Brasil

Síntese da ‘paulada’ de Lula em Haddad: o velho PT venceu

Na briga entre a ala ideológica e a ala pragmática do governo, Lula endossa críticas de Gleisi Hoffmann à política econômica de Fernando Haddad e desautoriza o titular da economia, fiador da estabilidade econômica de sua gestão

Crédito: Rafael Vieira

Gleisi Hoffmann: dirigente está à esquerda da política econômica do Ministério da Fazenda (Crédito: Rafael Vieira)

Por Gabriela Rölke

RESUMO

• Em sua sanha desenvolvimentista, Lula avisa que não vai perseguir déficit zero, importante para credibilidade
• O recado é para o ministro Fernando Haddad, fiador da estabilidade econômica e interlocutor com o mercado
• Lula coloca a tropa do velho PT – Gleisi Hoffmann, Rui Costa – para minar o ministro da Fazenda
• Atitude gera desgaste entre a militância e revela preocupação do presidente com o fortalecimento de Haddad para 2026
• Lula usa a tática de deixar brigar para enfraquecer, mas, dono dos votos do partido, é ele quem arbitra
• O problema é que ano que vem tem eleições municipais e as divergências internas já estão nas campanhas

 

O desempenho de um ministro da Fazenda costuma ser decisivo para o sucesso ou o fracasso de um governo. Titular da pasta no governo Lula 3, Fernando Haddad vem conseguindo importantes avanços na área, e é visto como fiador da estabilidade econômica. Conseguiu aprovar no Congresso o novo arcabouço fiscal, se encaminha para a aprovação da tão necessária Reforma Tributária, e defende zerar o déficit primário em 2024. Mas tem sido alvo de fogo amigo dentro do próprio partido, o PT, que segue no velho dilema entre a gastança tão característica da sigla e medidas de responsabilidade fiscal, nem sempre seguidas por seus filiados.

A oposição mais vocal a Haddad é da presidente do partido, deputada Gleisi Hoffmann, e do ministro da Casa Civil, Rui Costa. Os dois contam com o apoio do presidente, que já sinalizou que deve flexibilizar a meta fiscal defendida por Haddad. Ou seja, o velho PT, que sempre faz o que Lula manda, acabou derrotando os petistas mais moderados, que pouca força têm.


Rui Costa: na coordenação do PAC, ministro é contra redução de investimentos (Crédito:Rafael Vieira)

“Para quem está na Fazenda, dinheiro bom é dinheiro no Tesouro. Para quem está na presidência, dinheiro bom é dinheiro transformado em obras”, disse Lula, num recado a Haddad. “O objetivo é a gente criar emprego neste País”, reafirmou. “Se o dinheiro estiver circulando e gerando emprego, é tudo que um político quer, é tudo que o presidente deseja.”

O movimento fragilizou o chefe da equipe econômica, que vinha fazendo um esforço hercúleo para mostrar que a gestão do petista está comprometida em equilibrar as contas públicas. Até então, o empresariado e os bancos não tinham clareza sobre se Lula manteria ou não o foco na responsabilidade fiscal, que foi a marca do seu primeiro mandato. E quando precisou “baixar a bola” do ministro da Fazenda, Lula lançou mão de Gleisi, que lidera a corrente majoritária no partido, a Construindo um Novo Brasil (CNB), e que também é integrada por Rui Costa.

Como coordenador do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e um dos principais ministros do petista, Costa é um dos maiores interessados em que não ocorra redução nos investimentos do governo, especialmente em infraestrutura.

Zeca Dirceu, líder da bancada do PT na Câmara (Crédito:Robson Mafra)

“Gleisi é deputada e presidente do partido. Vejo com respeito e naturalidade suas posições.”
Zeca Dirceu, líder da bancada do PT na Câmara

Lindbergh Farias, deputado federal (Crédito:Waldemir Barreto)

“O orçamento precisa ser uma peça realista. Não há razão para manter previsão irreal de déficit zero” Lindbergh Farias, deputado federal

Não se trata de uma guerra aberta entre correntes partidárias, já que, embora Gleisi venha assumindo publicamente posições mais à esquerda na pauta econômica, ela, Costa, Lula e Haddad pertencem à CNB. Mas as divergências que marcam a busca por espaço dentro do governo são as mesmas que são registradas dentro da cúpula partidária.

Vísceras do partido

E é fato que o posicionamento da presidente do partido vem provocando desgastes não só no governo, mas se reproduzem entre a militância. Dirigentes petistas que fazem parte da CNB também ficaram melindrados com o empenho de Gleisi para emplacar no Ministério do Desenvolvimento Agrário um aliado seu, Paulo Teixeira, que pertence à Resistência Socialista, a segunda maior corrente da legenda.

Ao todo, 38 dos 68 deputados do partido pertencem à CNB. Líder da bancada do PT na Câmara e integrante da corrente majoritária, Zeca Dirceu minimiza os desgastes causados pelas críticas de Gleisi à política econômica do governo e tem dito que vê com respeito e naturalidade as manifestações da colega.

Por outro lado, o deputado Washington Quaquá (RJ) chegou a dizer que o PT “não pode ser um partido de oposição ao governo”. Como se já não bastassem os petardos de Gleisi contra Haddad, a meta fiscal defendida pelo Ministério da Fazenda acaba de levar mais um tiro, desta vez disparado pelo deputado Lindbergh Farias (RJ), que no início da semana apresentou duas emendas ao projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2024 com o objetivo de alterar a meta de déficit zero das contas públicas. Uma das emendas apresentadas pelo parlamentar, que é namorado de Gleisi, estabelece um déficit de 0,75%, e a outra, de 1%.

Guilherme Boulos (PSOL): apoio do Palácio do Planalto na disputa pela prefeitura de São Paulo (Crédito:Roberto Casimiro)

Avalizado pelo Palácio do Planalto, o fogo amigo contra Haddad pode ter sido uma reação de Lula ao fortalecimento do ministro, que vinha se cacifando para a sucessão em 2026. Não seria a primeira vez que o presidente faz chegar a aliados que por acaso sonhem com a sua cadeira que é ele quem dá a última palavra.

Parece ter sido assim também com Flávio Dino (PSB), o titular da Justiça, cujo protagonismo começou a incomodar o presidente. O mesmo aconteceu com o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB), que, embora tenha sido agraciado com um ministério, a esvaziada pasta do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, tem sido posto de escanteio no governo.

A movimentação do vice, que recentemente declarou apoio à deputada Tabata Amaral (PSB) para a Prefeitura de São Paulo, revela que ele sentiu o golpe. Ao apontar a correligionária como “a verdadeira mudança” para a capital paulista, deixou claro que diverge de Lula, que vai apoiar a candidatura de Guilherme Boulos (PSOL).

Como bater e assoprar é da natureza do presidente Lula, seu entorno propõe um afago a Haddad com a indicação de sua mulher, a professora e pesquisadora Ana Estela Haddad, para a vaga de vice na chapa do líder dos trabalhadores sem-teto (MTST).

Ana Estela: cotada como vice de Boulos para compensar petardos de Lula em Haddad

Dois PTs?

Ainda sobre a queda de braço entre Gleisi e o ministro da Fazenda, Lula já havia tomado partido em outra ocasião, mas em favor de Haddad: no balanço dos seus cem primeiros dias de governo, no início de abril, o presidente elogiou publicamente o trabalho do auxiliar, que havia sido criticado pela presidente do PT por defender a volta da cobrança de impostos federais sobre combustíveis.

Autor do livro “PT, uma história”, o sociólogo Celso Rocha de Barros avalia que não há um grande “racha ideológico” entre os dois. “Não se trata de dois PTs em disputa, mas sim do papel de cada um no jogo. Haddad é o responsável pela economia, por viabilizar a reforma tributária, por acalmar o mercado; esse é o papel dele”, explica. “Já a Gleisi, como presidente do PT, tem o papel de tentar puxar o governo um pouco mais para a esquerda, em um governo ideologicamente heterogêneo, que é bem maior do que o PT.”

É inegável, no entanto, que manter em seu entorno quadros que rivalizam entre si é típico do presidente. “Ele deixa brigar, e quando vê que é necessário tomar uma decisão, ele arbitra”, diz. No primeiro mandato do petista, o conflito se dava entre o então ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, e Antonio Palocci, na época à frente do Ministério da Fazenda.

A palavra final, de qualquer forma, segue sendo a do presidente, inclusive dentro do PT. “Desde os anos 1980, Lula dizia que quem tem votos é ele, e agora é um pouco assim também: quem tem voto? Quem ganha e eleição? Então é isso, a diferença de tamanho entre o Lula e o PT hoje é muito grande, ele é bem maior que o partido.”

O sociólogo pontua, entretanto, que a forma como Lula conduziu a questão da meta fiscal, desautorizando seu ministro da Fazenda, demonstrou “falta de competência política”. “O fundamental nessa história não é se a meta é zero ou 0,5%, o Brasil não vai quebrar por causa disso”, diz. “Mas se Lula realmente quer flexibilizar esse índice, Haddad teria que ser o agente desse processo. Não dá para ficar numa situação em que o titular da Fazenda, visto como fiador da estabilidade, sai enfraquecido”, avalia. “Nesse aspecto, foi um grande erro do governo.” E também do partido, que no ano que vem terá uma eleição dura pela frente, em que a desunião trabalha contra.