Cultura

“Gosto de tudo. De Proust a Chico Bento, Tiririca a Truffaut”, diz Selton Mello

Crédito: Silvia Zamboni

“Mesmo tendo começado cedo na profissão, não perdi nada da infância. Tive uma infância maravilhosa, aliás”, diz Selton Mello (Crédito: Silvia Zamboni)

Por Luiz Cesar Pimentel

Aos 50 anos de idade e 43 de carreira, o ator, produtor e diretor Selton Mello resolveu abrir a intimidade pela primeira vez. À véspera de finalizar o trabalho como um de seus personagens mais icônicos, Chicó, em o Auto da Compadecida 2, ele chamou pessoas que o inspiraram na carreira e pediu que o entrevistassem. As 40 conversas formam o seu primeiro livro, Eu me Lembro. O título faz alusão ao processo de perda de memória de sua mãe, Selva, que há 10 anos apresenta demência progressiva pelo Alzheimer. A doença, exposta pela primeira vez, o motivou a registrar as lembranças de sua carreira e da família, com convidados que vão de Matheus Nachtergaele ao ex-jogador Raí, passando por Fernanda Montenegro, Wagner Moura e os já falecidos Paulo José e Rolando Boldrin. “Significa uma mãe perdendo a memória enquanto recupero a memória da família”, diz e chora, o que revela o quanto o toca a doença materna. À ISTO É Selton falou também de outros assuntos não abordados na obra. “Abri o baú da minha vida e da família, mas depois continuarei reservado.”

Em quatro décadas de carreira, você manteve bem guardada sua privacidade e vida íntima. Por que abriu a caixa preta agora?
A costura do livro se deu principalmente pela doença da minha mãe, Selva. Se fosse resumir, diria que estou recuperando a memória familiar enquanto ela a perde. Começou quando completei 40 anos de carreira. Agora já tenho 43, mas arredondo para 40 porque acho mais estético. Sou novo mas sou rodado.

O fato de ser reservado contou na hora de escolher a narrativa do livro? Ou seja: você escolheu uma forma de ser provocado por 40 entrevistadores que o conhecem melhor para que pudesse narrar suas histórias?
Sim, sempre fui muito reservado, e isso é uma coisa muito natural pra mim. Mineiro, né? Mineiro já nasce reservado. É o contrário de carioca. Quando você viu, o mineiro já fez, sem anúncio. Então não existe nenhum esforço, em ser reservado. É o contrário. O esforço existe é para ser extrovertido (risos). Cara, esse livro foi uma celebração. A ideia começou na pandemia, então acho que tinha também uma urgência, sabe assim, de me lembrar das coisas com amor, com carinho. Junta isso com a perda gradativa da memória da minha mãe, que é o grande significado desse livro. A perda e a recuperação são o círculo desse livro. Essas 40 pessoas que chamei para me entrevistar foram meus melhores entrevistadores, porque me ajudaram a elaborar toda uma jornada. Então foi lindo. Foi lindo e esclarecedor. Teve um poder curativo muito bonito. O que acabou indo para o livro vai interessar quem gosta de arte, de cultura, estudantes de cinema, estudantes de artes cênicas, quem gosta do meu trabalho, os fãs, e gente que vai se identificar com a pessoa por trás de todos esses personagens. É muito bonito botar esse livro no mundo. Pode ajudar muita gente, iluminar os pensamentos de muita gente.

Você leu o livro depois de pronto? Descobriu algo sobre você ao lê-lo?
Li, sim. Sou capricorniano, perfeccionista. Lia, chegava no meu editor e falava: “Olha só, na outra tiragem temos que mudar isso e aquilo, tá?”. E ao ler foi como me olhar no espelho. O processo todo acabou fazendo com que descobrisse muitas coisas sobre mim, tive muitos insights.

“São memórias do nosso núcleo familiar, do Danton (irmão, na foto), Dalton (pai), Selva (mãe) e as minhas” (Crédito:Divulgação)

Astrologia é realmente importante na sua vida?
Sou muito ligado à astrologia e adoro fazer mapa astral. Adoro ler sobre isso. Adoro descobrir os signos dos outros. Gosto de tentar adivinhar. Eu estou trabalhando com as pessoas e pensando: “Aquele deve ser geminiano. Esse tem pinta de ser ariano”. Geralmente eu acerto e se não acerto o signo, acerto o ascendente da pessoa (ri). Tenho olho bom pra isso. A astrologia é uma coisa matemática. Então, somente um capricorniano com o ascendente em virgem como eu para ser tão fã de astrologia (risos). Assim, está escrito organizado, na hora que você nasceu, a lua estava assim, o céu estava desse jeito. Portanto você é assim e assado. Bingo! Eu acho fantástico.

Quando alguém como você – tido como exemplo de sucesso e conquistas – fala em ter tido longa melancolia, passado por depressão e ter baixa autoestima, não acha contraproducente para uma população em que metade possui algum transtorno de saúde mental?
Eu acho que é exatamente por eu ser uma pessoa pública, tido como exemplo de sucesso, que muita gente que tem problemas ou algum transtorno de alguma ordem pode se identificar e talvez se sinta bem de alguma forma. Sente que não está só. Elas podem pensar: “Caramba, aquele ator que eu adoro passa por isso! Sempre assisti os filmes, nunca imaginei essa vulnerabilidade. Nossa, eu nunca imaginei que ele passou por algo assim”. Em um mundo cheio de filtro, alguém pode ser tocado. Isso pode ajudar muita gente, pode ajudar a desmistificar esses assuntos. Aliás, eu já venho fazendo isso, porque o [seriado que dirigiu] Sessão de Terapia é isso. A minha devoção pela série, o amor que eu sinto por ela é fruto desse desejo de explorar o assunto. Aliás, sou o primeiro a falar que essa série deveria ser eterna e bater o Grey’s Anatomy. Cadê a sexta temporada que já está escrita pronta para produzir? Essa série tinha que passar na TV aberta. A TV Globo está demorando para entender que possui algo de grande qualidade nas mãos e que mesmo de madrugada, isso salvaria vidas. Ajudaria muita gente.

As citações do livro são inevitavelmente de arte mais madura, mas o que você gosta na arte popular considerada mais cafona?|
Eu gosto de tudo. Eu leio [escritor francês Marcel] Proust e Chico Bento. Vejo programa de auditório popular. Eu gosto de saber tudo o que está acontecendo, não só na minha bolha. Porque tem isso também. Às vezes você fica só na bolha e quer ver as coisas só dela. Eu vejo de tudo, escuto sertanejo e Chico Buarque, aí leio Philip Roth, mas também gosto de ler as revistas de fofocas, os perfis de Instagram de galhofa pura. Eu adoro meme, sou o rei dos memes. Adoro ver essas bobagens, inclusive como forma de terapia. Com forma de cura. Como forma de me fazer bem, de rir. Porque o mundo já é muito duro. Eu quero rir, cara. Quero ver meme. Eu só estou na rede social por causa dos memes. E espalho isso para ajudar os outros também. É claro que eu tenho o meu gosto para coisas refinadas, cinema de alta qualidade, mas vejo tudo. É importante estar atento, seguir com o olho bem aberto e acompanhar tudo. Tiririca é um gênio. É Isso, intercalo Tiririca com [cineasta francês François] Truffaut.

Você fala de consumo de inibidores de apetite e anfetamina. Quais remédios toma atualmente e como lida com eles?
Essa pergunta é legal. Acho que esse assunto sobre inibidor de apetite e tal, eu falo já bastante no livro, então deixa as pessoas lerem o livro. Mas eu parei de fumar, superei o vício do tabagismo, sem adesivo sem nada. Foi durante um ano em que me afastei das redes sociais. Pensei: “Não vou ficar vendo isso, não”. Todo mundo brigando, isso iria me adoecer. Aí, fiquei esse tempo fora e parei de fumar. Curioso, né? Deixei esse lugar que gera ansiedade e parei de fumar. Não acho que tenha sido coincidência. Você também me deu uma chance de falar uma coisa importante que não está no livro. Eu já tive muita dificuldade para dormir, hoje eu durmo muito bem, mais cedo inclusive. Mudei muito meu estilo de vida, fui uma pessoa da noite durante grande parte da minha vida e hoje sou uma pessoa totalmente do dia. Eu adoro dormir cedo. Bom, sempre tive essa dificuldade para dormir, então já tomei [ansiolítico] Rivotril e me ajudou muito. Tomei durante muitos anos na minha vida. Mas agora, mais recentemente, coisa de um ano ou dois, faço uso de canabidiol [CBD, da cannabis]. É importante eu dar esse depoimento, que não está no livro porque não deu tempo e nem espaço para colocar tudo de uma vida. O canabidiol me fez um bem tão grande, tenho conseguido dormir bem. Acabei me sentindo atraído por essa questão também, me associei à APEPI [Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal] do Rio de Janeiro. É uma entidade que vive passando por dificuldades com a licença, é sempre uma luta para continuar o que eles fazem brilhantemente. E é tudo causado por ignorância pura, porque já está comprovado que o canabidiol ajuda crianças com autismo, ajuda idosos com dores crônicas, tem tantos benefícios, para tanta gente, para tantas enfermidades. Então, eu uso o óleo de canabidiol para dormir e com isso fui deixando o Rivotril. Eu tomava muitas gotas de Rivotril e já estou quase tirando ele da minha vida. O lobby da indústria farmacêutica é muito forte, olha a quantidade de farmácias que existe no Brasil. Bizarro! É uma em cada esquina, às vezes três em cada esquina. A gente está doente sim, mas precisa tanta farmácia? Talvez tenha mais farmácia do que gente doente. Então, é óbvio que vão tentar impedir o avanço de uma coisa tão importante como é o óleo da cannabis. Essa minha relação com o canabidiol acabou não entrando no livro, então você me deu uma chance boa de falar uma coisa diferente e muito importante. Isso tem ajudado muita gente, mas infelizmente a ignorância e a caretice têm impedido esse avanço na melhora de vida pra muita gente.

“Chamei o Raí porque sou são-paulino. Não tinha jornalista íntimo para me entrevistar, então convidei quem admiro” (Crédito:Divulgação)

Você faz muitas atividades diferentes, dentro disso consegue descrever como é um dia típico na vida de Selton Mello?
Nem te conto como é pacata minha vida (ri). Eu sou muito caseirinho, vou ali faço minha ginástica, volto para casa, vejo um filme, descanso. Um dia normal, né? Quando eu não estou filmando. Tomo sol, às vezes dou uma volta. Saio pouco final de semana, gosto mais de coisas na casa de amigos. Tenho gostado, inclusive, muito de eventos diurnos. Eu virei fã de dormir cedo, não suporto mais coisas muito tarde. Acho um saco aniversário que você vai às dez da noite para casa de fulano e vão sair à uma da manhã para balada. Quero saber quem vai lançar aí as baladas que começam meio-dia e que o auge é às quatro da tarde. Quero saber mesmo é de silêncio, paz, descanso, natureza que tenho uma relação muito forte. Sempre que posso estou no mato, na praia, mar, passarinho, cachoeira. Isso tudo me energiza. Me deixa conectado com quem eu sou, filho da Selva, não por acaso.