Capa

Calor extremo: entenda o que faz o Brasil ‘derreter’ e saiba se proteger

Mais de 117 milhões de brasileiros entraram em alerta térmico máximo. A tragédia multiplicou por 100 a chance de eventos extremos — e a previsão é de novas ondas nos próximos meses. Essa é a nova realidade climática mundial

Crédito: NASA

Aquecimento global: a saúde não sente apenas na pele (Crédito: NASA)

Por Luiz Cesar Pimentel

RESUMO

• A Terra passa por seu período mais quente em 125 mil anos
• Brasil, também sujeito a efeitos climáticos locais, é uma dos países que mais sofrem com o calor

• O efeito do clima escaldante sobre o corpo vai além da pele e da sede: há risco de morte
• Saúde mental também é afetada e cientistas ainda pesquisam as causas
• Alimentação e mudança de hábitos podem minimizar os danos
• Variação brusca do clima é prejudicial também para a economia

No futuro, a ciência estudará a sequência de erros que nos trouxe ao tórrido 2023. Com atenção especial, estudarão a atual Primavera brasileira, recordista com três ondas de calor intenso. O fenômeno colocou em alerta máximo climático 2707 cidades, localizadas principalmente na faixa mais central e populosa do País.

A semana foi o ápice da curva de aquecimento – temperaturas ao menos 5ºC acima da média esperada, sensações térmicas próximas de 60ºC e preocupação generalizada com os efeitos sobre a saúde. É o período mais quente da Terra em 125 mil anos.

“A semana mudará a estatística climática nacional”, resume a meteorologista Estael Sias, da MetSul. Junto ao empilhamento de recordes, é preciso conhecer os efeitos do ardor climático sobre o corpo humano e se proteger, uma vez que a perspectiva é de que ondas abrasadoras serão o novo normal.

Paulistanos buscaram refresco, como no Sesc Belenzinho (Crédito:Cris Faga / Parceiro / Agência O Globo)

O crescimento das temperaturas em ciclos não é fato novo. O Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) fez relatório sobre as últimas seis décadas no País e os dados apontam aumento de 642%, relativo aos períodos de cinco dias sequenciais de calor acima do esperado.

Se entre 1961 e 1990 o País registrava sete dias desses por ano, na década de 1991 a 2000 o número chegou a 20. Dobrou para 40 entre 2001 e 2010 e alcançou 52, em média, entre 2011 e 2020.

“Na última década analisada, todas as regiões do Brasil registraram aquecimento superior a 1,5ºC, ou seja, superior ao que requer o Acordo de Paris”, explicou o pesquisador do Inpe Lincoln Alves.

O documento é um compromisso assumido globalmente, em 2015, que propôs redução das emissões de gases de efeito estufa para que a temperatura média do planeta não ultrapassasse 1,5ºC, na comparação com o período pré-Revolução Industrial (1850-1900).

A Organização Meteorológica Mundial anunciou durante a semana que os gases do efeito estufa, responsáveis pelo aquecimento global, atingiram níveis sem precedentes em 2022.

(Agência Enquadrar)
(Rubens Cavallari)
Calor em São Paulo atingiu segunda maior temperatura em 80 anos de registro na cidade e não poupou Zona Sul, avenida Paulista e nem Zona Oeste (Crédito:Divulgação)

Tantos resultados inéditos levaram a mais um — o de consumo nacional de energia elétrica. A semana marcou a primeira vez na história do SIN (Sistema Interligado Nacional) em que a carga superou a marca de 100.000 MW (megawatts), devido ao uso de eletrodomésticos como ventiladores, aparelhos de ar-condicionado e refrigeração.

O recente relatório da empresa de pesquisa Ipsos, O que Preocupa o Mundo, aponta que no último ano a preocupação com “mudança climática” apresentou o maior crescimento entre os brasileiros, pulando de 4% em outubro de 2022 para 17% no mês passado.

“O brasileiro tem sentido na pele os reflexos desses problemas: recordes de altas temperaturas no fim do inverno; oscilações térmicas que chegam a bater variações de 20°C de um dia para outro; a seca dos rios Amazonas e Negro, que atingiram o menor volume de água da história e já afetam 633 mil pessoas na região”, diz Marcos Calliari, CEO da Ipsos.

O Brasil não sofre sozinho com os efeitos de aumento das temperaturas. O Climate Central, grupo de cientistas que pesquisam mudanças climáticas, publicou relatório com título que dá a dimensão do problema: O período de 12 meses mais quente já registrado na história.

Dados levantados em 175 países mostram que o planeta atingiu elevação média de 1,32ºC. Na lista das maiores economias do mundo, o G20, nove nações tiveram ondas de calor severas entre maio e outubro. O Brasil aparece como sétimo mais afetado, atrás de Arábia Saudita, México, Indonésia, Índia, Itália e Japão.

Matemática do desastre

No caso brasileiro, a atual maré de calor é resultado da combinação do aquecimento dos oceanos junto às alterações na distribuição das temperaturas da água, causada pelo El Niño. Há ainda as já conhecidas mudanças climáticas e um outro fenômeno identificado como Cúpula de Calor.

É uma bolha de ar muito quente que se forma sobre uma região, provocando uma alta pressão atmosférica. Os raios solares não conseguem absorver a umidade necessária para que se formem nuvens, impedindo as chuvas que dissipariam o calor. “É preciso aprimorar as políticas de gestão dos solos e mapeamento de áreas vulneráveis. Temos ainda de implementar as políticas de mitigação, aumentar investimentos em prevenção, aprimorar mecanismos de dados, monitorando os efeitos das mudanças climáticas”, conclui a ambientalista Helena Margarido.

Todos os alertas indicam que é a vez de o brasileiro buscar segurança no período tórrido. Na Europa, em 2022, foram 61.672 falecimentos atribuídos às ondas de calor. Nos EUA, mais de 700 pessoas morreram anualmente de causas relacionadas às altas temperaturas até 2018. A revista científica Lancet publicou, no relatório Countdown, o aumento de 85% nos óbitos de pessoas acima de 65 anos desde os anos 1990, e projeta que o índice de fatalidades causadas pelo calor quintuplicarão até 2050.

Por mais que o ser humano seja capaz de se adaptar, a manutenção de calor constante é peça-chave para que o organismo não entre em colapso. Quando a temperatura ambiente está acima da corporal em repouso, é ativado nosso único método de combate ao superaquecimento, o suor. O processo de resfriamento evaporativo da pele úmida leva junto o excesso de calor, resfriando também o sangue que circula, o que causa redução no aquecimento do corpo.

Só que a matemática não é tão exata.

• Se aumentada a temperatura dos tecidos profundos do corpo, o fluxo sanguíneo para a pele aumenta, sobrecarregando o coração. A cada 0,5°C de subida em nosso termômetro central, o batimento cardíaco sobe cerca de dez bombeamentos por minuto, acelerando o pulso e causando tontura.

• Se a evolução superar 40°C, a transpiração tende a colapsar e os órgãos começam a se desligar. Bebês e crianças, que perdem líquido mais facilmente, e idosos, que produzem menos suor por glândula, são os mais vulneráveis.

• A sequência de falências, chamada de insolação, causa também comprometimento cognitivo e as vítimas podem ter alucinações ou convulsões.

“Não se pode deixar os idosos sozinhos, já que costumam ter menor sensação de sede e, como frequentemente usam diuréticos, podem ficar desidratados rapidamente”, diz Marco Tulio Cintra, presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia. “Água atua como um remédio preventivo para os mais velhos. É obrigatório em temperaturas extremas.”

Vale também para sólidos vegetais ricos em líquidos frutas, legumes e verduras. “Evite alimentos com excesso de carboidratos refinados, como açúcares, que deixam os níveis de retenção de líquidos menores”, diz a nutricionista Bianca Tarantino, da Saúde 4P.

Os rins costumam ser os primeiros a sofrer, pois as toxinas acumuladas não são excretadas e o corpo sob insolação se torna tóxico.

Camilo Mora, professor de geografia da Universidade do Havaí, chegou a listar em estudo 27 maneiras diferentes de o corpo sucumbir ao superaquecimento.

“Morrer de insolação às vezes é melhor do que sobreviver. O dano causado aos órgãos tem consequências de longo prazo. Seus rins são atingidos, seu intestino é destruído e você provavelmente ficará em diálise pelo resto da vida.”
Camilo Mora, professor da Universidade do Havaí

Pulmões também são seriamente afetados de acordo com a temperatura ambiente. Nos meses ou dias mais quentes, a poluição por ozônio no nível da superfície tende a crescer, já que a substância tóxica prolifera no ar quente e estagnado. Ao ser inalado, ataca de maneira agressiva o tecido pulmonar e a reação química decorrente do contato é semelhante a uma queimadura solar nos órgãos respiratórios.

Estresse generalizado

A saúde mental também é afetada por mudança brusca no ambiente. Estudo publicado na Nature Climate Change apontou que, para cada subida de 1ºC na temperatura média mensal nos EUA, a taxa de suicídios cresceu na mesma proporção.

Os índices digitais também sugerem a relação, já que no X (ex-Twitter), postagens de ódio aumentam junto com as ondas de calor. Embora estabelecido que ele afeta a função cerebral, o mecanismo científico não é totalmente compreendido. Cientistas sugerem inter-relação de fatores que vão de sono de má qualidade ao prejuízo na função de neurotransmissores e hormônios responsáveis pelo humor.

A variação brusca do clima é prejudicial também para a economia. A revista Science Advances sugere que o calor extremo custou à economia global cerca de US$ 29 trilhões entre 1992 e 2013.

A OIT (Organização Internacional do Trabalho) complementa, projetando prejuízo de U$ 2,4 trilhões em 2030, caso mantidos os estresses térmicos.

Esses têm consequências no cultivo e colheita de alimentos, na infraestrutura — concreto, asfalto e aço são afetados — e até na produtividade. A OIT sugere que, quando termômetros atingem 33ºC, os trabalhadores em atividades de intensidade moderada perdem 50% da capacidade produtiva.

“O Brasil é um dos países mais vulneráveis às oscilações. E está acelerando em direção à inviabilização da sua agricultura”
Luiz Marques, professor de história da Unicamp.

Seca acima da esperada: falta de água na Amazônia e aumento de queimadas no Pantanal (abaixo) (Crédito:Bruno Kelly)
(Rogerio Florentino)

Os efeitos já começaram a ser sentidos. Em outubro, os aparelhos de ar-condicionado ficaram 6% mais caros.

Sobre alimentos não foi detectada inflação, mas como a perda começa na colheita e cresce, tanto no transporte quanto no ponto de venda de produtos perecíveis, o prejuízo reflete em aumento de valor para o consumidor. Na maioria das vezes, ocorre semanas ou meses após o evento climático.

O que a maioria da população pode fazer é cuidar de proteger as respectivas residências, saúde, e também das pessoas próximas. A média nacional de lares com ar condicionado no Brasil é de 17% – superior aos 3% da Alemanha e 5% da França, mas bem menos do que os 88% dos EUA.

Tendo ou não climatizador, o principal movimento é bloquear a entrada de luz solar, seja com cortinas ou com plantas. Se a temperatura exterior estiver abaixo da interior, é importante abrir todas as janelas e portas, para que o ar frio circule e domine o ambiente. Ventiladores de teto com pás grandes são boas opções, já que empurram calor em direção ao teto e facilitam a evaporação do suor.

Se possui animais de estimação, o cuidado deve aumentar. Cães, por exemplo, podem ficar superaquecidos em 10 minutos. Os sinais de preocupação incluem vermelhidão ao redor dos olhos e escurecimento das gengivas e língua, além de respiração ofegante e salivação excessiva. Hora do passeio é determinante. Vale a regra popular: se a calçada estiver quente para pés descalços, estará igualmente incômoda para as patas do animal.

São regras que valem de maneira longeva, já que a Terra nunca esteve tão quente nos últimos 125 mil anos, 2023 tende a ser o campeão em temperaturas altas na história e a previsão é de que as ondas térmicas sigam até pelo menos abril ou maio de 2024, quando é estimado que o El Niño arrefeça e contribua para um planeta mais confortável.

“Não há mais espaço para negacionismo. As futuras gerações merecem viver em um planeta melhor”, conclui Carlos Magno do Nascimento, meteorologista e sócio-fundador do Climate Change Channel.

Erosão e aridez no Nordeste: paisagens de ficção científica, como em Gilbués (PI) (Crédito:Nelson Almeida)

Estudo revela o primeiro deserto brasileiro

A falta de chuvas no Norte da Bahia criou uma área que, pela primeira vez na história do monitoramento, pode ser classificada como similar a desértica.

A revelação é do estudo feito pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) e pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Na região, predomina o clima semi-árido. Entretanto, desde que se iniciou monitoramento climático, é a primeira vez que foram encontradas áreas de clima com essas características.

A diferença é quantificada pelo grau de secura. O clima árido, com baixa umidade, é considerado desértico. O cálculo considera a evaporação potencial e a média de chuvas no intervalo de 30 anos.

Gilbués, no Piauí (a 765 km de Teresina), vive o maior processo de desertificação do País. A erosão crescente no solo seco foi acelerada pelo desmatamento e as mudanças climáticas. Ocupa uma área superior à da cidade do Rio de Janeiro.

Colaboraram Alan Rodrigues e Mirela Luiz