Comportamento

Tragédia muda regras de shows no País

Somente após mil desmaios e a morte de uma fã, em estádio sob sensação térmica de quase 60ºC, as autoridades se movimentam para estabelecer a decência nas normas de espetáculos e liberam entrada de água

Crédito: Buda Mendes

Taylor Swift sentiu o calor no primeiro show e cancelou a apresentação do dia seguinte (Crédito: Buda Mendes)

Por Luiz Cesar Pimentel

Foi preciso que a estudante Ana Clara Benevides, de 23 anos, morresse para que promotores de show enxergassem o óbvio – durante as ondas climáticas extremas no País, proibir entrada de água em espetáculos é receita para tragédia. Mas nem diante do pior cenário possível, a empresa responsável pelo evento — Time for Fun, ou T4F —prestou assistência à família ou assumiu o translado do corpo. Tampouco respondeu à sociedade sobre preocupação com saúde do público. Só que o descaso tem preço.

O Procon-RJ instaurou investigação e se constatadas violações ao direito do consumidor, a companhia receberá multa de estimados R$ 13 milhões. No sábado (18), o Ministério da Justiça baixou portaria obrigando produtores de eventos a distribuírem água à platéia.

Na segunda, 20, as ações da T4F fecharam com queda de 9,6%. E a Câmara dos Deputados carioca estuda Projeto de Lei com o nome da estudante que garante estrutura adequada em grande concentração de pessoas. “É com muita tristeza que informamos o falecimento de Ana Clara (…). Aos familiares e amigos, nossos sinceros sentimentos”, limitou-se a divulgar a empresa em comunicado.

Procuradas, seis outras produtoras de shows preferiram não se pronunciar. Agora, no entanto, terão que responder às novas regras de respeito ao público.

Ana Clara era uma entre os dois milhões de brasileiros que entraram na fila online para comprar ingresso para um dos seis shows da cantora Taylor Swift no Brasil. Em 37 minutos, os bilhetes esgotaram. Mas ela garantiu entrada para a primeira apresentação, no Rio de Janeiro, na pista premium, tabelada a R$ 950.

Viajou de avião pela primeira vez, para cruzar os 1700 km entre Rondonópolis (MS), onde morava e estudava psicologia, e a capital carioca. Chegou ao estádio da apresentação às 10h, para ficar perto do palco. Os termômetros da cidade chegaram a 39,1ºC na data, sexta-feira, 17, e a sensação térmica atingiu 57ºC. Ela e uma amiga adquiriram duas garrafas de água na fila, a R$ 10 cada – cinco vezes mais caras do que em mercados.

Na catraca de acesso, qualquer bebida tinha que ser dispensada por exigência da produção. Na segunda música do concerto, a que assistia colada à grade de ferro, a estudante desmaiou e não mais acordou.

Ana Clara dentro do estádio de onde sairia sem vida; seu nome pode virar lei para eventos (Crédito:Divulgação)

O laudo preliminar não é conclusivo sobre a causa da morte da estudante, mas a constatação de hemorragia no pulmão sugere excesso de calor, desidratação ou insolação. Também não é possível determinar se houve interesse em dificultar o acesso a água no show, embora especialistas enxerguem a probabilidade.

“As listas restritivas são elaboradas com a alegação de que os itens poderiam ocasionar um risco à saúde ou à segurança coletiva, quando, na realidade, o intuito é de proteção comercial, impondo ao consumidor – que já pagou pelo espetáculo – adquirir outros produtos fornecidos no evento, sem a liberdade de escolha que lhe é garantida pela legislação. É a chamada ‘venda casada’, e, nesse caso, a prática é considerada abusiva e proibida”, diz o advogado Eric Nakumo.

“A proibição de entrada de garrafas de água em estádios é uma exigência feita por órgãos públicos”, respondeu em comunicado a T4F, eximindo-se de responsabilidade tanto pela morte quanto pelo suposto interesse comercial no impedimento de acesso com ítens básicos.

“Essa proibição existe em todos os shows. Mas é claro que, em ambiente de aglomeração de milhares de pessoas, sob sensação térmica de 60 graus, não ter acesso a água agrava a situação de qualquer pessoa. Isso é bom senso”, afirma o Secretário Nacional do Consumidor, Wadih Damous, em entrevista à ISTOÉ.

(Divulgação)

Estruturas de aço do estádio acumularam calor do dia e causaram queimaduras de até segundo grau em alguns fãs (Crédito:Divulgação)

Na manhã de sábado, 18, o Ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, determinou a portaria, que foi baixada por Damous. “A partir de hoje, será permitida a entrada de garrafas de água de uso pessoal, em material adequado, em shows. E as produtoras de espetáculos com alta exposição ao calor deverão disponibilizar água potável gratuita em locais de fácil acesso”, postou Dino.

Só que no mesmo dia, a produtora tentou manter a rédea do controle comercial da operação. Dado o calor, que superou os 40ºC, Taylor Swift cancelou a apresentação naquela noite, que foi transferida para segunda-feira. A T4F estabeleceu que quem quisesse ressarcimento tinha dois dias para pedi-lo. “A regra estabelece 30 dias, conforme determinamos”, censura Damous, e a empresa voltou atrás.

A portaria nº 35 do Ministério da Justiça determina que, “considerando os últimos acontecimentos, em virtude da elevada temperatura e dificuldades de hidratação em show produzido por empresa privada”, responsáveis por concentrações de pessoas tem que “garantir acesso gratuito de garrafas de uso pessoal contendo água, disponibilizar bebedouros ou distribuir água para consumo mediante ‘ilhas de hidratação’, sem custos adicionais ao consumidor”.

Além do “acompanhamento dos preços de água mineral comercializada, a fim de coibir aumento abusivo de preços”. “Segundo o Código do Consumidor, não poderia haver a proibição, mas muitos organizadores realizam, fazendo com que as pessoas sejam obrigadas a comprar no local. A única ressalva é o recipiente, que não pode ser de vidro ou alumínio em razão da segurança”, diz a professora de Direito e advogada Camila Soares.

Análise da lista de objetos permitidos e proibidos na turnê de Taylor Swift não estabelece linha clara de periculosidade ou não do porte. Com agravante de que a produtora poderia mudar a regra quando quisesse. “A critério da produção do evento, as listas podem sofrer alterações sem aviso prévio. A T4F orienta que os fãs confiram eventuais atualizações a respeito dos itens”, diz regulamento na página da companhia.

Foi autorizado acesso de câmeras fotográficas automáticas (Polaroid) mas não de livros, revistas ou jornais; podiam ser portados aparelhos celulares e carregadores mas não embalagens rígidas com tampa; copos e garrafas plásticas eram perigosos até o portão de entrada, mas, uma vez dentro do local de evento, deixavam de ser, caso fossem adquiridos em quiosques.

Com a portaria, que tem 120 dias de validade (para posterior reavaliação), pelo menos água deixa de ser proibida. O Secretário do Consumidor diz que a empresa está colaborando com as determinações, apesar de não ter agido após os cerca de mil desmaios de fãs no primeiro show e a confirmação do óbito.

Fernando Alterio, dono da T4F, empresa que não prestou assistência à família (Crédito: Bruno Poletti)

Após oferecer somente apoio psicológico aos familiares e não financeiros para viagem dos mesmos ao Rio nem para o translado do corpo, os fãs da cantora fizeram uma arrecadação virtual e conseguiram a soma para ajudar o processo todo. A T4F é uma das principais produtoras de shows e festivais do País, com responsabilidade por Lollapalooza, Primavera Sound e pela turnê recente do Coldplay, entre outros.

Foi fundada e é conduzida pelo italiano Fernando Altério, que trabalhava no mercado financeiro até fundar a casa de shows Palace, em São Paulo, em 1982. Desde 1987, comanda a ex atuante em venda de ingressos e atual produtora de espetáculos.

Histórico e lições

Não é novidade no País que situações com grande acúmulo de público terminem com fatalidade.

Em 24 de setembro, São Paulo e Flamengo se enfrentaram na final da Copa do Brasil, na capital paulista. Como na turnê de Taylor Swift, a procura por ingressos foi muito maior do que a oferta. Torcedores se concentraram nos arredores do estádio do Morumbi durante a partida, entraram em choque com a polícia e um são-paulino foi morto, por disparo de “munição de impacto controlado” (segundo a PM), conhecida como “bean bag”.

Na decisão da Libertadores, em 4 de novembro, houve confrontos generalizados entre torcedores do Fluminense e do argentino Boca Juniors, no Rio de Janeiro.

No mesmo Maracanã dessa decisão, Brasil e Argentina jogaram pelas Eliminatórias da Copa do Mundo na terça, 21, e briga de torcedores com envolvimento da polícia fez com que a partida quase não fosse realizada.

As três situações tiveram problemas relacionados à segurança pública e não especificamente sobre direitos dos consumidores. Mas mesmo que não seja conhecido caso grave relacionado à falta de acesso a água em estádio de futebol, a nova regulamentação também é válida para eventos esportivos. “Nunca houve esse tipo de problema em jogos de futebol. Mas a regra vale para estádios também, pois essas condições climáticas extremas vieram para ficar”, diz Damous.

“Espero que a tragédia tenha servido de lição aos envolvidos.”
Wadih Damous, Secretário Nacional do Consumidor

A morte de Ana Clara segue em apuração. Laudo pericial sobre a causa está previsto para ser concluído em um mês. Até lá, a Secretaria Nacional do Consumidor diz seguir o procedimento para que o caso seja levado a processo administrativo, quando é definida a responsabilidade com objetivo de efetivar punições previstas em lei.

“Que todos os envolvidos em eventos desse porte tenham como lição o que aconteceu, sobre o que deve e não deve ser feito. Espero que a tragédia tenha servido pelo menos para isso”, diz Damous.

Quem se sentir lesado em situações do tipo, deve fazer denúncia aos canais de defesa do consumidor, como os Procons estaduais, ou na plataforma Consumidor.gov.