Comportamento

Gastronomia longe da cozinha: pesquisa de campo traz novos sabores

Chefs e profissionais da área investem em centros de pesquisa para trazer sabores inéditos aos menus. Respeito à sazonalidade, aos ingredientes e aos fornecedores é potencializado a partir de expedições na natureza

Crédito: Silvia Zamboni;

Katherina Cordás, diretora do TUJU Pesquisa espalhar objetos pelo restaurante para despertar curiosidade dos clientes; (Crédito: Silvia Zamboni; )

Por Ana Mosquera

Após o chef espanhol Ferran Adrià e o químico francês Hervé This levarem ingredientes para dentro do laboratório em décadas passadas — movimento que ficou conhecido como gastronomia molecular —, profissionais do Brasil e do mundo investem na pesquisa em alimentação também fora do restaurante. O aprofundamento na cultura alimentar vai além de simples visitas guiadas, e pode incluir passar horas sob sol a pino em uma pesca em alto-mar ou percorrer 16 estados em 14 dias. O mergulho na natureza selvagem é desafiador, demanda tempo, dinheiro e enfrentar intempéries, mas traz resultados que só seriam possíveis por imersão. O Fish Lab, do Projeto A.MAR, em Ilhabela (SP), desenvolve produtos a partir de técnicas ancestrais de conservação. O Instituto Paulo Machado, do chef de mesmo nome, dedica-se sobretudo ao estudo da cultura pantaneira. O Brasil a Gosto, fundado pela chef Ana Luiza Trajano, é focado na cozinha brasileira. O Central, melhor restaurante do mundo pelo ranking 50 Best, é referência com o Mater, em Lima, no Peru.

Ivan Ralston: chef finaliza entrada de tomate de cultivo próprio com algas de Santa Catarina, suculentas do Rio de Janeiro e tucupi amazônico (Crédito:Divulgação)

O Centro de Pesquisa e Criatividade do TUJU é o braço intelectual do restaurante de mesmo nome na capital paulista. Além do mapeamento — de ingredientes, produtores, fornecedores, feiras —, as incursões pelo País dão outro norte ao projeto gastronômico.

“Entendemos que a sazonalidade no Brasil tem muito mais relação com o índice pluviométrico do que com as estações. A mandioca, por exemplo, tem o sabor potencializado em períodos de seca”, diz a diretora Katherina Cordás. Tanto que os menus se dividem em Chuva, Ventania, Seca e Umidade. “Se eu não sei o melhor momento do ingrediente, acabo forçando um ciclo que não é o natural, e deixo de respeitar a natureza e o fornecedor, que nem sempre vai conseguir atender nossa demanda”, fala ela.

Onildo Rocha, chef: em imersão pela Mata Atlântica, encantou-se com produção de cacau artesanal no sul da Bahia (Crédito:Divulgação)

Ter contato com os alimentos na fonte vai ao encontro da proposta do chef Ivan Ralston de escancarar a essência de cada um deles. “A maioria das preparações leva ingredientes crus e frescos. Não sou da linha de pintar paisagem no prato. É como na arquitetura brutalista, com estruturas aparentes. Nenhum elemento está ali pela beleza.”

Além de sustentar a criação do TUJU, o centro pretende expandir conhecimento para mais pessoas, inclusive colaboradores, via redes sociais, produção de material gráfico, palestras e cursos. E também a outros restaurantes. A carne do gado curraleiro pé-duro, nativo do Brasil, passou a ser usada por outros chefs por sua influência.

Por outros biomas

Para compor as temporadas do restaurante paulistano Notiê, Onildo Rocha escolheu estudar os biomas do Brasil in loco. Inclusive o seu. “Eu pensava que ia chegar no sertão nordestino e confirmar o que já sabia, mas de repente você leva um tapa na cara da pesquisa”, brinca o chef paraibano. “Meus estudos passam por entender como as pessoas da região utilizam o produto. É algo cultural, baseado no comportamento de quem convive com aquilo em seu entorno.”

As expedições têm suas dificuldades, como aquela de percorrer 16 estados em duas semanas, mas são gratificantes quanto aos novos sabores. Foi no sul da Bahia, na expedição pela Mata Atlântica, por exemplo, que se deu conta de que a polpa do cacau era pouco valorizada e de que o mel do mesmo fruto já não chegava em São Paulo com sabor tão genuíno. Aí entra a expertise do chef alquimista: transformar o líquido em gel e garantir uma surpresa para o cliente.

Hervé Witmeur, chef projeto de agricultura regenerativa destaca pesquisa com superalimentos. Cupim com alho negro, mandioca
e brotos locais (Crédito:Divulgação)
(Chico Rasta)

Interessado em explorar o paladar, o chef Hervé Witmeur investiu em seu próprio território de pesquisa, com foco na agricultura regenerativa, no Piauí. Na fazenda orgânica La Reserva, ele desenvolve, entre outras coisas, superalimentos, aqueles considerados com alta concentração de nutrientes, para os seus restaurantes.

Na sopa fria conhecida como gaspacho, o tomate perde lugar para a acerola, e no “leche de tigre”, caldo que serve de base para o famoso ceviche, entra a cúrcuma. “Eu gosto de brincar com os superalimentos na cozinha, para que o resultado seja uma comida viva”, diz Hervé, que conta com a parceria da esposa, a naturopata Marie Witmeur. “A pesquisa é muito importante para eu conhecer a cultura do Nordeste”, diz o belga.

Foi da vivência no mercado Ver-o-Peso, em Belém do Pará, que trouxe a inspiração para o açaí com manjuba frita, abundante na região. Muito conectado à natureza, ele vislumbra outro tipo de laboratório, no futuro: o de reaproveitamento de produtos, rumo à cozinha lixo zero.