A ameaça Milei: novo presidente vai tirar a Argentina do buraco? Entenda
Os desafios são gigantescos e o tempo é escasso para o novo presidente argentino. Com promessas mirabolantes para derrubar a inflação, falta de reservas internacionais e pobreza em alta, o economista libertário terá que concretizar propostas irreais. Apesar da sensação de alívio e otimismo moderado após o pleito, o risco é a frustração piorar
Por Marcos Strecker e Denise Mirás
RESUMO
• Populista, “exótico”, novo presidente da Argentina promete jogar por terra a estrutura econômica do País
• Com margem de vitória acachapante, a eleição de Milei mostra a repulsa ao peronismo
• Governo será união da centro-direita, de líderes que se aliaram no segundo turno para derrotar o kirchnerismo
• Adesão do ex-presidente Mauricio Macri e de Patricia Bullrich será fundamental para a governabilidade
• Milei promete privatizar, mais uma vez, a petrolífera YPF, a maior companhia do país
• Diante do virtual colapso na economia, seu governo de fato já começou, antes da posse do dia 10
Há anos amargando uma agonizante crise econômica, a Argentina optou por uma mudança profunda no último 19, ao dar o cartão vermelho para o peronismo e eleger Javier Milei à Presidência. Ele venceu o atual ministro da Economia, Sergio Massa, por mais de 11 pontos percentuais (55,7% a 44,3%), uma margem inédita desde que os militares deixaram a Casa Rosada em 1983. Mas o país deu um salto no escuro ao escolher para essa transformação um economista exótico, que se define como libertário e espelha-se em Donald Trump. Sem experiência política, Milei foi catapultado ao poder por participações histriônicas em programas de TV, desafiando as “castas” políticas e prometendo jogar por terra os pilares econômicos da Argentina, como o peso e o próprio Banco Central.
Diz que voltará a tornar seu país uma potência econômica. É um roteiro conhecido para os populistas de direita, que chegam ao poder demonizando as elites e deixam um rastro destruidor após enfraquecer a democracia e frustrar a população com promessas inexequíveis. É o temor em relação ao delicado cenário do país vizinho.
Não havia alternativa, optaram os argentinos. Milei, da coalizão A Liberdade Avança, ganhou a confiança da população ao prometer tornar a Argentina “grande de novo”. “Hoje começa o fim da decadência argentina e se inicia a reconstrução”, pronunciou em seu discurso de vitória, após o triunfo acachapante – os institutos cravavam um empate técnico, que afinal não se realizou.
Ele venceu em 20 das 23 províncias, cravando uma margem enorme nas estratégicas Córdoba (74% a 26%), Mendoza (71% a 29%) e Santa Fé (62,9% a 37,1%). Milei perdeu na província de Buenos Aires, mas por uma margem mínima (49,3% contra 50,7%), o que não deixa de ser uma vitória, já que se trata de uma região de forte influência do peronismo.
“Foi assustadora a margem de vitória. A insatisfação dos argentinos com o peronismo e principalmente com sua vertente, o kirchnerismo, atingiu o ápice com o presidente Alberto Fernández”, diz Flavia Loss, professora de Relações Internacionais da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
Esse resultado, no entanto, só foi possível porque Milei moderou seu discurso no segundo turno, conquistando o apoio de políticos de centro, que agora devem ter participação em seu governo.
É o caso especialmente do ex-presidente Mauricio Macri e sua aliada Patricia Bullrich, que foi a terceira votada no primeiro turno. Ambos anunciaram apoio a Milei no segundo turno, o que acelerou a união da centro-direita para formar uma frente antikirchnerista, ainda que Milei permaneça rejeitado por boa parte dos moderados.
A adesão de Macri será fundamental para a governabilidade. Milei não tem o suporte de nenhum governador e terá uma base muito pequena no Congresso – apenas 38 dos 257 deputados e 7 dos 72 senadores.
A aliança com Macri e Patricia pode acrescentar a esse grupo mais 93 deputados e 24 senadores. Porém, isso não garante uma maioria parlamentar, ainda que possa abrir caminho para a aprovação de pautas controversas – e o peronismo é conhecido por bloquear projetos fora de sua órbita política.
Mas Milei é uma ameça? “Ele não vai minar a democracia como Bolsonaro fez no Brasil. Lá há mais travas, o peronismo é muito forte. O aliado Macri já sabe o que precisa fazer para implantar medidas liberais que ele mesmo tentou. Milei precisa dele. Esse será um anteparo que no Brasil não tivemos: alguém para aparar as locuras”, diz Flavia Loss.
Depois de uma campanha feroz, de fato, Milei já passou a sinalizar que vai agir com mais moderação. Na campanha, havia gravado um vídeo simulando esmagar uma maquete do Banco Central. Prometeu “exterminar a inflação”. A motosserra, para cortar o Estado, era um dos seus símbolos.
Lançou insultos e críticas até ao papa. Acusou-o de “representante do maligno na Terra”. Passado o calor da disputa, mudou de tom. Recebeu um telefonema de cerca de oito minutos do pontífice, que o parabenizou pela vitória. Em retribuição, convidou Francisco para visitar sua pátria natal, o que o religioso não faz desde que se tornou papa, há dez anos.
Isso aumenta a percepção de que Milei agirá com pragmatismo, afastando-se da figura agressiva e excêntrica que cultivou para ganhar popularidade. Tudo caricatura. Para moldar esse personagem, segundo uma aliada que foi sua “coach estética”, o economista adotou a cabeleira desgrenhada e o cavanhaque desproporcional – inspirado em Elvis Presley e no herói de HQs Wolverine. Ganhou o apelido de “El Loco”.
Mais moderado
Essa fúria selvagem já dá lugar à lógica. Além de trocar gentilezas com o papa, Milei teve um encontro “respeitoso e institucional” com o presidente Alberto Fernández, que havia sumido da campanha para não prejudicar o seu candidato.
• As soluções mágicas para a economia foram substituídas por um cronograma mais crível de transformação.
• Para debelar a inflação, Milei disse que levará até dois anos.
• Também já reconhece que o cenário do próximo ano é de recessão.
Seus aliados relativizam à boca pequena as propostas mais extravagantes, como a que libera o comércio de órgãos humanos. O nó da próxima gestão não será a pauta de costumes, da qual Milei se declara conservador (combate o aborto, por exemplo). Será a economia. É esse desafio que determinará se a sua administração representará uma mudança de fato, ou se ele vai naufragar como outros presidentes que tentaram reverter a irresponsabilidade fiscal e os subsídios clientelistas que ao longo dos anos quebraram o orçamento e estrangularam o crescimento.
O próprio Macri perdeu a reeleição porque não conseguiu traduzir essas reformas em uma percepção de benefícios concretos à população. Como atenuante, foi o único presidente não peronista que conseguiu terminar seu mandato após a redemocratização. Em 2001, Fernando De La Rúa, do União Cívica Radical, precisou fugir de helicóptero das multidões enfurecidas. Nos anos 1980, Raúl Alfonsín, da mesma legenda, entregou o poder meses antes de finalizar o mandato.
Foi a ideia de realizar reformas liberais que atraiu boa parte do establishment, além de personalidades internacionais como o escritor peruano Mario Vargas Llosa, apesar das esquisitices do candidato libertário e seu discurso demagógico.
“A Argentina é hoje um país fora do eixo, desconstituído há décadas de políticas econômicas razoáveis. Milei tem espaço para melhorar, mas não conseguirá transpor barreiras que prometeu, como fechar o Banco Central. Não fecha. Se fizer isso, perde um importante instrumento para diminuir a inflação. Se cumprir o que prometeu como personagem, vai colocar a Argentina em um buraco muito difícil de sair”, alerta a economista Juliana Inhasz, do Insper.
Os nomes aventados para a pasta da Economia já são uma demonstração de Realpolitik:
• Federico Sturzenegger (presidente do Banco Central entre 2015 e 2018),
• Luis Caputo (ex-ministro da Economia de Macri),
• Luciano Laspina (que foi assessor no Banco Central e apoiou Patricia Bullrich).
Se algum deles for confirmado, é sinal de que Milei vai procurar preencher o coração do governo com técnicos de credibilidade, formando na prática uma coalizão com Macri. Ainda há dúvidas a esse respeito.
Alguns dos aventados aos oito ministérios (um corte drástico em relação às atuais 18 pastas) não têm experiência administrativa e parecem atraídos mais pelo alinhamento ideológico e adesão pessoal. Entre os principais conselheiros de Milei estão sua irmã Karina e o jovem consultor político Santiago Caputo, considerado seu “guru”.
Os desafios gigantescos
Há muito ceticismo quanto à possibilidade de esse grupo suplantar os enormes obstáculos. “É uma tentativa, já que nada estava dando certo. No país, 40% da população está na linha da pobreza e precisa de benefícios sociais. A taxa de desemprego é até baixa, de 7%, mas os trabalhos são precários. E a inflação vai a 140%, 180%. Não fecha a conta no fim do mês”, reforça Flavia.
Os problemas ainda foram agravados porque Massa aumentou os subsídios a desempregados e aposentados para tentar vencer na reta final. Isso acabou reforçando o discurso de Milei: os gastos públicos desmedidos pioram a inflação, perpetuando o ciclo vicioso.
O novo presidente soube explorar esses erros do atual governo e reagiu à possibilidade de Massa, candidato derrotado, abandonar imediatamente o ministério da Economia. Afirmou que a manobra visava a transferir a responsabilidade da crise à nova gestão.
Mas Massa recuou e ambos concordaram com medidas emergenciais para auxiliar os exportadores, como a calibragem de uma taxa específica de câmbio (há mais de dez cotações, o que dá ideia da disfuncionalidade atual). O período pós-eleitoral, que teve um feriado, foi de expectativa moderadamente positiva, até mesmo de euforia. Em seguida, a Bolsa subiu mais de 20% e as ações da estatal YPF dispararam quase 40% em Nova York.
“Hoje começa o fim da decadência argentina e se inicia a reconstrução.”
Javier Milei, presidente eleito
A petrolífera YPF, a maior companhia do país, será um bom teste para as pretensões de Milei. Ela havia sido reestatizada por Cristina Kirchner em 2012, e o novo mandatário promete privatizá-la novamente.
Também anunciou que vai desestatizar “tudo o que for possível”, inclusive a TV pública.
Já a dolarização é uma promessa que poucos levam ao pé da letra. A própria Argentina teve uma experiência semelhante nos anos 1990, implantada pelo peronista Carlos Menem, quando havia a paridade entre o dólar e o peso.
Ainda que tenha ocorrido um sucesso efêmero, com queda da inflação e alta dos investimentos, essa medida entrou em colapso com crises internacionais.
Outros países menores, como Equador e San Salvador, também tiveram grandes problemas ao adotar o dólar. E a Argentina não tem reservas internacionais suficientes para atrelar sua economia à moeda americana.
Milei terá dificuldades igualmente para cumprir a promessa de desligar a Argentina do Mercosul. A posição em relação a esse bloco econômico e à política externa serão fundamentais para o novo presidente.
Ele já anunciou que visitará EUA e Israel antes da posse. Mas deve reavaliar a retórica contra a China e o Brasil, que são os maiores parceiros comerciais da Argentina e cujos governos receberam os maiores ataques na campanha. Milei chegou a qualificar o presidente Lula de “comunista raivoso” e ameaçou romper relações com o regime chinês. O governo de Pequim reagiu e chegou a advertir que cortar laços seria um “grave erro”. Porém, acostumado a lidar com paciência confuciana a essas provocações, parabenizou Milei e já declarou que está pronto para trabalhar em conjunto.
Lula também reagiu de forma protocolar elogiando “o povo argentino e o processo eleitoral”, mas evitou citar o ultraliberal. Não vai à posse em Buenos Aires, pois ela será festejada com uma caravana bolsonarista.
Mercosul e Brics
Para Lula, especialmente, a vitória de Milei é uma reviravolta e deve redefinir sua estratégia no exterior.
O Mercosul agora terá três governos de direita (Argentina, Paraguai e Uruguai), o que deve aumentar a pressão para que os países-membros tenham liberdade para fechar acordos bilaterais fora do bloco.
O aguardado acordo de livre-comércio com a União Europeia pode novamente ir para a gaveta, e o discurso ideológico-social e integracionista dará lugar a uma visão puramente comercial.
Lula patrocinou a entrada da Argentina nos BRICS, o que deveria se efetivar em 2024, mas Milei não mostra nenhum entusiasmo por esse grupo no qual a China exerce muita influência.
Pragmaticamente, porém, o argentino não deve recusar a adesão, pois pode se beneficiar de investimentos do Banco dos BRICS. Por outro lado, certamente Milei se afastará de grupos de coloração fortemente esquerdista, como o Unasul, que era o xodó de Lula e do peronismo e serviu de palco para a “reabilitação” do venezuelano Nicolás Maduro em Buenos Aires, em maio último.
Milei ressaltou em seu discurso de posse que tem muita pressa. Diante do virtual colapso na economia, seu governo de fato já começou, antecipando-se à posse, que será no próximo dia 10.
“Ao Brasil, resta torcer para dar certo. Se a Argentina melhorar, a gente também tem mais fôlego para 2024, que não deverá ser um ano tão bom. O Brasil tem desafios e se a Argentina der errado, isso será um obstáculo a mais. Espero que o presidente Lula tenha discernimento e deixe a rixa política de lado. Deve estender a mão para não afundar junto com a Argentina”, diz Juliana Inhasz.
Quanto aos argentinos, tudo o que desejam é não acompanhar mais uma grande promessa se transformar em frustração.
Populismo de direita comemora
Donald Trump e Jair Bolsonaro reagiram eufóricos à vitória do ultraliberal na Argentina
A direita radical, que sonha com a volta de Donald Trump à Casa Branca em 2024, recebeu um presente inesperado com a vitória acachapante de Javier Milei. O resultado enterra na prática a chamada “onda rosa” na América Latina, que foi celebrada pela esquerda com a vitória de Lula no ano passado, e mostra que o populismo conservador ainda respira – e cresce.
“Estou muito orgulhoso de você. Você vai mudar o seu país e realmente tornar a Argentina grande novamente.”
Donald Trump nas redes sociais.
No dia seguinte ao pleito, Jair Bolsonaro conversou com o novo mandatário argentino e prometeu comparecer à posse. Deve levar Michelle Bolsonaro, seu filho Eduardo e mais uma comitiva a Buenos Aires, no dia 10.
Com as derrotas sequenciais de Trump e Bolsonaro, seguidas de mais um fracasso de Marine Le Pen na França, em 2022, a extrema-direita tinha poucas estrelas no cenário externo. Uma delas é Viktor Orbán, premiê da Hungria.
Na Itália, Giorgia Meloni conseguiu se tornar primeira-ministra no ano passado, mas irritou os correligionários ao se aliar a outros governos europeus e moderar suas propostas mais radicais, especialmente contra os imigrantes.
Os ultradireitistas também estiveram muito perto de tomar o governo na Espanha e quase chegaram lá na Polônia, o que causou calafrios na União Europeia.
Estão presentes em governos nórdicos e em alta na Alemanha. Se essa presença internacional é um sintoma do mal-estar com as democracias, agravado por conflitos na Ucrânia e em Israel, poucos acreditam que o populismo extremado de direita fincará raízes na Argentina. Há muitas promessas a serem cumpridas no país vizinho, e Milei precisará de mágica para transformar o discurso salvacionista em realizações. Nenhum colega conseguiu.