Cultura

“Eu acho que a música não tem cor”, diz cantora e compositora Alaíde Costa

Crédito:  João Castellano

Fora de cena: em entrevista à ISTOÉ, na Casa de Francisca, em São Paulo, Alaíde conta que não percebia exclusão e racismo à época (Crédito: João Castellano)

Por Ana Mosquera

Prestes a completar 88 anos, a cantora e compositora Alaíde Costa vive o auge da carreira de sete décadas. Nascida no Méier, subúrbio carioca, caminhou na contramão do que esperavam dela como mulher negra: que cantasse samba. Eram as vozes de Sílvio Caldas e Dalva de Oliveira que a emocionavam.“Não sei de onde isso vem. De outras vidas, talvez”, diz. Autodidata, não pensava em viver da música, mas o sucesso em programas de calouros, como o de Ary Barroso, e nas rádios fez com que seu caminho se cruzasse com nomes como João Gilberto.

Na roda da Zona Sul carioca, fez parcerias com Vinicius de Moraes e Tom Jobim, e foi crucial para a Bossa Nova, apesar de não figurar entre os protagonistas. Após o racismo velado, dos “nãos” de gravadoras à exclusão do show do movimento em 1962, em Nova York, colhe os frutos tardios da trajetória.

Marcou presença nos 60 anos da Bossa no Carnegie Hall, em outubro, realiza turnê com três shows pelo Brasil, e está em gravação do segundo álbum com o rapper Emicida, e os produtores Marcus Preto e Pupillo (Nação Zumbi). O primeiro, O que meus calos dizem sobre mim, ganhou o Prêmio da Música Brasileira de Melhor Disco da MPB. No dia 20, foi uma das condecoradas com o Troféu Raça Negra.

Quando você começou a se apresentar publicamente?
Quando eu tinha 12 para 13 anos, meu irmão me inscreveu em um programa de calouros em um circo. Falei que não ia, mas ele me ameaçou. Disse que se eu não fosse, a polícia ia me prender (risos). Então fui e ganhei o prêmio. Mas não sonhava em ser cantora, só gostava de cantar.

E quando decidiu viver da música?
Fiquei quatro anos cantando em programas de calouros. Estava sempre vencendo tudo, mas me tornar profissional foi difícil, porque escolhia músicas que não estavam “no esquema”. Eu não gostava das músicas que cantavam à época, mas uma me chamou a atenção, “Noturno” (Em tempo de samba), na voz de Sílvio Caldas. Mas era rádio. Eu ia escrevendo a letra e memorizando a melodia, o que demorou, porque ele não cantava sempre. Quando finalmente aprendi, fui a uma loja de instrumentos musicais e partituras, e depois à Rádio Tupi, no programa do Ary Barroso. Cheguei com a partitura e o pianista falou, “você não vai poder cantar. Essa música é muito complicada. Tenho que passar para o seu tom e é difícil fazer isso agora. Eu vou ficar com a partitura e, quando tiver transportado, te chamamos”. Demorou de novo, mas me chamaram. E o Ary Barroso me deu nota máxima. Ninguém entendia minhas escolhas, mas viam que eu tinha talento.

Até porque esperavam que cantasse outro estilo, certo?
Sempre me falavam assim: “Você precisa cantar uma coisa mais animadinha, um samba”. Não é que eu não goste de samba. Gosto, sei sambar. Hoje nem tanto, porque a idade já não permite (risos). Mas eu era muito jovem, aliás, muito ingênua, e não percebia que ali entrava o racismo. Como eu era negra, tinha que cantar samba, rebolar, cantar animadinha. O que não tinha nada a ver comigo.

“O Johnny Alf criou a Bossa Nova e também sofreu um apagamento a vida toda, com certeza. Eu tenho a missão de levar seu nome adiante” (Crédito:Divulgação)

Mas você não desistiu da sua essência, da Bossa Nova…
Sim. E não fiquei só na Bossa Nova. Cantei MPB, também samba, Ivan Lins, Milton Nascimento e muitos outros. Quanto à Bossa, na minha cabeça, esse nome nem foi tão legal. Quando ela começou a aparecer, tinha blusa Bossa Nova, panela Bossa Nova, em tom de deboche mesmo. Que entrasse logo como MPB moderna ou coisa assim. Acho que o nome restringiu, pois quando se fala em Bossa Nova todo mundo pensa no banquinho e o violão, na batida, e não é só isso. O próprio Tom Jobim é considerado Bossa Nova, mas ele não era isso.

Como foi estar no Carnegie Hall nos 60 anos da Bossa Nova? Qual a importância do reencontro para a música brasileira?
Foi emocionante, porque eu não esperava ser recebida da forma como fui. E outra coisa, de 60 anos atrás, só tinha um sobrevivente, o [Roberto] Menescal, e foi justamente ele que me deu apoio musical. Eu não tenho palavras para traduzir o que senti naquele momento. Eu cantei “Sabe você”, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, e “Demais”, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira.

Você compôs Amigo amado e Tudo o que é meu com Vinicius. Como foi a parceria com o “poetinha”?
Eu fui fazer uma visita ao Vinicius e ele falou: “Tem um presentinho para você na gaveta”. Fui procurar, deduzindo que era um pacotinho, e não achei. Então ele falou, “procure direito”. Procurei novamente e nada. Aí ele disse, “tem duas folhas de papel dobradas. São os meus presentes pra você”. Ele escreveu letras sobre duas melodias e me fez essa surpresa. Mas ao longo da vida tive parceiros como Hermínio Bello de Carvalho, Paulo Alberto Ventura, João Magalhães e, recentemente, Nando Reis.

Você é uma mulher negra do subúrbio carioca. Como foi entrar no universo da Zona Sul do Rio de Janeiro?
Em 1957, eu estava gravando o meu segundo 78 rotações na Odeon e o João Gilberto estava no estúdio. Ele me ouviu e falou para o Aloysio de Oliveira, “o jeito que essa moça canta tem tudo a ver com uma música que uns meninos da Zona Sul carioca estão fazendo. Quando tiver uma reunião, vou falar para você chamá-la”. E foi assim que fui participar daquelas reuniões, em que cada um apresentava o que tinha criado. A primeira nem foi no apartamento da Nara Leão, mas do pianista Bené Nunes. Também frequentei a casa da pianista Cecília Motta, mãe do Nelson Motta, e do compositor Milo Queiroz.

Você percebia o racismo àquela época?
Absolutamente nada. Eu era muito ingênua. Os meus filhos falam que ainda sou, que não percebo a maldade, mas eu não estou nem aí. Eu era inclusive a única negra naquele movimento, mas já era profissional, então acho que eles me aceitaram porque também enxergaram em mim um talento. Mas depois fiquei sabendo que, na minha ausência, perguntavam: “A ‘ameixa’ não vem?” Se me chamassem de “ameixa” na minha presença, acharia que era algo carinhoso, mas era quando eu não estava. Mas não guardo mágoa daquele período.

Afinal, quem criou a Bossa Nova?
Johnny Alf. Tanto que dediquei a minha apresentação no Carnegie Hall a ele, apesar de não ter uma música dele no roteiro do show. Eu aprendia as músicas dele para cantar nos programas de calouro, de tanto que o admirava. E ele também sofreu um apagamento, com certeza, a vida toda. Eu tenho a missão de levar o nome dele adiante.

Qual sua lembrança mais feliz da década de 1960?
Olha, há várias, mas a primeira foi quando eu cantei no Teatro Paramount, em São Paulo, em 1964, no show ‘O fino da bossa’, organizado pelo Centro Acadêmico XI de Agosto. Cantei “Onde está você”, do Oscar Castro Neves e Luvercy Fiorini, uma música inédita, que eu tinha aprendido praticamente na véspera da apresentação. No meio da música, o pessoal ficou de pé e começou a aplaudir. Foi emocionante demais.

Por falar em reação, você sofreu com a Ditadura Militar?
Sim. Eu tinha alguns compromissos marcados em faculdades e o Hermeto Pascoal me chamou para cantar no Festival Internacional da Canção, em 1972. Era uma música bonita, chamada “Serearei”, mas ele complicou com a introdução, que era quilométrica, e ficou difícil para quem estava ouvindo. Cantei debaixo de vaias. Ainda assim, a música foi classificada entre as cinco primeiras. Quando voltei para cantar na final, cortaram o som e as pessoas começaram a vaiar de novo. Eu fiquei muito injuriada e joguei o microfone longe. Daí inventaram que eu ia ler um manifesto subversivo e foi a maior confusão. Levaram a gente para o camarim, eu, o Hermeto, os músicos. O Roberto Freire, que estava no júri, foi ao camarim para ver o que estava acontecendo e acabou preso. Foi o caos e repercutiu muito mal. Tudo que eu tinha nas faculdades foi cancelado e fiquei um tempão sem me apresentar, porque fui taxada de subversiva. Pensa bem: “euzinha” aqui, lendo manifesto subversivo… me poupe, né?

“O Emicida tem uma linha completamente diferente da minha, mas ele é muito inteligente. Não ia fazer algo que não me agradasse a essa altura do campeonato” (Crédito:Divulgação)

Como vê o movimento da música negra na atualidade?
Eu acho que a música não tem cor. Eu vi em um programa de televisão outro dia, “a música negra”. Sou negra, mas eu não estava lá. Eu acho que ainda continuo fora dos movimentos porque não entro na linha do que fazem. Mas a nossa presença mudou de lá para cá. Eu vejo muito mais cantores e músicos negros na televisão hoje.

Como é ser reconhecida por músicos e produtores da nova geração?
Eu fiquei bastante surpresa quando meu empresário, Thiago Marques Luiz, que tem sido meu anjo da guarda, falou que o Marcus Preto ia me ligar com uma proposta. Ele ligou e falou que o álbum O que meus calos dizem sobre mim seria produzido por ele e pelo Emicida. “Emicida? Mas ele tem uma linha completamente diferente do que eu faço.” Logo em seguida pensei, “ele é um moço inteligente, né? Não ia fazer uma coisa que não me agradasse, a essa altura do campeonato”. Então veio a proposta, achei fantástica e aí está o resultado.

Sendo uma representante da cultura brasileira, como foi passar pelo governo Bolsonaro?
Foi um período bem difícil e a pandemia também ajudou muito, mas a gente conseguiu superar. Agora, finalmente, acho que os espaços estão mais abertos para todos nós. Mas tem muita gente boa que está fora do Brasil, cantando e compondo bem, e não vou citar nomes para não haver injustiças, e como lá no passado não tem tido chance por causa de uma música mais “moderna”. E eu não vejo nada de “moderno” nela (risos).

O Ministério da Cultura voltou à ativa em janeiro, liderado pela também cantora e compositora Margareth Menezes. Qual é a importância do órgão, para você?
Eu acho importantíssimo, e a nossa ministra da Cultura é uma pessoa de bom senso e capaz. Inclusive quero publicamente manifestar gratidão pela minha ida a Nova York, porque houve certo rolo com o visto e o Thiago [Marques Luiz], meu agente, recorreu a ela, que prontamente resolveu o problema. Assim como conseguiu me ajudar, ela tem feito coisas maravilhosas.

Que medidas você considera fundamentais para resolver os principais problemas da sociedade hoje?
Eu acho que é importante mais cultura, mais seriedade, melhor remuneração para os educadores, e também acho que deveria haver música para os estudantes, em todas as faixas etárias.

Crescem os shows em homenagem a músicos brasileiros. Você até participou de um para o João Gilberto, recentemente. Espera ser homenageada no futuro?
Se eu tiver que ser homenageada, gostaria de receber essa homenagem em vida. Suponho que o João deva ter partido triste por não ter sido assim com ele.