Brasil

Marco temporal: conheça a reação indígena

Indígenas reagem a PEC do marco temporal retomando suas terras e destravando as demarcações paralisadas pela pressão ruralista: desintrusão na Terra Iindígena Apyterewa reascende conflitos com emboscadas e tiroteios, transformando o Sul do Pará num barril de pólvora

Crédito: Eraldo Peres

Sônia Guajajara organiza a desocupação de intrusos em terras indígenas (Crédito: Eraldo Peres)

Por Vasconcelo Quadro

A bancada ruralista pode até ter vencido o combate do marco temporal no Congresso, mas no mundo real foi uma vitória de Pirro. No campo de batalhas que mais interessa, os indígenas estão literalmente conquistando territórios e consolidando uma política de avanço nas demarcações de suas reservas.

Em onze meses, eles conseguiram a homologação de oito das 14 terras indígenas (TI) listadas pelo governo, estão ajudando os órgãos federais a retirar invasores de quatro desses territórios – um total de 12,4 milhões de hectares – que estavam ocupados pela tríade dos crimes ambientais (grileiros, madeireiros e garimpeiros) e ainda colocaram na pauta outras 32 áreas que serão desocupadas no ano que vem.

Nas quatro áreas que estão sendo retomadas, Apyterewa, Trincheira Bacajá, Alto Rio Guamá (Pará) e Yanomami (entre Roraima e Amazonas) os confrontos se acentuaram.

Na Apyterewa, um invasor foi morto no final de outubro e um agente do Ibama saiu ferido de uma emboscada na noite de segunda-feira, 4, em episódios que exigiram o reforço policial para dar conta das desintrusões paralisadas desde o encerramento do governo Bolsonaro, o presidente que cumpriu a insólita promessa de não demarcar “um centímetro” de terra indígena.

Garimpeiros atiram em viaturas do Ibama que ajuda a despejar invasores (Crédito:Divulgação)

Em entrevista à ISTOÉ, a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara afirmou que embora as imagens de satélites mostrem que mais de 80% da redução do desmatamento – estimado em quase 60% no comparativo com 2022 – se deu em áreas indígenas onde houve retirada de invasores, os conflitos estão aumentando em intensidade que exigirá do governo esforço concentrado e permanente para proteger as diversas etnias ameaçadas.

“O que houve foi um despertar da oposição em provocar mais conflitos. Isso criou animosidade nas regiões e eles (os invasores) quiseram, cada um, segurar ‘o que é seu’ partindo com violência contra as comunidades indígenas e forças policiais.”
Sônia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas

O que era um discurso conivente de Bolsonaro, incentivando os criminosos a invadir, ganhou novo impulso com a decisão do Congresso aprovando a PEC do marco temporal, uma reação capitaneada pela bancada ruralista em franco enfrentamento contra a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que, em setembro, havia decidido que não existe uma data para definir se as etnias estavam ou não em determinada área cujos estudos apontem a necessidade de demarcação.

Localizada no Parque Indígena do Xingu, no Sul do Pará, a TI Apyterewa é hoje o ponto central dos conflitos que, nas profundezas da floresta amazônica envolvem invasor contra índio e, em Brasília, o confronto político entre a maioria conservadora do Congresso capitaneada pelo presidente da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), deputado Pedro Lupion (PP-PR), contra o STF e o governo.

Com 773.470 hectares, onde vivem cerca de 500 indígenas da etnia Parakanã, a área chegou a ter três vezes mais invasores do que índios.

A TI foi homologada em 2007, no segundo governo Lula, mas se tornou alvo permanente de questionamentos pelo ruralismo. No mesmo período, o senador Zequinha Marinho (Podemos-PA), vice-presidente da FPA, tentou anular o processo apresentando um projeto de decreto legislativo que chegou a ser aprovado nas comissões da Câmara.

Em 2021, Bolsonaro baixou decreto garfando dos Parakanã mais de 200 mil hectares da área, que era de 982 mil hectares.

Pedro Lupion, da bancada ruralista, estimula conflitos no campo (Crédito:Marina Ramos)

A ministra Sônia Guajajara diz que havia cerca de 80 mil cabeças de gado na TI Apyterewa, das quais 80%, ou 48 mil, haviam sido retiradas da TI até a semana passada.

A região virou um barril de pólvora, com frequentes emboscadas e tiroteios de invasores contra agentes federais, mesma tática utilizada pelos grupos que também resistem em deixar a TI Yanomami, onde o número de invasores é hoje 5% dos 20 mil garimpeiros estimados no início do ano.

“Os que resistem são suspeitos de integrar o crime organizado e têm promovido violência dentro do território”.

No caso da TI Yanomami, com mais de 9,6 milhões de hectares, para a desintrusão completa, segundo a ministra, é necessária uma operação permanente com bloqueio total do espaço aéreo pela Força Aérea Brasileira (FAB), que tem fechado apenas pontualmente para o tráfego de aviões, único transporte atualmente para entrar e sair das regiões de garimpo ilegal.

“É preciso garantir a segurança indígena dentro dos territórios. Estamos nos baseando no que decidiu o STF sobre o marco temporal, mas vamos nos orientar também pelo critério de indenização para os agricultores de boa fé”.

A ministra fala em abrir diálogo para superar as resistências. O problema é que na maior parte da Amazônia Legal as invasões são organizadas por grileiros que roubam os recursos naturais e depois, com apoio de políticos, ainda ingressam nos programas de regularização fundiária, uma verdadeira farra no governo Bolsonaro: 492 mil títulos foram expedidos, 12,5% dos quais relacionados a glebas de até 2,5 mil hectares de terras públicas ocupadas por grileiros.

Garimpo ilegal

O garimpeiro segue a trilha da grilagem que leva às TI s e unidades de conservação (UC), de onde, segundo levantamento do Setor de Perícias em Geologia (SEPGEO) da Polícia Federal, anualmente 30% do ouro produzido na Amazônia Legal – algo em torno de 30 toneladas por ano, o equivalente a cerca de R$ 9,6 bilhões – são retirados ilegalmente, uma usurpação contínua de recursos da União e das etnias.

A ilegalidade foi favorecida por uma lei editada no governo Dilma Rousseff (Lei 12.844, de 2013), suspensa em setembro deste ano pelo STF, que permitia que uma simples declaração “de boa fé”, escrita à mão e com uma cópia da Carteira de Identidade do garimpeiro, fosse aceita como documento de origem “legal” na primeira venda do minério como mercadoria às Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários (DTVMs) autorizadas pelo Banco Central.

A partir daí, já como ativo financeiro, o ouro poderia até ser rastreado, mas sem a menor chance de ter a origem real identificada.

Só entre 2020 e 2021 a PF abriu 1.527 inquéritos sobre usurpação de bens da União no subsolo de TI e UC e deflagrou 95 operações de repressão aos garimpos ilegais.

Os dois principais órgãos de controle dos garimpos e do ouro, a Agência Nacional de Mineração (ANM) e o Banco Central vivem há anos um jogo de empurra, lavando as mãos sobre a responsabilidade de fiscalizar a origem do ouro, embora as imagens de satélites mostrem, em tempo real, as feridas abertas na floresta.