Editorial

A história bruta do Brasil

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Antonio Carlos Prado: "No passado, a brutalidade vinha em ondas; agora, brame em constante ressaca" (Crédito: Divulgação)

Por Antonio Carlos Prado, diretor editorial

As eleições municipais de 2024 serão marcadas pela polarização. Dúvida zero. E zero de novidade também. O fenômeno da polarização política no País é bem antigo e sempre houve fortes antagonismos ao longo do tempo. Golpes de Estado, extremismos, agressões verbais, agressões físicas, empastelamentos, tiros, tentativas de assassinatos e extermínios consumados são os fios que tecem a nossa história política. E ombros verdes-oliva estrelados também, é claro. O que mudou então? A mudança é que nos dias atuais, no mundo em que vivemos dominados pelas redes sociais, o distanciamento físico aumentou, mas as diferenças ideológicas, paradoxalmente e devido às próprias redes sociais, em movimento contrário, aproximaram-se em demasia – o que está longe, muito longe mesmo de implicar convivência pacífica entre os pensamentos diversos. Opiniões políticas coincidentes, posições políticas somente às vezes coincidentes e posições políticas divergentes convivem no ambiente tecnológico, cada uma defendendo a si e atacando aquela da qual discorda. Digamos que tudo e todos ocupam um único espaço. É uma miríade de imãs com polos positivos e negativos apontando para todos os lados, mas bastante próximos — dissemos próximos, é muito diferente de se dizer unidos. Tomemos alguns exemplos, fragmentos no avoar do tempo. Sair do Império e ingressar na República significou mudança marcante. Pois bem, não ocorreram ponderosos atritos porque sequer houve consulta popular. Foi quartelada, a ponto de o jornalista Aristides Lobo escrever que “o povo estava bestializado”, supondo “uma parada militar”. Apenas um soldado, que tentou evitar a derrubada do último gabinete do Império, saiu chamuscado nas nádegas por uma bala republicana. Mas logo, bem logo viria violenta polarização no governo do marechal Floriano Peixoto, pleno de revoltas populares e militares, com o presidente ameaçando mandar o Exército fechar o STF (como se vê, a baboseira de “um cabo e um soldado” não é de agora). Estamos, aqui, cerrando as cortinas do século 19. A partir daí, a amabilidade foi sendo cada vez mais abatida e as posições ideológicas passaram a ser inimigas em confrontos nas ruas, nos bares, nos salões das elites, nas gafieiras dos sambistas capoeiras, e, acreditem, até em barbearias. É indispensável anotar que os enfrentamentos se davam entre civis, entre militares até a patente de tenente (os generais conspiravam discretamente nos bastidores) e entre civis e militares (lembram da nossa teoria dos imãs citada acima?). Foi assim, por exemplo, em 1930. No dia 1 de março, em pleno sábado de Carnaval, houve a eleição presidencial. Julio Prestes ganhou, Getúlio Vargas perdeu. A elite de uma incipiente industrialização e a de uma falida economia agrária mandaram às favas os votos e alçaram Getúlio ao Catete após uma revolução – convenhamos, maior polarização impossível. E já que falamos em Getúlio, passemos por sua deposição em 1945, com o Brasil cindido e agressivo, e vamos à sua reeleição em 1950. De um lado, o PTB e o PSP. Do outro, o raivoso conservadorismo da UDN, regida por Carlos Lacerda. Em pleno Congresso, Lacerda teve a insolência de assim discursar: “Getúlio não deve ser candidato. Se candidato, não deve ser eleito. Se eleito, não deve tomar posse. Se empossado, daremos o golpe”. Há muito mais a tratar, mas o espaço é exíguo, nos atemos à tentativa de impedimento da posse na Presidência da República de Juscelino Kubitschek; à fracassada rasteira dos militares na posse de Jango; à engrenagem rudimentar do pau de arara no golpe militar de 1964. Finalmente, vamos, em nossos fragmentos, aos dias atuais, sombrios tempos em que a extrema-direita bolsonarista quebrou a Praça dos Três Poderes. Polarização no País sempre houve, a diferença é que hoje ela invade sentimentos, afasta pais de filhos, irmão de irmão, marido de esposa, amigo de amigo, rico de rico, peão de obra de peão de obra. Tornou-se “polarização afetiva”, na definição do economista Thomas Traumann e do Ph.D. em ciência política Felipe Nunes, em Biografia do Abismo. A história política do Brasil sempre foi bruta. No passado, a brutalidade vinha em ondas; agora, brame em constante ressaca.