Cultura

Sinfonia pela paz: a orquestra de árabes e israelenses

Criada em 1999 pelo maestro argentino de origem judaica Daniel Barenboim e o intelectual palestino Edward Said, a Orquestra West-Eastern Divan, formada por músicos de países do Oriente Médio, enfrenta seu maior desafio de convivência: a guerra em Gaza

Crédito: Bulent Kilic / AFP

A arte como instrumento de cooperação entre os povos: execução de clássicos e refinamento da sensibilidade (Crédito: Bulent Kilic / AFP)

Por Felipe Machado

Não há outra linguagem tão universal como a música. Quando um grupo de instrumentistas se reúne diante de uma partitura, fronteiras, gêneros e origens parecem desaparecer: ritmos e melodias se impõem e superam as diferenças. Em um mundo onde divisões políticas, religiosas e culturais muitas vezes impedem a harmonia entre os povos, uma orquestra destaca-se como um poderoso caminho de cooperação em busca da paz, mostrando que a coexistência entre povos diferentes é possível.

Em 1999, o maestro Daniel Barenboim, um argentino de origem judaica, e o intelectual palestino Edward W. Said (1935-2003), muçulmano, criaram um workshop para músicos com o objetivo de promover a convivência e o diálogo intercultural.

O grupo evoluiu e se tornou a Orquestra West-Eastern Divan, batizada em homenagem aos poemas do filósofo Johann Wolfgang von Goethe, obra vital para a cultura.

Já se apresentou em salas que incluem a Filarmônica de Berlim e o Teatro Alla Scalla, de Milão, além do Carnegie Hall, em Nova York, e o Hagia Eirene Museum, em Istambul.

A sinfônica é única em sua composição, pois reúne talentos de Israel, Palestina e outras nações da região, como Irã, Egito, Sírio e Líbano. Esses jovens, muitas vezes até contra a vontade de suas famílias, encontram no projeto uma plataforma para colaborar, aprender e crescer juntos.

No entanto, até mesmo uma ideia extraordinária como essa pode ser afetada com a guerra brutal que acontece na região.

Apesar do clima respeitoso ser constante entre os integrantes, o ataque terrorista do Hamas em 7 de outubro e os bombardeios de Israel como resposta acirraram os ânimos. Enquanto israelenses comentavam o trauma provocado pelos ataques, árabes reclamavam que suas vozes não eram ouvidas e que estavam vulneráveis.

Alguns estudantes chegaram a questionar sua participação enquanto não houver um cessarfogo. “É preciso ter coragem para estar aqui. Temos que ouvir uns aos outros”, afirmou o maestro Barenboim ao jornal The New York Times. “Por mais que a gente queira, não vamos trazer a paz e nem resolver os problemas do mundo. Mas conseguimos criar um espaço onde as pessoas são aceitas”, afirmou a violinista palestina Abdel Kader, de 23 anos. Já o pianista israelense Itamar Carmeli, de 22, disse que era impossível esquecer a guerra: “Nossas famílias estão lá”.

Apresentação da West-Eastern Divan Orchestra em Ramala, na Cisjordânia, em 2005: Batizada de O Conhecimento é o Início, ganhou documentário de Paul Smaczny (Crédito:Abbas Momani)

Em novembro, no auge da guerra, a orquestra mostrou a sua força: um octeto de cordas, em formato Ensemble (pequeno grupo de músicos selecionado a partir da orquestra), realizou uma turnê com seis datas, na Europa e na Ásia. Foi a primeira vez que eles se apresentaram em Hong Kong. Quem ocupou o pódio foi Michael Baren­boim, violinista e filho do maestro fundador. O ativismo pela paz, pelo jeito, tem caráter hereditário.

A repercussão positiva da iniciativa representa uma esperança e paz para o complexo cenário do Oriente Médio. Outros artistas de renome mundial, como o violoncelista Yo-Yo Ma e a pianista Martha Argerich, têm mencionado em seus concertos que apoiam a proposta como integrantes honorários.

Desde o início, um dos objetivos de Barenboim e Said era que a orquestra se apresentasse em todos os países representados por seus músicos: até agora já houve concertos em:
Rabat, no Marrocos,
Doha, no Qatar,
e Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos,
além de uma apresentação histórica em Ramala, na Cisjordânia, em 2005.

Em 2016 foi construída a Academia Barenboim-Said, em Berlim, instituição que hoje abriga centenas de músicos. Pouco antes do primeiro concerto desde o início do confronto em Gaza, Barenboim desabafou: “Não adianta dizer que nós, judeus, sofremos mais que todo mundo. Nem os palestinos podem dizer que sofreram mais que os judeus”, concluiu. “Temos de seguir em frente e conviver em igualdade”, afirmou o maestro de 80 anos.

Psicólogos fluentes em hebraico e árabe foram contratados para trabalhar com os músicos desde o acirramento do conflito.

Edward Said e Daniel Barenboim: intelectual muçulmano e maestro judeu buscaram formas alternativas para abordar o processo de paz na região (Crédito:Divulgação)
(Patrick Kovarik)

“Nossa mensagem deve ser mais forte que nunca”

Os acontecimentos atuais em Israel e Gaza chocaram profundamente a todos nós. Não há justificativa para os atos terroristas bárbaros do Hamas contra civis, incluindo crianças e bebês. Devemos reconhecer isso e pausar. Mas então a próxima etapa é a pergunta: e agora? Devemos nos render à terrível violência e deixar nosso desejo por paz morrer?

Ou devemos continuar insistindo que deve e pode haver paz? Estou convencido de que precisamos seguir em frente e manter o contexto mais amplo do conflito em mente. Nossos músicos da West-Eastern Divan e os alunos na Barenboim-Said Academy estão quase todos diretamente afetados. Muitos dos músicos vivem na região, e os outros têm laços com sua terra natal. Isso fortalece minha convicção de que só pode haver uma solução para esse conflito, baseada no humanismo, justiça e igualdade — e sem uso de força armada e ocupação. Nossa mensagem de paz deve ser mais forte do que nunca. O maior perigo é que as pessoas que desejam a paz sejam silenciadas pelos extremistas e pela violência. Mas qualquer análise, qualquer equação moral que possamos traçar, deve ter como núcleo essa compreensão básica: há pessoas dos dois lados.

A humanidade é universal, e o reconhecimento dessa verdade por ambos os lados é o único caminho. O sofrimento de inocentes é absolutamente insuportável.”

Trechos do artigo do maestro Daniel Barenboim divulgado no site da West-Eastern Divan Orchestra