valorização imobiliária, atraindo uma classe média mais endinheirada, a mesma que, em certa medida, rechaça o “desfile de miseráveis” supostamente “patrocinado” pelo padre.

O pensamento foi assumido pelos comerciantes da região, que apoiam a CPI e alegam anos de prejuízo e vendas menores.

“A presença da população de rua, que cresceu e cresce muito na cidade, passa a ser ameaçadora e incômoda. Quem critica diz que eu os alimentando, em vez de irem embora, eles voltam. Então o raciocínio seria: vamos matá-los de fome, porque assim eles desaparecem? É o argumento da lógica neoliberal”, diz o padre Júlio.

Arquidiocese de São Paulo, comandada pelo Arcebispo Dom Odilo Sherer, saiu em defesa do padre Júlio, com críticas à intenção de abrir a CPI (Crédito: Igor Do Vale/NurPhoto via Getty Images)

Lancellotti não é o primeiro religioso brasileiro dedicado a amenizar a pobreza a virar alvo de grupos políticos e sociais.

Irmã Dulce (1914-1992), religiosa com forte atuação social em Salvador (BA), foi alvo de acusação em 1984 de se apropriar de recursos públicos destinados ao hospital que ela construíra na capital baiana. Quem a denunciou foi um vereador. Mesmo com a fragilidade da denúncia, Irmã Dulce abriu a contabilidade da instituição que comandava e derrubou as acusações.

Agora, os críticos do padre Júlio passaram a usar as armas amplamente disseminadas pelos extremistas nas últimas eleições: movimentos coordenados nas redes sociais, com:
discurso de ódio,
táticas de cancelamento
fake news.

Ressuscitaram algumas denúncias que recaíram sobre Lancellotti no começo dos anos 2000, quando o padre foi acusado de pedofilia por um egresso da Fundação Casa. As investigações não comprovaram nada, e o homem e a companheira foram condenados em 2011 por extorsão.

Os acontecimentos de 8 de janeiro mostraram até que ponto a polarização política pode levar a atos criminosos que ameaçam a democracia, e há poucos dias o País parecia ter celebrado em Brasília o fim da fase mais aguda de ataques.

Que essa conduta irresponsável tenha voltado na pré-campanha paulistana não é surpreendente, mas o alvo escolhido é: um religioso defensor dos direitos humanos.

Partilha de alimentos: o padre Júlio (esq.) e voluntários servem café para pessoas em situação de rua, na última quinta (Crédito:Caio Guatelli)

O PÃO DIÁRIO DO MISSIONÁRIO

“O convívio faz você saber o que a pessoa sente”, diz o padre Júlio Lancelotti, que distribui alimentos diariamente para moradores de rua

Nascido na Zona Leste paulistana, o padre Júlio Renato Lancellotti atua nas ruas há cerca de 40 anos. Sua militância em prol dos direitos humanos já virou tema de livros e aulas, mas é melhor explicada em ações.

É no dia a dia, no café da manhã servido de segunda a sexta no Centro Comunitário Irmã Dulce, que a atuação do religioso se concretiza.

“O convívio faz você saber o nome da pessoa, o que ela sente. É ele que nos faz querer bem e entender cada um”, disse o padre à ISTOÉ na última quinta-feira, 11.

Nesse dia, no desjejum, logo após a missa das 7h na Paróquia São Miguel Arcanjo, na Mooca, cerca de 400 pessoas, sobretudo homens, passaram para receber das mãos do pároco bolachas e pães feitos na padaria social Pão do Povo da Rua.

O projeto vive de doações e, ainda que a disponibilidade mude a cada manhã, o padre e voluntários estão sempre dispostos a conseguir um copo d’água, um alimento ou até mesmo batalhar por uma vaga em casa de acolhimento. As necessidades vão além das fisiológicas.

“O que é negado a eles é a subjetividade, o afeto. Eles têm que agir sempre como quem manda na sociedade deseja.” O padre dá voz aos invisíveis. “Ele promove o protagonismo dos que estão anulados por um sistema que se mantém pelas desigualdades. Em uma sociedade meritocrática, promover a humanização da vida esbarra em diversos interesses”, analisa Guilherme Moura Brito, autor do livro Ele Está No Meio de Nós, que conta a trajetória do religioso durante a pandemia.