Comportamento

Como a indústria da moda busca soluções para o calor extremo

Com termômetros em ascensão, universidades e startups criam tecidos que refletem luz solar, coletes que resfriam e até ar-condicionado corporal. Mais palpáveis, fibras naturais e antigas como o linho amenizam calor e estilistas vão além ao relacionar indústria com crise climática

Crédito:  Sílvia Zamboni

Naturais: fibras como algodão, seda e linho, e corantes de cascas, ervas e sementes compõem produção da Flávia Aranha, em São Paulo (Crédito: Sílvia Zamboni)

Por Ana Mosquera

RESUMO

• Indústria busca soluções tecnológica para criar roupas capazes de enfrentar temperaturas escaldantes
• Profissionais da moda questionam inovações  do setor que podem não ser ambientalmente corretas
• Pesquisadores chineses desenvolveram tecido que rebate 90% dos raios solares
• Há quem diga que, mais do que tecnologia, produção e consumo precisam é de bom senso

A frase “Não tenho nem roupa” já pode ser considerada o meme da estação. Com sensações térmicas que beiram os 60ºC em plena Primavera, entre as queixas sobre o calor extremo, está o modo de vestir. Soluções existem e, além das concessões habituais dos períodos mais quentes do ano, como pele aparente, há tecidos clássicos que amenizam a sensação térmica, como linho, algodão e seda.

Novas tramas também vêm sendo criadas ao redor do mundo: a Technique UK desenvolveu peças, como coletes, que absorvem e removem o calor por evaporação, enquanto a varejista UNIQLO criou um tecido especial capaz de deixar a pessoa mais seca e fresca ao longo do dia.

Dentro das universidades, pesquisadores ao redor do mundo desenvolvem tecnologias para aplacar as temperaturas mais altas que vêm atingindo o globo, sobretudo nos últimos meses.

Chineses desenvolveram tecidos que refletem até 90% dos raios solares, enquanto na Califórnia um dispositivo termoelétrico ajuda a regular a temperatura corporal. Ambas as inovações podem garantir uma redução de 10ºC com relação à temperatura ambiente.

O buraco, contudo, é mais embaixo, e, para além de imaginar soluções mirabolantes, é preciso repensar os impactos ambientais da indústria da moda.

Segundo o grupo ambientalista Stand.earth, ela é a responsável por 10% das emissões anuais de gás carbônico, e de acordo com a organização sem fins lucrativos Global Fashion Agenda, é a segunda mais poluente do mundo, atrás apenas da petrolífera.

“Sem contar nos resíduos têxteis, nos microplásticos, na quantidade de uso de água, no uso de produtos químicos, no desmatamento”, diz Lucius Vilar, professor de Projeto Têxtil do IED.

“Com os picos de calor, aparecem clientes novas à procura de roupas mais frescas, mas há uma questão política por trás, sobre qual é o nosso papel nesta crise”, diz a estilista Flavia Aranha.

É a cadeia do petróleo que abastece boa parte do mercado fast fashion, já que o poliéster (polietileno etileno ou PET) é um polímero termoplástico. “As fibras naturais como o algodão são pelo menos biodegradáveis. O poliéster que absorve o suor, em comparação, é feito de petróleo e pode levar décadas ou mais para se decompor”, diz Vilar.

“As roupas de plástico são como o saco plástico e a garrafa PET para a natureza”, diz a estilista Iara Wisnik.

Iara Wisnik, estilista: usar subprodutos da indústria petroquímica nunca foi opção. Para redução do impacto, roupas atemporais e tecidos sustentáveis que melhoram sensação térmica (Crédito:Divulgação)

“A fibra natural respira, independente da crise climática. Um país tropical não pode basear o vestuário no petróleo. Eu sempre achei insano que 95% dos uniformes sejam 100% poliéster. Não há bem-estar, além de a produção ser inadequada”, diz Flavia, que acaba de desenvolver uma linha de roupas para os colaboradores de uma pousada em Paraty (RJ).

Além das fibras, sobretudo linho, algodão e seda, o tingimento de suas peças também é natural. Entre os produtos que dão cor estão casca de romã e de cebola, urucum, erva mate e catuaba.

A origem dos tecidos é igualmente relevante para pensar uma moda sustentável, ela lembra, já que a própria produção de algodão está ligada à monocultura que desmata biomas e traz consequências em longo prazo. “Somos o País que mais utiliza agrotóxicos na cadeia do algodão e, daqui a alguns anos, teremos solos inférteis em decorrência disso.”

Inovadora: Technique UK traz tecnologia de absorção e remoção do calor. Homem testa roupa, ao fundo (Crédito:Divulgação)

Outro alerta atrelado ao mercado fast fashion é sobre o consumo excessivo. Segundo o mesmo levantamento da organização Global Fashion, 92 milhões de toneladas de resíduos têxteis foram descartados no mundo em anos recentes.

A oscilação cada vez mais curta entre as tendências é que movimenta a geração de lixo. “Priorizar qualidade e conforto é o foco, mas também criar peças atemporais, que não durem apenas por uma estação”, diz Iara, que ainda trabalha com tecidos brasileiros e se atenta aos selos de sustentabilidade.

Ela se dedica à produção de roupas com a tríade citada, mas que também contam com outras características que amenizam a sensação térmica. “O espaço entre a roupa e a pele gera um frescor. É o que chamamos de microclima, que isola um pouco o corpo da área externa. Além disso, o algodão, a linha e a seda têm uma rápida absorção de água. Os recortes, as partes vazadas e as costas abertas também ajudam na ventilação.”

Prestes a completar dez anos de marca, mostra-se assustada com o aumento da temperatura atual, e também vê diversos prejuízos associados à indústria convencional. “Além de tudo, há a questão da exploração humana na produção de marcas enormes. É preciso pensar no respeito ao ser humano e ao meio ambiente.”

Flavia Aranha, estilista (Crédito:Divulgação)

“A fibra natural respira, independente da crise climática. Um país tropical não pode basear o vestuário no petróleo. É insano que 95% dos uniformes sejam 100% poliéster.”
Flavia Aranha, estilista

Renkun Chen, da Universidade da Califórnia (à esq.): aparelho reduz temperatura do organismo em até 10º (Crédito:David Baillot)

Novas tecnologias

Dentro de startups ou de laboratórios universitários ao redor do mundo, pesquisadores desenvolvem inovações que prometem resfriar o organismo, de tecidos especiais a dispositivos que funcionam como ar-condicionado corporal.

Enquanto o algodão branco já é responsável por refletir 60% da luz solar, pesquisadores da Universidade de Ciência e Tecnologia de Huazhong, na China, acabam de desenvolver tecidos capazes de rebater 90% dos raios solares. As peças resfriam 5ºC durante o dia e 10ºC à noite, de acordo com estudo publicado na revista Science.

Sob a roupa: colete com gelo diminui calor e umidade, de atletas a socorristas (acima). À venda: linha Airsim, da UNIQLO, promete secura e frescor o dia todo (abaixo) (Crédito:Divulgação)
(Divulgação)

Além dos cidadãos comuns, são os atletas os alvos dos protótipos que pretendem combater o estresse térmico. O fenômeno se dá quando a temperatura do indivíduo ultrapassa os 36,5ºC e não consegue retroceder.

Segundo pesquisa do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Lasa/UFRJ), passa de 38 milhões o número de brasileiros expostos à condição.

Dores de cabeça e cansaço são sintomas básicos e os que possuem doenças pré-existentes correm risco de morte.

A inovação tem seu valor, mas precisa caminhar com a mudança de paradigma. “A questão é muito mais desacelerarmos do que continuar produzindo, mesmo que com tecnologia, para que se passe menos calor”, diz Marcio Banfi, stylist e professor no curso de Moda da Faculdade Santa Marcelina.