Economia

“Haddad acertou ao manter a meta zero para o déficit”, diz Felipe Salto

Crédito: Marco Ankosqui

Felipe Salto não acredita no sucesso da proposta da Reforma Tributária e teme as consequências de sua implantação (Crédito: Marco Ankosqui)

Por Mirela Luiz

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Reforma Tributária, aprovada recentemente pelo Senado, tem enfrentado dificuldades para alcançar consenso devido ao excesso de concessões setoriais e federativas. Felipe Salto, que sempre defendeu as mudanças e foi o primeiro diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão vinculado ao Senado, é uma das vozes mais críticas a essas deformações no projeto em tramitação. Ele considera que a PEC se tornou uma ‘colcha de retalhos’, com dispositivos inconstitucionais e ineficazes. Um dos pontos criticados é a criação do Comitê Gestor para gerir o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), resultante da unificação do ICMS, estadual, e do ISS, municipal. Segundo ele, essa proposta é inconstitucional. Salto continua a defender a mesma proposta que apresentou quando Secretário da Fazenda, isto é, uma simplificação do ICMS, com sua migração ao destino das operações. “Um problema por vez”, ele diz. Ex-secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo na gestão Rodrigo Garcia, ele é um dos grandes especialistas em contas públicas no País, experiência que complementa, atualmente, como economista-chefe e sócio da Warren Investimentos. Apesar das restrições à proposta tributária em tramitação na Câmara, ele demonstra otimismo em relação ao arcabouço fiscal e ao empenho do ministro Fernando Haddad.

O sr. é um defensor histórico da Reforma Tributária, mas critica a proposta em tramitação no Congresso. O sr. mudou de posição?
Não mudei de posição. Continuo no mesmo lugar. Foi aprovada pelo Senado a pior proposta desde que se discute esse tema. Estou pessimista. Quando fui secretário da Fazenda e Planejamento de São Paulo, já defendia um projeto de simplificação, levando em consideração os problemas do ICMS, que é um imposto sobre valor adicionado. A não cumulatividade é viabilizada por meio do abatimento do valor do imposto recolhido sobre os insumos ao longo da cadeia de produção. Isso funciona. No entanto, existem problemas nesse sistema, como o critério físico, que deveria ser substituído pelo financeiro, além da demora na devolução dos créditos acumulados, em razão de hipóteses legais como a desoneração das exportações. São problemas distintos e parte dos defensores importantes da PEC 45 [que voltou à Câmara, após ser aprovada no Senado] faz essa confusão a todo tempo. Como a transição ficou para o período entre 2029 a 2033, o risco de haver uma prorrogação é altíssimo. A guerra fiscal entre os estados vai continuar, exatamente como é hoje.

O sr. tem alguma solução para a guerra fiscal que não cause um ônus excessivo para a União ou para os contribuintes?
Sim. Um projeto de resolução do Senado para extinguir as alíquotas interestaduais. O sistema atual enseja a guerra fiscal. Deveríamos repensar o modelo de desenvolvimento, com projetos para as diferentes regiões do País, contrapartidas e foco na infraestrutura. Benefício fiscal não gera, por si só, desenvolvimento. Só no ICMS, são R$ 200 bilhões em renúncias fiscais. Eu acredito que uma resolução do Senado seria mais viável do que virar de cabeça para baixo o capítulo tributário da Constituição. Mas há um preço a ser pago em termos de compensação para alcançar uma redução das alíquotas interestaduais em um prazo de três ou quatro anos. Óbvio. O argumento contrário, de que custaria caro e alguns estados não aceitariam, é absurdo. Como disse, a PEC 45, somente de 2025 a 2043, vai custar R$ 790 bilhões! É barato? É importante ressaltar que em uma proposta de reforma tributária, fiscal e orçamentária, é difícil encontrar uma solução em que todos saiam satisfeitos, pois sempre haverá um custo a ser pago. O objetivo principal da reforma é o impacto no crescimento econômico, o qual beneficiaria a todos a longo prazo em termos de prosperidade e desenvolvimento da sociedade como um todo. Com a proposta atual, não vamos ter nada disso, porque se optou por distribuir benesses de curto prazo, replicando a parte ruim do sistema atual, sem garantir a migração ao destino, o fim da guerra fiscal e a simplificação. Um presente de grego.

“Fernando Haddad acertou ao enfrentar as pressões em relação ao déficit. Até o momento, Lula tem respaldado as posições do ministro. Tenho uma visão otimista cautelosa sobre as contas públicas” (Crédito:Pedro França)

O governo conseguirá aprovar a Reforma Tributária e cumprir a meta de zerar o déficit público em 2024?
Exceto pela Reforma Tributária, tenho uma visão otimista cautelosa. Fernando Haddad teve sucesso ao aprovar um arcabouço fiscal em tempo recorde, negociando uma lei complementar (de número 200) que vai na direção correta de permitir a evolução controlada da despesa. Caso a meta seja descumprida, duas sanções são acionadas. É uma boa inovação em relação à Lei de Responsabilidade Fiscal, porque permite romper a meta fiscal, mas desde que o governo comprove que cortou os gastos ao alcance da sua tesoura. Além disso, precisa aplicar as sanções, que estão longe de ser impraticáveis. O segundo eixo do arcabouço fiscal é o limite para gastos, que cresce a 70% da variação da receita líquida acumulada até junho do ano anterior. Não sou otimista quanto à arrecadação de todo o volume previsto na proposta orçamentária do governo, mas entendo que a meta zero precisa ser mantida. O zero não é um número mágico, mas é a âncora, no curto prazo, desse arcabouço. O ministro acertou ao enfrentar as pressões e manter a meta, mesmo que dependente de medidas de arrecadação. Abandoná-la significaria o fim do próprio arcabouço.

E se o déficit zero não for alcançado em 2024?
Se o governo não cumprir a meta, terá de fazer valer o arcabouço fiscal e acionar gatilhos. Em janeiro de 2025, quando for constatado o descumprimento, o governo deverá interromper medidas que possam elevar o gasto. Os demais Poderes também. Um segundo gatilho diz respeito à redução da taxa de crescimento do limite para gastar. Isso se daria em agosto de 2025, quando da elaboração do Orçamento para 2026. No lugar de calcular a taxa de crescimento do limite de gastos por 70% da variação passada da receita, terá de usar 50%. Lembro, contudo, que já no próximo mês de março o governo terá de apresentar o relatório bimestral do Orçamento, como manda a Lei de Responsabilidade Fiscal. Nesse relatório, deve demonstrar sua projeção para o resultado primário anual e compará-la à meta. A meta é zero, como disse, mas há uma banda que permite um déficit de até 0,25% do PIB. É este o primeiro momento para decidir o quanto cortará o Orçamento, isto é, para definir o contingenciamento das despesas discricionárias, como chamamos a parte não obrigatória do gasto. Se o resultado estimado estiver distante da meta, ele precisará cortar. Se ela é simplesmente alterada, a cada pressão, os gatilhos nunca podem ser acionados e isso seria rapidamente incorporado às projeções para a trajetória do déficit, da dívida e, consequentemente, dos juros, da taxa de câmbio e da inflação.

Há alguma mudança nos gastos públicos que o governo deveria propor, como a reforma administrativa?
Uma das principais reformas que precisamos discutir é a administrativa. Embora não gere resultados imediatos, é importante começar esse processo. Não o vejo necessariamente como uma medida para fazer ajuste fiscal, aumentar a poupança pública, mas para melhorar a eficiência e a eficácia do Estado. É o caso de retomar a agenda do ex-ministro Luiz Carlos Bresser Pereira, que comandou o Ministério da Administração e Reforma do Estado no governo Fernando Henrique Cardoso. O objetivo era reestruturar as carreiras do serviço público e organizar as atividades do Estado, inclusive os planos de cargos e salários. A própria carreira de gestor foi um passo importante, pois atraiu profissionais qualificados para áreas como Saúde e Educação, mas com flexibilidade. É hora de realizar uma nova reforma gerencial do Estado, e o atual governo, por ser de esquerda, tem a legitimidade necessária junto aos servidores públicos para fazer isso. Eu aprendi, nas experiências que tive no Senado e, principalmente, na Secretaria da Fazenda e Planejamento no estado de São Paulo, a admirar a burocracia permanente. Sem ela, nada se faz. Há muito por fazer, mas não partimos de uma terra arrasada, como os catastrofistas tentam vender.

O sr. acredita que Haddad sairá vencedor nesse cabo de guerra com Rui Costa? Acha que ele vai conseguir vencer a ala do PT que defende fazer déficit?
Não vejo cabo de guerra. Um governo democrático convive com opinião divergente. É que havíamos esquecido disso. O então presidente FHC tinha José Serra (Planejamento) e Pedro Malan (Fazenda), oras, e bebia dessas duas fontes em benefício do País, tomando suas decisões. Para isso teve voto. Mas é uma boa pergunta, pois o que vejo agora é similar: o presidente Lula, com sua vasta experiência política, está fazendo sinalizações para diferentes lados, como no caso do Banco Central. Ele inicialmente propôs reduzir a meta de inflação, mas depois desistiu. Também houve certa agitação no mercado quando Lula mencionou que a meta de déficit zero não era necessária, o que pode ter sido um sinal para o ministro Rui Costa e outros que, legitimamente, defendem a importância de investimentos, como o Novo PAC. No entanto, até o momento, Lula tem respaldado as posições de Haddad. A meta foi, afinal, mantida. Lógico que a novela tem muitos capítulos e só estamos nos primeiros, mas é uma vitória e evidencia que o bastão da Fazenda é do Ministro da Fazenda. Confio na experiência do presidente. Ele provavelmente perceberá que o Orçamento está sendo feito com base em um valor bastante alto de gastos discricionários e que há espaço para cortes de gorduras no início do próximo ano. São R$ 211,9 bilhões em despesas discricionárias. De todo modo, o fundamental é preservar a meta fiscal e seguir com os mecanismos do arcabouço. Mudar essa lógica dispararia um cenário ruim na economia.

“Critiquei duramente a PEC dos Precatórios. Paulo Guedes respondeu e houve uma grande confusão. Não me arrependo, porque estava certo. Era possível prever que essa bomba fiscal estava chegando” (Crédito:Marcos Oliveira)

A autorização do STF para o governo de Lula regularizar o estoque de precatórios sem infringir as regras fiscais até 2026 não piora o resultado primário e a dívida?
Olha, o que aconteceu foi um grande equívoco chamado PEC dos Precatórios. Escondeu-se um mamute debaixo do tapete da sala de estar. Eu estava na Instituição Fiscal Independente (IFI) na época e condenei duramente essa medida. O ex-ministro Paulo Guedes reagiu e me criticou, mas eu não me arrependo. Eu previ que isso se transformaria em uma bola de neve. Aconteceu, e o Supremo está reagindo. Agora, vai se trazer à luz do dia esse passivo, e ele será devidamente quitado. Muito bom para a credibilidade do País, que precisa aprender que decisão judicial se cumpre e ponto final. Em paralelo, eu buscaria identificar os fatores condicionantes do crescimento dos precatórios, neutralizando-os quando possível.