Brasil

Guerra de vetos deixa governo, Congresso e STF em fogo cruzado

Medida Provisória do governo que reonera folha de pagamento de 17 setores é vista como afronta ao Legislativo e provoca rebelião no Congresso. Esse caso, assim como a aprovação do marco temporal, testa de forma inédita o limite entre os Poderes

Crédito: Pedro Ladeira

O líder do governo no Senado, Jaques Wagner, tentou remediar a rebelião de parlamentares com Rodrigo Pacheco (Crédito: Pedro Ladeira)

Por Vasconcelo Quadros

Por inconstitucionalidade ou contrário ao interesse público, o veto presidencial sempre foi procedimento normal na relação entre Executivo e Legislativo, e resolvido sem conflitos que pudessem afetar o equilíbrio entre os Poderes. Essa lógica foi invertida no último trimestre do ano passado, abrindo novos tempos de vaivém: Congresso aprova, governo veta, Congresso derruba, governo recorre ao Judiciário ou tenta driblar a decisão lançando mão de manobra jurídica para contornar a decisão legislativa.

Foi o caso da medida provisória que reonera a folha de pagamento de 17 setores da economia. A polêmica está instalada também na norma do marco temporal de terras indígenas e no veto ao calendário de pagamento de emendas parlamentares.

Em sessão conjunta de deputados e senadores, o Congresso havia liquidado o assunto, prorrogando a desoneração até 2027, mas no apagar das luzes de 2023, como se trata de matéria econômica, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, achou por bem reagir, mandando para o Congresso uma medida provisória que torna letra morta a decisão amplamente apoiada pelos parlamentares com a derrubada do veto.

O que se viu logo em seguida às cerimônias do evento para lembrar um ano da tentativa de golpe, na última segunda-feira, 8, foi uma verdadeira rebelião no Congresso.

• Pelo menos nove frentes parlamentares e líderes da oposição e de partidos que ajudaram o governo a aprovar pautas econômicas, como a histórica Reforma Tributária, passaram a pressionar o presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco (PSD), a devolver ao governo a MP, o que anularia a pretensão de Haddad de encerrar a desoneração da folha de pagamento das empresas iniciada em 2011, o equivalente hoje a R$ 8 bilhões por ano em tributos (e a garantia de 9,2 milhões de empregos, segundo seus defensores).

Como aprovou uma lei prorrogando e, depois, ainda teve de derrubar o veto do presidente Lula por esmagadora maioria, o Congresso entendeu que o governo agiu de forma inconstitucional, atentando contra o equilíbrio entre os Poderes.

• Depois da reunião com senadores e deputados que ocorreu um dia depois, na qual o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT), não pôde fazer outra coisa senão pedir diálogo e paciência, Pacheco falou em possíveis reações políticas, mas disse que as decisões serão tomadas “sem ruptura, desgaste ou mais polêmicas”.

Segundo ele, a prorrogação é uma medida já avaliada como legal pelo STF em decisão do ex-ministro Ricardo Lewandowski, que assume o Ministério da Justiça no lugar de Flávio Dino. “Nós já decidimos sobre isso. A desoneração da folha por mais quatro anos é uma decisão de mérito do Congresso, mas não vou tomar a decisão de devolver a MP sem antes conversar com o ministro Haddad.”

Líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues acha que MP não será devolvida (Crédito:Rafa Neddermeyer/Agência Brasil)

“Matéria equivocada”

• Parecer da consultoria jurídica do Senado aponta que a manobra do governo é inconstitucional e, por tentar se sobrepor ao Congresso, gera desarmonia entre os Poderes, um desgaste que pode custar caro: Lula governa com uma minoria fragilizada diante do poder de voto da maioria conservadora.

• O autor da lei, senador Efraim Filho, reclamou que Haddad tentou impor uma agenda para a qual o governo não teve votos para sustentar em plenário. “A matéria é equivocada. Está clara a intenção do governo de impor uma agenda por MP.”

• O líder do governo no Congresso, senador Randolfe Rodrigues, garante que já há um canal aberto para negociar e não acredita que o texto da MP seja integralmente devolvido. “A MP cumpre os requisitos de urgência e relevância.” Para Randolfe, a devolução só se justificaria se a medida ofendesse a Constituição.

• Pacheco pretende resolver o caso ainda no recesso para evitar que o ano legislativo comece com um conflito instalado.

Favorável a devolução, o senador Alessandro Vieira (MDB), que faz oposição independente, acha que a queda de braços é normal. “A MP não tem cabimento e deve ser devolvida, mas nada impede que o governo apresente um projeto para ser discutido. O equilíbrio é justamente assim: os Três Poderes estão situados equidistantes justamente para que cada um possa cutucar e puxar o outro quando necessário, mas não concordando um com outro compulsoriamente.”

STF e marco temporal

O veto à lei que criou o marco temporal jogou o governo no olho de um furacão cujo controle está nas mãos da bancada ruralista, que vem atuando sistematicamente para avançar sobre territórios indígenas restringindo as demarcações, fustigando governo e STF.

Aprovada em setembro, a lei foi vetada por Lula, mas a decisão acabou derrubada em dezembro em mais uma vitória expressiva da bancada conservadora.

Por iniciativa dos partidos governistas e de entidades ligadas às questões indígenas, o caso foi parar no STF, que deve colocar o tema na pauta logo depois do fim do recesso, em fevereiro.

O impasse levou insegurança jurídica para as regiões de conflito, forçando a paralisação de futuras demarcações justamente no momento em que o Ministério dos Povos Indígenas coordenava os processos de retirada de invasores.

“A insegurança jurídica afeta só as futuras demarcações, mas não interfere nas desintrusões já decididas. A retirada de invasores vai continuar”, garante a ministra Sônia Guajajara, que aposta numa decisão do STF abolindo definitivamente o marco temporal.

Só na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) Lula vetou pelo menos cinco artigos sobre os quais, pelo surrealismo das propostas, dificilmente Câmara e Senado vão fazer muito esforço para derrubar.

Um deles, do deputado Eduardo Bolsonaro (PL), filho do ex-presidente Jair Bolsonaro, era uma pérola de jabuti: proibia despesas com invasão de terra, aborto, cirurgia para troca de sexo de crianças e adolescentes ou opção diferente do sexo biológico.

O problema do governo será mesmo o veto imposto do dia 2 de janeiro ao artigo da LDO que obrigava o empenho de recursos para o pagamento de emendas parlamentares impositivas em até 30 dias depois da divulgação da proposta. A iniciativa tiraria do governo o enorme poder de barganha do gordo orçamento de R$ 53 bilhões. Parlamentares já articulam a derrubada do veto.