Comportamento

Chefs de cozinha invadem os museus (Louvre incluído)

Profissionais da área ocupam restaurantes de espaços de arte no Brasil e no mundo, e colocam a cultura alimentar em exposição. Histórias de imigração e preservação ambiental produzem o conhecimento

Crédito:  Philippe Vaurès

A equipe de Alain Ducasse (ao centro,de preto) (Crédito: Philippe Vaurès)

Por Ana Mosquera

“Quando houve o anúncio, e todos começaram a divulgar, eu fiquei meio anestesiada. Agora estou acordando e me dando conta da realidade”, diz Alessandra Montagne. Nascida no Vidigal, no Rio de Janeiro, e criada pelos avós em Poté, no interior de Minas Gerais, a chef que vive na França há 24 anos está prestes a assumir um dos restaurantes do mais conceituado templo de arte em todo o mundo — o Museu do Louvre, em Paris. Ao lado de nomes como Jessica Préalpato, melhor confeiteira do planeta em 2019, pelo portal Neo Restauration, ela faz parte da equipe de um dos chefs de enorme reconhecimento internacional, Alain Ducasse.

Com uma história de vida pouco linear e um caminho árduo, em suas palavras, Alessandra possui dois estabelecimentos na capital francesa (Nosso e Tempero) — e nenhum medo do imprevisível.

“Quando o Alain entrou no meu restaurante pela primeira vez eu fiquei branca, mas respirei fundo e me conectei com a terra, meus produtos e o melhor que tinha em mim. Ele adorou a comida, beijou minha mão e falou que queria que trabalhássemos juntos.”

Após diversas parcerias, vão agora encarar um projeto de 12 anos no maior museu de arte do mundo. A proposta é de uma alimentação saudável, com respeito ao meio ambiente e à diversidade de visitantes: 7,8 milhões apenas em 2022.

“O que comemos hoje não é o que vamos comer em 2036, então minha cozinha terá que evoluir com um mundo onde as questões ecológicas estão mais presentes. Quando o chef que está lá entrou, comia-se muita carne, mas agora é diferente.” Não restam dúvidas de que Alessandra é dona de uma linguagem bem cosmopolita.

Maki Manoukian
À felicidade de integrar a equipe de Alain Ducasse no Louvre se soma a oportunidade do contato íntimo com a arte. “Eu terei uma carteirinha para entrar no museu a qualquer hora. Vou começar a estudar história da arte, porque tendo acesso a tudo isso eu preciso aprender.” Assim como ela diz que não consegue entender sua trajetória nada linear, desconhece de onde surgiu a identificação com a pintura, fotografia, música, já que o contato com as primeiras obras ocorreu na França. “Quando cheguei aqui, fiquei desesperada. Eu senti aquela fome, de devorar mesmo, de ir ao museu todo final de semana. As cores me trazem uma emoção muito forte. Aí vou para casa, durmo e às vezes acordo com uma ideia com base nelas.”

Além da inspiração artística, no menu do Louvre, que ainda não pode ser divulgado, haverá toques de Brasil. “Uma coisa é certa: eu sempre coloco de onde venho e quem sou no que faço. Na cozinha do Nosso, tenho pão de queijo com caviar em cima, e uma coxinha bem pequenininha no menu degustação.”

O salgado brasileiro é importante para Alessandra, pois ela o vendia no contra turno escolar, aos 16 anos, para sustentar o filho, ainda em Poté. Em Paris, a inauguração do restaurante que comandará no Museu do Louvre está prevista para depois das Olimpíadas.

“Como migrante, o museu me traz uma amplitude para falar sobre culinária e cultura alimentar.”
Cafira, chef do Fitó Pina

De Belém ao Rio

No Brasil, a ocupação de espaços de cultura e arte por chefs de cozinha é crescente:
a piauiense Cafira acaba de assumir as três unidades da Pinacoteca de São Paulo,
Manuelle Ferraz está no MASP, com A Baianeira,
Rodrigo Oliveira no Instituto Moreira Salles, com o Balaio,
e Pedro Oliveira no topo do MAC USP, com o Vista Ibirapuera.

Quem também está próximo da arte, e não é de hoje, é o chef Saulo Jennings. Além de assumir a gastronomia do museu de arte local Casa das 11 Janelas, em Belém, o paraense é o responsável pela operação gastronômica do Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro. Estar dentro dos museus, em sua opinião, é fortalecer a história da gastronomia.

Em Belém do Pará, o restaurante de Saulo Jennings divide espaço com o museu de arte local que fica na primeira habitação construída na cidade.No museu carioca, uso de ingredientes amazônicos alertam para futuro do planeta (abaixo) (Crédito:Divulgação)
(Divulgação)

“Antes só havia lanches, café, fast food. Os chefs têm que estar no museu, porque somos cultura. Cultura alimentar.” Desta forma, há a valorização da cadeia produtiva do alimento, da origem dos insumos e da cultura por trás dos códigos culinários. “É um lugar para colocar em exposição as técnicas ancestrais e as pessoas que há por trás dos processos. Assim como no museu o visitante tem acesso ao artista, ele vai saber quem pescou o peixe que está comendo no restaurante.”

No espaço gastronômico que fica na parte de baixo do Museu do Amanhã, em frente ao mar e a um espelho d’água, a presença do chef amazônico é providencial.

“Imagina a pessoa visitar um museu para falar de futuro e poder ingerir pela cabeça, pelos poros e as papilas os cheiros, os barulhos.”
Chef Saulo Jennings

Na Casa do Saulo, 90% dos pratos são amazônicos e feitos com ingredientes de origem sustentável, que mantêm famílias e a floresta em pé. Um bom presságio no museu do futuro.

Livre para criar

Desde o final do ano passado, estão sob o comando da chef Cafira, do Fitó, as três unidades do café e restaurante da Pinacoteca, na capital paulista: Luz, Estação e Contemporânea.

Filha de artesão e natural do Piauí, a chef conta que sempre esteve “impregnada de arte”, sobretudo naïf. “Minha produção de cozinha é muito visual e pouco pautada em chefs, mas em cenas de filmes e músicas.”

O processo criativo por trás da abertura dos novos estabelecimentos no centro de São Paulo transcende a criação culinária. “Procuramos diálogos alimentares, mas também outros. Viemos de um momento de fome e recessão, então o que vamos contar agora? Acho que temos que dar voz a quem faz e come esse cardápio, e também a quem não come.”

Nas três unidades, a ocupação vai além do menu. Junto às novas curadorias de arte, a chef Cafira almeja dar visibilidade à tradição alimentar de migrantes e grupos diaspóricos, além de fortalecer a cultura empresarial feminina (Crédito:Caio Guatelli)
(Divulgação)

A ocupação da Pina por uma chef migrante e sertaneja, mas também do mundo, vai ao encontro da retomada do protagonismo de grupos minoritários e diaspóricos pelo País.

“A Pinacoteca propõe uma curadoria artística muito provocativa hoje, ao devolver a quem é de direito a produção artística brasileira e latino-americana. Como migrante, o museu me traz uma amplitude para falar sobre culinária e cultura alimentar também.”

O cardápio está em construção, mas estará permeado pelo contexto político de cada espaço que o projeto ocupa. No Fitó Pina da Estação, prédio que abrigou um dos principais órgãos de repressão da ditadura militar, o DOPS, ela pretende incluir uma série de bolos, para lembrar o famigerado tempo em que notícias eram censuradas e jornais publicavam receitas no lugar.

Com duas unidades rodeadas pelo Parque da Luz, que já teve o maior índice de feminicídios do País, a chef segue firme com a cultura empresarial feminina que nasceu no Fitó de Pinheiros. “Acho que estar na Pinacoteca vai nos dar mais visibilidade para que haja maior acesso, inclusive financeiro, a um trabalho feito por e para mulheres, construindo segurança nele e fora dele também.”