O patrimonialismo líquido

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Antonio Carlos Prado: "Chegou-se a ouvir, em meio aos debates na comissão que vedou o casamento homoafetivo, que ele não pode ser legalizado já que lhe é biologicamente inviável a geração de vida" (Crédito: Divulgação)

Por Antonio Carlos Prado

Sob o signo do anacronismo e distante da contemporaneidade do mundo, a Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei que proíbe o casamento homoafetivo. O placar foi de doze votos favoráveis à proibição, com cinco votos contrários. Dificilmente essa decisão será mantida em plenário (se chegar a ele), mas a comissão conseguiu o queria: mostrar que a ideologia de direita está conseguindo construir compatibilidade na ciência política entre o universo de foro íntimo do legislador e o seu exercício de legislar. Cada vez que isso acontece, quem sai lesado é o Estado Democrático de Direito.

O que ocorre é bem grave. Parlamentares, que possuem a legalidade e a legitimidade de mandatos outorgados pelo voto popular em sufrágio universal e eleições periódicas, conforme prevê a Constituição, estão utilizando (como a dúzia de deputados utilizou na comissão citada acima) o Estado Democrático de Direito para a satisfação de suas crenças pessoais e de seus interesses na tentativa de impô-los à sociedade em geral. Observe-se, no entanto, que a minoria social, a pensar diversamente do que pensa a maioria, não é obrigada a aceitar os desejos dessa mesma maioria, ainda que por meio da legislatura, se ela não se manifestar republicana, mas, sim, de cunho pessoal – é o que se dá em relação ao casamento homoafetivo.

No Estado Democrático de Direito, uma minoria progressista não pode ser submetida à vontade de uma maioria regressista que pretenda fazer valer a sua concepção de mundo. Diferentemente do patrimonialismo clássico, que deixa pegadas visíveis porque se constitui na descarada apropriação do que é público por parte do privado, valendo até a transferência do erário para o cofre particular do governante, o que se tem, atualmente, é a apropriação sub-reptícia da cidadania, a apropriação da autodeterminação, a apropriação da individualidade por aqueles que se dizem guardiões dos bons costumes. É o que se pode denominar patrimonialismo líquido, que vai evaporando rapidamente conforme penetra, poro a poro, no tecido social. O patrimonialismo líquido não desbota, mas o tapete da República fica ultrajado.

Chegou-se a ouvir, em meio aos debates na comissão que vedou o casamento homoafetivo, que ele não pode ser legalizado já que lhe é biologicamente inviável a geração de vida. Assim pensam os Catões de plantão em seus intermináveis discursos sobre cultura, moral, costumes e comportamentos, sempre dispostos a tutelar a sexualidade que não lhes satisfaça a pulsão nem lhes renda votos, ainda que os ditames do republicanismo e do Estado de Direito não os permita agir dessa maneira individualista.